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O magistrado e as audiências judiciais.

Para uma aplicabilidade judicial da Teoria da Justiça de Rawls e da Legitimação pelo Procedimento de Luhmann

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Agenda 23/12/1998 às 00:00


I – Localizando o Autor

O conhecimento jurídico está limitado aos termos consignados nos autos processuais, daí a frase: "o que não está nos autos, não está no mundo". Dessa forma limita-se o conhecimento dos juristas ao que constar nas páginas do processo judicial. Acontece que, antes de realizado qualquer ato processual, cada componente da relação processual - parte autora, parte ré e o Estado-Juiz - tem o poder de decidir o que constar ou não nos autos do processo.

Os advogados têm o poder de definir o que expor e o que não expor em suas petições, assim, servem de filtro às informações a serem conhecidas por todos. Os magistrados, todavia, têm o poder de mandar produzir provas, poder este que, mesmo diante das limitações fáticas, bem explorado pode servir para esclarecer questões fáticas, as quais exercerão forte influência na formação de sua livre convicção.

Não pode o magistrado deixar de julgar, porém compete-lhe julgar segundo sua convicção. Este não deve provir de opiniões pessoais, mas de elementos contidos no processo judicial. A construção desta convicção é livre, não porque possa o juiz julgar como quiser, mas porque ele não está submisso a qualquer prova, antes, tem plena liberdade para apresentar na sentença quais os fundamentos que o levaram a tomar a decisão final. Eis aí o espaço à busca de uma justiça através do direito.

É sabido que a palavra justiça não goza de uma definição objetiva, nem dispõe de conteúdo preciso o suficiente para transmitir a todos um sentido único, todavia, isso não significa que não exista. É certo que nós seres humanos não dispomos de uma fórmula para objetivarmos a justiça, contudo, dispomos de um elemento, ainda não trabalhado cientificamente, por falta de meios e métodos para tal, que nos permite conhecer genericamente, movendo-nos, provocando nossas reações e instigando nossas escolhas. Este elemento é o que a corrente de psicologia cognitiva, a gestalt, trata por capacidade de perceber o todo, ou seja, formamos imagens genéricas no subconsciente capazes de reportar-nos à percepção do objeto, por isso conseguimos identificar várias espécies a um mesmo gênero.

Justiça é uma palavra que não comporta um único significado, é vaga, todavia transmite uma noção, um sentido que não se reduz às opiniões pessoais, à percepção de cada um; ela representa expectativas de comportamentos, maneiras socialmente esperadas de agir, ou ainda, o mínimo de ética que se espera no convívio social. Daí que, mesmo em situações de processo social dissociativo - como a competição, o conflito, a oposição (Fichter, 1967: 268; Lerner, 1976: 205; Ogburn e Nimkoff, 1976: 236; Souto, 1985: 85-94; Wiese, 1976: 212) -, uma das partes divergentes concorda que determinada solução seja a mais justa, mesmo não sendo a melhor para ela. Assim, cabe trabalhar os mecanismos, que se dispõe atualmente, capazes de produzir este estado de justiça.

Nosso objetivo, com este texto, portanto, é provocar reflexões em torno da atividade do magistrado nas audiências, principalmente em relação ao exercício de seu poder de indeferir perguntas, bem como de agir não como administrador, mas como poder autoritário, quando se nega, p. ex., a consignar na ata da audiência o ocorrido.

Para isso, recorremos à teoria da justiça de John Rawls e à teoria da legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann.


II - As Audiências como Objeto de Estudo Sociológico Jurídico

Tendo por um dos maiores problemas a morosidade processual, realizaram-se reformas no direito processual brasileiro. Dentre as reformas já realizadas, interessa-nos a institucionalização dos Tribunais de Pequenas Causas, com a Lei 9.099, de 26/09/95 - onde prima o princípio da oralidade, desde o ajuizamento da demanda judicial, bem como a conciliação desde a audiência de conciliação até a audiência de instrução e julgamento - e a reforma do Código de Processo Civil Brasileiro (CPC), pela Lei 8.952, de 14/12/94, quando modificou-se o conteúdo do art. 331, do CPC, substituindo a designação da audiência de instrução e julgamento por uma audiência de conciliação.

Nossa preocupação não é com a sistematicidade do CPC, antes, interessa-nos a forma como vêm sendo realizadas as audiências judiciais. Um dos aspectos indispensáveis é o despreparo dos conciliadores (Junqueira, 1993: 100), por afetar a perspectiva do direito como instituição responsável por digerir, administrar e dirimir os conflitos intersubjetivos (inter = entre; subjetivo = pessoas) de interesses.

Tratar as audiências judiciais sob o prisma da sociologia do direito significa, então, abordar a possibilidade de se atribuir ao direito o papel de gestor de um convívio social, não sem conflitos, mas com seus conflitos gerenciáveis, de forma a promover maior aproximação, ao invés de afastamento, entre as pessoas (Souto, 1981: 101; Souto, 1987: 2; Souto, 1992: 43; Souto, 1997: 22). Para isso deposita-se no bom senso a perspectiva de se aferir objetivamente (como veremos na metodologia intuicionista de Rawls) o como aplicar o direito estatal como instrumento promotor da coesão e não descoesão entre os seres humanos. Para isso, atribui-se a todo magistrado a capacidade de verificar, assim como todo ser humano, como gerir maior segurança nas relações sociais, ao invés de instigar o desprezo e a vingança privada, a justiça com as próprias mãos, muitas vezes resultado de uma reação revoltada contra a morosidade processual.

