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O fenômeno da globalização e seus reflexos no campo jurídico

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Agenda 25/02/2006 às 00:00

4.GLOBALIZAÇÃO, DEMOCRACIA E CIDADANIA

            De uma forma simplista, a democracia geralmente é definida como o governo do povo, baseado na distribuição eqüitativa do poder, caracterizando-se pelo direito dos indivíduos de participarem das decisões da administração pública, diretamente ou por meio de representantes eleitos pelo voto popular.

            A democracia, contudo, é mais do que um regime político com partidos e eleições livres. Para Liszt Vieira,

            " É sobretudo uma forma de existência social. Democrática é uma sociedade aberta, que permite sempre a criação de novos direitos. Os movimentos sociais, nas suas lutas, transformaram os direitos declarados formalmente em direitos reais. As lutas pela liberdade e igualdade ampliaram os direitos civis e os direitos políticos da cidadania, criaram os direitos sociais, os direitos das chamadas minorias – mulheres, crianças, idosos, minorias étnicas e sexuais – e, pelas lutas ecológicas, o direito ao meio ambiente sadios" [17].

            A crise mundial, entretanto, abala os fundamentos da democracia moderna, enquanto sistema representativo. A profusão de "lobbies" reflete a presença de uma democracia de interesses permeando este sistema, com um mandato imperativo e inquestionável, causando um prejuízo social irreparável.

            Em termos democráticos, podemos definir a cidadania como a criação de espaços sociais de luta, onde o cidadão é fundamentalmente o criador de direitos que abrem novos espaços de participação política, e na definição de instituições permanentes para a expressão política, como os partidos políticos e os órgãos públicos. Nesse sentido, bem esclarece Francis Fukuyama:

            " nos tempos modernos, a cidadania é melhor exercida através das chamadas "instituições mediadoras" – partidos políticos, empresas privadas, sindicatos de trabalhadores, associações cívicas, organizações profissionais, igrejas, associações de pais e professores, conselhos de escolas, sociedades literárias e assim por diante. É através dessas associações cívicas que as pessoas que as pessoas são arrancadas de si mesmas e de suas preocupações pessoais e egoístas" [18].

            A cidadania pode e deve ser associada a uma proposta democrática concreta, como à proposta de democracia semi-direta, baseada nos mecanismos constitucionais de iniciativa popular, referendo e plebiscito, garantindo, assim, a complementariedade entre a representação política tradicional e a participação popular direta. Em conseqüência, a cidadania implicaria em uma ligação necessária entre a democracia, a sociedade pluralista, a educação política e ao acesso democrático aos meios de comunicação de massa.

            Na sociedade do conhecimento, o ideal democrático e mesmo a cidadania estão reduzidos aos seus aspectos puramente formais devido à crise estrutural que abala os sistemas nacionais e a uma nova realidade política baseada nos valores e no poder do mercado e do consumo.

            A humanidade esta sendo afetada por uma série de problemas que atravessam as fronteiras e se tornam mundiais, como a reestruturação produtiva que esta afetando o comércio e as relações de trabalho, o capital financeiro, que juntamente com as políticas neoliberais favorecem o desemprego estrutural. A conjugação dos citados fatores aliada ao crescimento demográfico propicia a emergência da pobreza, da miséria e da fome, dos localismos e regionalismos, que criam tensão e causam guerras civis e conflitos político-econômicos no planeta.

            Os problemas deixam de ser eminentemente nacionais, tornam-se transnacionais e dizem respeito, conjuntamente, a todos os países e nações, embora, não exista, de fato, em escala mundial, uma instituição ou um órgão que exerça o papel regulador e a autoridade política similar ao dos governos e dos Estados nacionais.

