Observo trechos da nota divulgada pela procuradoria geral da República:
2 - O procurador-geral da República contribui na atuação das instituições e dos Poderes da República, na sensibilidade dos governantes e no esforço comum de todos os cidadãos, em prol do diálogo, da cooperação e da unidade nacional, necessários ao enfrentamento de um dos maiores desafios já vividos pelo Brasil, o que requer uma atuação do MP no sentido do arrefecimento de polarizações e foco em soluções.
3- Os chefes do Poder Executivo em todas as esferas (federal, estadual e municipal) detêm liberdade de expressão para se posicionar sobre assuntos considerados relevantes para a sociedade, e não subordinam suas opiniões a organismos externos, principalmente considerada a dinâmica do avanço da epidemia de doença nova, que obriga a revisão de protocolos médicos com frequência, bem como a revisão de orientações gerais à população.
4- No quadro de grande esforço nacional para combater o vírus, verifica-se, neste momento, que as instituições estão funcionando e atuando, em conformidade e nos limites de suas competências e atribuições, destacando-se o trabalho de coordenação-geral do Ministério da Saúde, sendo inoportuno fazer uso do quadro de epidemia para polarizações que em nada contribuem para o enfrentamento da covid-19.
5- O procurador-geral da República, Augusto Aras, tem atuado no sentido de que o Ministério Público brasileiro seja um agente catalizador do diálogo e da cooperação dos diversos órgãos dos entes federados envolvidos no combate tanto à epidemia, para preservar a saúde e a vida, quanto às consequências da doença para a economia e para o desenvolvimento do país.
Sabe-se que a Instituição se prima pelos princípios da unidade, indivisibilidade e autonomia funcional.
Pois bem:
Na primeira instância o Ministério Público Federal, de forma acertada, ajuizou ação civil pública contra a União para proibir a veiculação das peças publicitárias. Na petição, o MPF sustenta falta de embasamento na campanha; isto é, não havia elementos a indicar que o fim da quarentena seria a providência adequada. Alega ainda que tal medida poderia agravar o risco da disseminação da doença no país.
Ao acolher o pedido, a juíza aponta dados da Organização Mundial da Saúde e cita que o achatamento da curva de casos é indicado pela comunidade científica como medida necessária para evitar colapso de mortes.
"Na dita campanha não há menção à possibilidade de que o mero distanciamento social possa levar a um maior número de casos da Covid-19, quando comparado à medida de isolamento, e que a adoção da medida mais branda teria como consequência um provável colapso dos sistemas público e particular de saúde", entende a magistrada.
A decisão determina ainda que a União se abstenha de veicular qualquer outra manifestação que sugira à população brasileira "comportamentos que não estejam estritamente embasados em diretrizes técnicas, emitidas pelo Ministério da Saúde, com fundamento em documentos públicos, de entidades científicas de notório reconhecimento no campo da epidemiologia e da saúde pública".
A ação, na defesa de interesses difusos, de forma corretíssima, assim acentuou, em sua causa petendi:
“Verifica-se dos elementos presentes nos autos que a campanha “O Brasil não pode parar” vem sendo promovida por meio de hashtags em publicações oficiais do governo federal, bem como por meio de divulgação de vídeo. Veja-se a transcrição do vídeo da campanha em comento, conforme link colacionado no Evento 1, Anexo 2: “Para os quase 40 milhões de trabalhadores autônomos, #oBrasilNãoPodeParar. Para os ambulantes, engenheiros, feirantes, arquitetos, pedreiros, advogados, professores particulares e prestadores de serviço em geral, #oBrasilNãoPodeParar. Para os comerciantes do bairro, para os lojistas do centro, para os empregados domésticos, para milhões de brasileiros, #oBrasilNãoPodeParar. Para todas as empresas que estão paradas e que acabarão tendo de fechar as portas ou demitir funcionários, #oBrasilNãoPodeParar. Para dezenas de milhões de brasileiros assalariados e suas famílias, seus filhos e seus netos, seus pais e seus avós #oBrasilNãoPodeParar. Para os milhões de pacientes das mais diversas doenças e os heroicos profissionais de saúde que deles cuidam, para os brasileiros contaminados pelo coronavírus, para todos que dependem de atendimento e da chegada de remédios e equipamentos, #oBrasilNãoPodeParar. Para quem defende a vida dos brasileiros e as condições para que todos vivam com qualidade, saúde e dignidade, o Brasil definitivamente não pode parar.” Numa primeira análise, verifica-se que, apesar de despido de conteúdo informacional ou educativo, o referido material pode transmitir orientação social. Segundo o Ministério Público Federal, essa mensagem seria abusiva, na medida em que induziria a população a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde.”
Parabéns aos colegas que assim agiram.
Destaco ainda trechos daquela demanda que dignifica o papel do Parquet:
Na mesma lógica, o estudo realizado pela Imperial College of London (Evento 1, Anexo 4)[3] prevê que medidas de distanciamento social e reforço do distanciamento dos idosos levariam a 529.779 mortes no Brasil, ao passo que uma supressão da epidemia, consistente no isolamento social, levaria, na pior das hipóteses, a 206.087 mortes. Quando se tratam de indivíduos necessitando de leitos em UTI, no primeiro cenário teríamos 702.497 pessoas, e no segundo, 460.361.