            A ocorrência dos referidos fatores pode causar a erosão da estabilidade da ordem política nacional, e também da nova ordem mundial, juntamente com as políticas estruturais de ajuste, levando ao empobrecimento de um número cada vez maior de cidadãos, à diminuição entre a separação dos poderes e ao esfacelamento das conquistas dos movimentos participativos, cancelando-se assim a efetiva cidadania política, deslegitimando-se as novas democracias, num processo de "descidadização econômica e social" no plano dos Estados-nações.

            É no seio desta critica situação que se molda uma nova sociedade civil mundial, a partir da multiplicidade de organizações não-governamentais e de movimentos sociais, articulados mundialmente como uma das poucas formas de resistência aos desequilíbrios gerados pela globalização, posto que seus princípios éticos apontam para a instituição de direitos a serem reconhecidos em todo o mundo.

            A sociedade civil global materializa-se com a criação de um espaço público transnacional e desterritorializado e se refere ao desenvolvimento de uma esfera não-capitalista, não-estatal, anti-competitiva e anti-hierárquica, possibilitando a existência e a coordenação de esforços democráticos a nível mundial. Na colocação de Liszt Vieira:

            "A sociedade civil global não é um paraíso de liberdade desterritorializada, solidariedade global, preocupação ecológica ou tolerância pluralista. Mas pode ser o espaço para civilizar e superar as estruturas, processos e ideologias, capitalistas, estatistas, tecnocráticas, etc. É antes um habitat que deve ser construído contínua e coletivamente, do que uma estrutura já existente e representada, ainda imperfeitamente, pelos movimentos sociais internacionais" [19].

            O desenvolvimento de uma sociedade civil mundial democrática e descentralizada torna necessário que a noção de cidadania se amplie em âmbito planetário, prescindindo da noção de nacionalidade. A cidadania teria uma proteção transnacional assim como os direitos humanos, sendo, então, possível aos indivíduos pertencerem a uma comunidade política mundial, participando independentemente de sua nacionalidade.

            A cidadania européia pode ser vista como um embrião, uma experiência real de cidadania multinacional, porém limitada ao espaço geográfico da União Européia. À ela são inerentes à cidadania comunitária os direitos e deveres dos cidadãos europeus, existindo um vínculo jurídico-político entre esses e a Comunidade.

            No caótico período que a sociedade mundial atravessa, torna-se mais do necessário e urgente garantir a democracia e a cidadania, tanto em nível nacional quanto mundial, fazer uma nova análise destas categorias teóricas frente à realidade do mercado, às relações transnacionais, aos graves problemas sociais que enfrentamos e os novos padrões referentes ao Estado, bem como dos novos mecanismos que efetivam seu pleno exercício.

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5.GLOBALIZAÇÃO, ESTADO E DIREITO

            O direito pode ser entendido como a lei, pura e simples, uma ciência ou uma forma de controle social.

            Na sua gênese greco-romana, identificava-se com a lei, o poder escrito e reforçado e, ainda que esta idéia esteja presente até hoje, também tem origem na Antigüidade clássica o brocardo "ubi societas ibi jus", onde está a sociedade está o direito, ou seja, o direito também tem uma função social.

            A conquista dos direitos individuais e posteriormente dos direitos sociais que se seguiu a Revolução Americana e a Revolução Francesa, estruturada com o constitucionalismo e pela teorização jurídico-normativa em que se baseou o Estado Liberal Clássico, surgiu juntamente, como observa Wellington Pacheco Barros, com "a idéia de que a função real do direito é social, ou seja, sua legitimação é alcançada quando representa um querer geral. Assim, é na sociedade que encontra todo o seu início e fim" [20].

            No começo do século XX, com a preponderância do Executivo surge o Estado Providência. Com o alargamento necessário da competência desse poder, reforçou-se o caráter social do direito que, por sua vez, moldou as ações políticas concretas dos governantes ocidentais até a consolidação do poder econômico. O que era então predominantemente político e estatal deslocou-se para a esfera privada devido a uma série de fatores inerentes ao processo da globalização.

            Hoje, o Estado está tão abalado em suas bases, principalmente no tocante à soberania, apresentando ainda profunda falta de coesão interna, o que propiciou a formação de uma teoria, que o modelo estatal que se torna cada dia mais presente seria o de um Estado Neo-Feudal diluído e maleável, de tamanho reduzido junto aos países do Países do Norte, mas limitado e frágil nos Países do Sul.

            O direito positivo do Estado não é mais o sistema jurídico central, em comparação com o domínio jurídico das companhias transnacionais.

            Em âmbito interno, a coerência lógico-formal entre os sistemas normativos está abalada devido à multiplicidade de regras administrativas, ao excesso de normas jurídicas, a variabilidade das fontes e a provisoriedade das estruturas normativas, encontrando-se o Poder Judiciário limitado quanto ao exercício de suas funções controladoras e reguladoras. O princípio da eficiência no campo econômico ascendeu e foi posto no mesmo patamar em que se encontra o princípio da legalidade, e, por último, constata-se que a antiga distinção entre interesse público e interesse privado não mais existe uma vez que ambos se tornaram interdependentes.

            Em âmbito externo surgiram novos atores internacionais, como as organizações não-governamentais, corporações transnacionais, organizações governamentais regionais e os blocos políticos, emergindo o direito de integração, o direito intergovernamental e o direito comunitário, alterando este último diretamente à soberania nacional dos Estados-membros da União Européia.

            A globalização da sociedade capitalista, ao promover a mercantilização das relações sociais e dos campos jurídicos nacionais, vem abalando a ordem jurídica, política e as diferentes instituições estatais e civis que a regulam, além de afetar a própria face do Estado, como demonstrado a seguir.

            5.1.REESTRUTURAÇÃO GLOBAL E DIREITO

            A reestruturação da economia, das finanças e da política inerente ao processo de globalização ensejou a criação de uma nova realidade jurídica.

            Em cada um destes planos emergem novos paradigmas ideológicos que engendram um processo paradoxal, o qual gera, ao mesmo tempo, necessidade de centralizar e de descentralizar, de estabelecer novas formas de associação, como as fusões entre empresas e a criação de "holdings", ao mesmo tempo em que dobra a fatia do mercado mundial dominada por rede de empreendedores e terceiriza a fabricação de produtos e serviços. Exemplificando: nos Estados Unidos, hoje, está ocorrendo o que foi denominado por Philip M. Bruges de efeito ODD: terceirização (outsourcing), desnivelamento (delayering) e desconstrução (desconstruction), num crescente processo de desburocratização, enquanto que na Europa, a subsidiariedade torna-se o princípio norteador na área econômica e política. Estabelece-se uma situação em que os opostos se alinham e se interpenetram e a complementariedade torna-se, então, a medida das organizações modernas, ou melhor, das organizações hipermodernas [21].

            Não é somente a prática legal que se redimensiona. O direito em si mesmo ganha novas proporções com o aumento da desintegração social, a multiplicação de crimes violentos e a dificuldade que inúmeras pessoas encontram, especialmente nos países do Terceiro Mundo, em exercer os direitos que lhes são inerentes. Por outro lado, a flexibilização do processo produtivo enseja a supressão dos direitos sociais ao passo que a democracia e a cidadania são reduzidas ao seu aspecto puramente formal, desprovidas de vida e conteúdo no seio da globalização. Faz-se preciso, então, reconceber tais questões dentro da realidade do mercado, que prepondera atualmente sobre todas as outras realidades.

            A questão se apresenta de maneira complexa e intrincada. Para compreendê-la será abordado o modo de produção do direito no ocidente que, de per si, esclarece como a prática legal foi influenciada pela globalização.