Pois bem. Os princípios da precaução e prevenção são aplicáveis ao direito à saúde, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADI 5592[4]. A doutrina de Paulo Affonso Leme Machado assim ensina: “Em caso de dúvida ou incerteza, também deve se agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção. ‘O princípio da precaução consiste em dizer não somente somos responsáveis sobre o que nós sabemos, sobre o que nós deveríamos ter sabido, mas, também, sobre o de que nós deveríamos duvidar’ – assinala o jurista Jean-Marc Lavielle. (...) Na dúvida, opta-se pela solução que proteja imediatamente o ser humano e conserve o meio ambiente (in dubio pro salute ou in dubio pro natura).
O discurso apresentado pelo governo para o retorno às atividades, em que o chefe do Executivo, de forma caótica, e com espírito anticientífico, conclamou a população a voltar ao trabalho. Foi ele favorável ao chamado “isolamento vertical”. Assim os velhos, que não têm o que dar, ficariam à margem e estariam isolados com os afetados. A massa de trabalho, dita saudável, iria continuar trabalhando para garantir o sistema econômico que aí está.
Ficou demonstrado o risco na veiculação da campanha “O Brasil não pode parar”, que confere estímulo para que a população retorne à rotina, em contrariedade a medidas sanitárias de isolamento preconizadas por autoridades internacionais, estaduais e municipais, na medida em que impulsionaria o número de casos de contágio no país. Na dita campanha não há menção à possibilidade de que o mero distanciamento social possa levar a um maior número de casos da Covid-19, quando comparado à medida de isolamento, e que a adoção da medida mais branda teria como consequência um provável colapso dos sistemas público e particular de saúde. A repercussão que tal campanha alcançaria se promovida amplamente pela União, sem a devida informação sobre os riscos e potenciais consequências para a saúde individual e coletiva, poderia trazer danos irreparáveis à população.
Não se trata de formular política pública, mas de impedir a implementação de uma política pública nociva à sociedade.
São momentos difíceis.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal (MPF), encaminhou ao Congresso Nacional, no dia 22 de março,, nota técnica contra o Projeto de Lei 791/2020, que –a título de providências para enfrentar a covid-19– institui medidas que afetam as competências do Judiciário, Ministério Público e da Defensoria Pública.
“Mesmo em situações de exceção constitucional –tal como no Estado de Defesa ou Estado de Sítio– não se admite a restrição a direitos fundamentais relacionados com o acesso ao Judiciário, a independência dos magistrados, a autonomia do Ministério Público e da Defensoria Pública, bem como a preterição do juiz natural e, muito menos, a mitigação da separação de Poderes.
O projeto pretende criar um Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle para prevenir ou terminar litígios, inclusive os judiciais, relacionados ao enfrentamento do novo coronavírus.
Com esse novo mecanismo, o processamento de medidas judiciais ou extrajudiciais por parte dos órgãos federais de Justiça e controle terá como requisito a prévia tentativa de autocomposição perante as chamadas “comissões de autocomposição de litígios” – que seriam compostas por representantes dos órgãos envolvidos no litígio, mediante designação pelos membros do Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle, com poderes plenos para firmar acordos.
Impedir o Ministério Público e a Defensoria Pública de adotar providências judiciais ou extrajudiciais, até mesmo a edição de recomendação, sem o prévio esgotamento das atividades de autocomposição perante o Comitê ou as comissões, limita de modo insuperável a defesa urgente de matérias de grande repercussão social e que se inserem exatamente no contexto do novo coronavírus – como são os casos de reintegração de posse e despejos coletivos, o Programa Bolsa Família e o atendimento a índios em situação de isolamento voluntário.
“Em outras palavras, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União ficariam impedidos de atuar – extrajudicialmente ou judicialmente – enquanto não esgotada a tentativa de autocomposição perante as referidas comissões. Tal regra se aplica, inclusive, às recomendações emitidas pelo Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União”, aponta a procuradoria.
O Ministério Público Federal, à luz do que determina o artigo 129 da Constituição Federal, assume o papel de grande advogado da sociedade. Cabe a ele ajuizar ações na defesa de interesses difusos e coletivos em prol dos interesses gerais. Não pode ficar, como órgão adrede, limitando sua atividade a papel de um conciliador nos conflitos entre a sociedade e o poder público. Deve ir à luta, na defesa da sociedade.
É um escárnio que o Parquet fique no aguardo de soluções hauridas em Conselhos de Conciliação. Como um órgão passivo que rasteja pela conciliação.
O Ministério Público não é órgão de conciliação, mas de defesa da sociedade.
O afastamento da legitimidade que é dada ao Parquet pela Constituição é uma afronta a garantia constitucional fundada no texto maior da Constituição, norma paratípica.
A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais, providos de um componente institucional que os caracteriza. Temos uma garantia contra o Estado e não através do Estado. Estamos diante de uma garantia especial a determinadas instituições, como dizia Karl Schmit. Deve-se protegê-la de uma eventual supressão ou mutilação, preservando um mínimo de sua essencialidade, um cerne que não deve ser atingido ou violado. Não se pode conceber o perecimento desse ente protegido.
J.H. Meirelles Teixeira prefere chamar de direitos subjetivos, uma vez que eles configuram verdadeiros direitos subjetivos. Tais direitos se configuram quando a Constituição garante a existência de instituições, de institutos, de princípios jurídicos, a permanência de certas situações de fato. São características desses princípios, consoante apontados por Karl Schmitt: a) são, por sua essência, limitados, somente existem dentro do Estado, afetando uma instituição juridicamente reconhecida; b) a proteção jurídico‐constitucional visa justamente esse círculo de relações, ou de fins; c) existem dentro do Estado, não antes ou acima dele; d) o seu conteúdo lhe é dado pela Constituição. As garantias institucionais, direitos institucionais, constituem direitos fundamentais.
Do contrário, estaríamos a permitir uma “verdadeira devastação constitucional”.