            5.2 GLOBALIZAÇÃO DO MODO DE PRODUÇÃO DO DIREITO

            Para entender a mudança dos campos jurídicos [22] nacionais na sociedade global, Yves Dezalay e David Trubek [23] introduziram a noção de modo de produção do direito, referindo-se à política econômica de regulação, proteção e legitimação do direito em um dado espaço nacional e em um momento específico, incluindo: o modo como a profissão jurídica e a prestação de seus serviços estão organizadas, como as disputas do campo jurídico com outros campos sociais ocorrem, a articulação da doutrina, o papel que os advogados juntamente com outros protagonistas globais representam num dado campo jurídico, a relação entre regulação e proteção e o modo dominante de legitimação.

            A internacionalização dos campos jurídicos nacionais nada mais é do que o crescimento do predomínio de um modo particular de produção do direito originário dos Estados Unidos.

            O modo de produção do direito norte-americano como atualmente se apresenta, foi concebido por Paul Cravath, no século XIX. Tem seu centro na empresa de direito, com múltiplas propostas orientadas comercial e nacionalmente, transcendendo o campo dos litígios e da preparação de documentos, incluindo a preparação de legislação e regulamentação administrativa, a prática de "lobing" e outras formas de advocacia não judiciais, influindo também substancialmente na cultura jurídica, havendo uma intensa relação entre o campo social e o campo jurídico.

            O modelo jurídico norte-americano foi bem sucedido quanto a sua estruturação acadêmica e profissional, porque desde a Guerra de Secessão é voltado para a área comercial, isto é, para o mercado, que hoje é a realidade mundial, constituindo-se em uma vantagem histórica para os Estados Unidos, que pode se colocar na vanguarda do processo de internacionalização do capital devido à maneira como o trabalho jurídico está concentrado, dividido e organizado.

            A influência do setor corporativo do direito nas elitizadas faculdades norte-americanas é direto e substancial. Os advogados corporativos são recrutados nas mais prestigiadas faculdades de direito, de acordo com critérios meritórios e o desempenho acadêmico, servindo tais dificuldades como porta da entrada para profissão, ajudando a construir uma hierarquia jurídica educacional e profissionalmente definida pelos privilégios e pela competição acirrada.

            O mercado da assistência legal e o modelo da empresa de direito cresceram simultaneamente nos Estados Unidos para atender a demanda comercial, o que levou a criação de gigantescas empresas jurídicas, tornando aquele país o berço da comercialização da prática legal. Para que isso acontecesse, foi necessária a existência de elevado padrão de qualidade profissional, a difusão de um novo modelo acadêmico, o aparecimento de um novo tipo de juristas e a redefinição da clientela em função de violentas batalhas jurídicas, que reestruturaram o campo do direito em torno do eixo da justiça comercial e da incursão de técnicas modernas e de novos profissionais em um território reservado aos juristas.

            A partir deste aspecto do modelo norte-americano, surgiu, nos últimos vinte anos, um novo tipo de jurista, que se encontra cada vez mais dissociado da dimensão social do direito e cada vez mais imbuído de sua dimensão técnica, reduzindo a prática do direito a uma espécie de negócio, aproximando-a mais da realidade econômica e financeira.

            O direito e os seus profissionais, nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo, não têm mais o monopólio sobre a regulamentação formal das relações sociais em razão das novas práticas administrativas dos profissionais de serviços, tais como banqueiros, contabilistas e consultores, que estruturam novas formas de produção jurídica. Não há mais o monopólio jurídico sobre a solução de conflitos. Ao mesmo tempo, este mercado de assistência jurídica se abriu a novos produtores e clientes, onde os produtos jurídicos em concorrência com outra forma de serviço.

            Em âmbito mundial, segundo Ives Dezelay a

            "incursão dessas novas técnicas e desses novos profissionais no território anteriormente reservado aos juristas não representa, todavia, o fim do direito. Na realidade, dá-se justamente o contrário, pois, por um efeito paradoxal, já demonstrado por Weber, quando analisou a instrumentalização do direito, esta concorrência externa leva a um revigoramento da tecnicalidade e da especificidade do direito. Confrontados com esta ocorrência no terreno da negociação e da mediação dos agentes econômicos, os juristas das áreas de negócios salvaguardam um certo primado com retorno as estratégias jurídicas e a jurisprudência. As estratégias de opressão jurídica, por exemplo, aperfeiçoadas por Skadden Arps em favor dos incursores associados e agora exportadas para a Europa, podem ser descritas como agressivas, quando não exageradas. Esses expedientes contribuem para a durabilidade do direito, bem como para sua revalorização no campo do poder, do qual ele não pode se afastar sem por em risco a própria existência. É certamente verdadeiro que esses novos juristas e os mecanismos que eles estão aperfeiçoando são muito diferentes das gerações precedentes de juristas, com sua preocupação com a justiça social. Todavia, o direito não é diferente das outras instituições sociais que só resistem transformando-se a si próprias, seguindo a esteira das mudanças políticas" [24].

            A internacionalização do modelo jurídico norte-americano, o predomínio da língua inglesa e dos métodos legais anglo-saxões nos acordos contratuais internacionais e nos processos de arbitramento, levaram ao predomínio destes padrões nos procedimentos legais que governam as relações além-fronteiras na Europa e em todo o mundo. É o resultado e a causa do surgimento de áreas jurídicas transnacionais e da internacionalização dos campos jurídicos.

            As relações além fronteiras são regidas hoje pelos direitos internacional, intergovernamental e supranacional ou comunitário, ressaltando-se a proeminência dos aspectos jurídicos que envolvem as relações das empresas multinacionais e transnacionais. Observa-se em consonância com as considerações de Wolkmar Gessner e Angelika Schade [25], para quem a estrutura legal além-fronteiras, pode e deve ser analisada também no que se refere à forma como as pessoas jurídicas ou não-jurídicas estabelecem os acordos ou administram os debates em torno dos temas legais, como os meios de consulta, negociação, conciliação ou arbitramento, concentrando-se a atenção em como surgem as relações anômicas caso falte orientação normativa nacional, internacional, intergovernamental ou supranacional.

            No antigo modelo de direito europeu, os campos jurídicos eram organizados segundo linhas estritamente hieráquicas, com os juízes e os líderes acadêmicos em seu ápice, sendo afetados por hierarquias de poder de outros campos sociais. Nesse sentido, a prática jurídica segmentava-se, os advogados operavam individualmente ou em empresas de pequeno porte, em áreas específicas do direito, distanciados da questão social tanto quanto os teóricos acadêmicos.

            Os novos mercados e os novos atores do direito europeu estão transformando a natureza prática, a organização dos serviços, o papel do judiciário e as faculdades de direito e causando grande impacto em relação às fusões e às práticas de incorporação nos campos jurídicos europeus, provocando mudanças profundas em países como a França, onde foi criado um tribunal de elite para se resolver disputas econômicas e a Alemanha, onde também foram estabelecidas grandes firmas corporativas de advocacia [26].

            O trabalho das fusões e incorporações pode ser apontado como causa da transformação do antigo modo de produção do direito europeu. A criação da Comunidade Européia teve como um dos reflexos uma onda de fusões [27] e ofertas públicas de ações que criaram uma demanda de novos esquemas de regulação tanto em nível europeu quanto em nível nacional, oferecendo oportunidades para as organizações multinacionais de serviços jurídicos delinearem a nova ambientação jurídica para os negócios na Europa quanto para explorar o mercado resultante dos serviços de direito europeu. Segundo Yves Dezelay e David Trubek,

            "O novo sistema europeu regulatório de fusões e incorporações fornece vastas oportunidades para as firmas multinacionais. É um mundo no qual elas se sentem confortáveis, porque, em boa medida, é o mundo que elas fizeram. E as práticas de fusões e incorporações constituem-se em estranhas e assustadoras para os advogados cujas instituições e hábitos foram formados no antigo modo de produção do direito; os antigos europeus estavam despreparados para entrar nessa nova arena criada pela internacionalização. Assim, o crescimento deste mercado promoveu uma oportunidade para firmas multinacionais expandirem suas práticas, afetando a natureza dos campos jurídicos na Europa" [28].

            Em razão das restrições causadas pelo antigo modo de produção do direito na Europa novos atores externos entraram no mercado do direito europeu, alguns deles no mercado mundial do direito, liderando os modos de desenvolvimento das novas interpretações para a atividade jurídica, a organização dos serviços legais para as atividades negociais e impulsionando a construção da nova ordem jurídica européia.

            Os principais novos atores são: a) as firmas legais norte-americanas, que trouxeram para a Europa métodos de organização e estilos de atuação do direito que deram a elas uma verdadeira vantagem enquanto o mercado de direito europeu crescia, fornecendo serviços jurídicos completos e agrupando especialistas de todas as áreas do direito relevante às operações comerciais; b) as novas firmas jurídicas multinacionais européias, criadas nos últimos dez anos a partir das linhas traçadas pelas firmas norte-americanas, com vantagens particulares no mercado europeu, o que as torna mais competitivas; c) as assessorias internas das corporações européias, que emergiram do pano de fundo dos negócios para interpretar um papel mais decisivo dentro de suas firmas, criando novas demandas por um novo modo de prática de direito negocial e de organização das práticas jurídicas; d) finalmente, as "Big Six", as seis grande firmas contábeis que se transformaram em multinacionais prestadoras de serviço jurídico, financeiro e de auditoria, exercendo um importante papel no mercado de serviços jurídicos de corporações.

            A análise da globalização do mercado de serviços legais realmente pode ser vista como uma americanização das culturas jurídicas nacionais, não só nos países europeus como em todos aqueles que participam ativamente do mercado global, remodelando o conjunto de expectativas que legalizam a cultura legal. Na opinião de Yves Dezelay, entretanto,

            "seria um engano considerar isto como uma simples questão de colonização. A metamorfose da prática legal européia não poderia ter ocorrido se não tivesse sido energizada de dentro através de uma nova geração de juristas, puro produto de uma meritocracia acadêmica cujas ambições seriam concretizadas somente por um novo ideal que destruiria os hábitos e os privilégios que se auto-reproduzem dos senhores juristas. A ambição inescrupulosa dos juristas "yuppies" sustentada por um bom comando técnico do direito, torna-os os auxiliares perfeitos dos atuais magnatas larápios, os predadores das finanças que já transformaram a paisagem financeira da nova década" [29].

            A transformação do modo de produção do direito europeu pela internacionalização do modo de produção do direito americano, não é, em última instância, mais do que um reflexo do processo global de internacionalização de mercados que engendrou novas realidades administrativas, financeiras e trabalhistas, ensejando a criação de novas estruturas jurídicas, o que resultou no surgimento de novos atores no campo do direito, na mundialização de um novo modo de produção do direito, na criação de novas figuras jurídicas e modalidades de contratos e, indiretamente, a partir do momento em que se considera a formação de blocos político-econômicos como uma reação ao processo da globalização econômica, no surgimento de um direito supranacional, de um direito intergovernamental e no redimensionamento do direito comercial.

Sobre a autora
Marianna Izabel Medeiros Klaes

professora da Universidade do Sul de Santa Catarina (graduação em Direito e graduação em Relações Internacionais), advogada e consultora em Direito e Relações Internacionais, MBA em Administração Global pela ESAG/Uni, especialista em Direito Tributário pela UFSC, mestre em Direito e Relações Internacionais pela UFSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KLAES, Marianna Izabel Medeiros. O fenômeno da globalização e seus reflexos no campo jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 968, 25 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8005. Acesso em: 21 dez. 2024.

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