Não ignora-se o prisma subjetivo desta posição, porém, qual concepção de mundo jurídico não está eivada de elementos subjetivos? Isto, porém, não se confunde com a perspectiva jusnaturalista de lançar os magistrados à arbitrariedade, mas o reconhecimento de que não dispomos de métodos e fórmulas à previsibilidade de um conteúdo às decisões judiciais. Acontece que quanto maior a abertura cognitiva do magistrado ao conhecimento dos dados fáticos, maior segurança na decisão a ser proferida, ou seja, quanto maior a ascese erótica - combinação entre razão e emoção, entre compreender e querer compreender (Adeodato, 1996, 85) - maior a probabilidade de se tomar uma decisão que venha a promover aproximação entre os seres humanos.

A forma como as audiências judiciais são realizadas transforma-a num campo de batalha onde a estratégia prevalece em detrimento de se procurar esclarecer os elementos fáticos. O direito, assim utilizado, não exerce as funções de promover uma justiça social e legitimar as decisões finais, antes consolida as regras pré-estabelecidas do jogo, pouco importando seu conteúdo (Adeodato, 1989: 55). Evitando-se a participação das partes litigantes nestas audiências, o jogo se limita à participação dos agentes jurídicos e, com isso, exclui-se uma gama de informações extremamente indispensáveis, porque úteis ao esclarecimento dos fatos. Fatores como a falta de profissionalismo das testemunhas e a falta de "ensaio" são capazes de conduzir à perda da ação judicial, sinal de que o direito cada vez mais afasta-se do âmbito social, da realidade social, passando a depender dos artifícios e da destreza de cada jogador.

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Para em estudo destas questões, recorremos à teoria da justiça como equidade proposta por John Rawls e às idéias da legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann.

Pela impossibilidade de desenvolver uma teoria substantiva da justiça baseada em verdades lógicas e em definições (Rawls, 1986: 60), Rawls, defende que a teoria da justiça como equidade é uma teoria dos nossos sentimentos morais, na forma como se manifestam através dos nossos juízos refletidos e ponderados, obtidos em equilíbrio refletido (Rawls, 19: p.110). Por juízos ponderados, entende-se aqueles em que nossas capacidades morais podem se manifestar sem distorção, corresponde à nossa verdadeira moral (Rawls, 1986: 58); já os juízos refletidos são as revisões que fazemos de nossos próprios juízos, é quando repensamos nossa moral conformando-a aos princípios dessa análise, construímos uma teoria mesmo que esta não coincida com os juízos efetivos (Rawls, 1986: 59); e o equilíbrio refletido é o resultado da análise dos juízos ponderados com os refletidos (Rawls, 1986: 59). Uma decisão judicial será, portanto, mais justa quanto mais se aproximar dos juízos refletidos, por isso, não resta ao aplicador do direito reportar-se exclusivamente aos preceitos legais, assim como não devem recorrer aos seus preconceitos. A primeira atitude deve ser procurar abstrair-se das idéias pré-concebidas, levantando o máximo de dados possíveis.

Ao propor sua Teoria da Justiça como Equidade, John Rawls afirma que esta é apenas uma das formas de conceber a justiça e não a única, em seguida afirma que, por isso, sua teoria contém erros. Mesmo assim admitindo e considerando que a verdadeira questão é saber qual das leituras propostas constitui a melhor aproximação da justiça (1986: 61), este autor diz que "a única justificativa para mantermos uma teoria errada é a falta de uma alternativa melhor; uma injustiça só é tolerável quando serve para justificar uma injustiça ainda maior" (Rawls, 1986: 27).

Já Niklas Luhmann diz que "uma estrutura jurídica é legítima na medida em que é capaz de produzir uma prontidão generalizada para aceitação de suas decisões, ainda indeterminadas quanto ao seu conteúdo concreto, dentro de certa margem de tolerância", contudo a legitimação não está na decisão inicial, mas no processo decisório, no procedimento (1980: 3-4).

Antes, porém, rescinde distinguir visões jurídicas diferentes.


III - Correntes Jurídicas Divergentes

A pretensão de monopólio de criação do direito por parte do Estado ocasionou a teoria da completude do ordenamento jurídico, com a previsão de todo e qualquer o conflito social, desde que juridicamente admitido, e a obrigatoriedade de os magistrados decidirem todos os litígios, fundamentando-os em textos legais (Adeodato, 1989: 53-55; Adeodato, 1992: 211; Weber, 1996: 27 e 508). Assume, então, a dogmática jurídica o status de única ciência do direito e reduz-se o mundo jurídico ao direito estatal. As fontes do direito são apenas as legalmente, por que legisladas, previstas. Busca-se apresentar um modelo hermenêutico como método de interpretação e aplicação do direito estatal, aquele posto pelo Estado. Nesta perspectiva, pretende-se atribuir à atividade jurisdicional a atividade de reconhecer direitos. Para concretização deste modelo, propõe-se métodos próprios à interpretação e aplicação do direito estatal, ou seja, elaboram-se modelos de interpretação: filológica ou gramatical, lógica, histórica e sistemática. (Betti, 1955: 801-66; Ferraz Jr. 1994: 287-93; Machado, 1997: 75-6; Barroso, 1996: 119-39; Paula Batista, 1986: 10-14).

Como a realização da atividade prática forense revelou a insuficiência da letra da lei como critério único às tomadas de decisões judiciais, surgiram autores sustentando que direito não são as leis emanadas do Legislativo, mas apenas aqueles textos legais aplicados (efetivamente utilizados) pelos magistrados e tribunais. Direito não são as normas válidas, estagnadas nas leis, mas as normas eficazes, aquelas aplicadas pelo Poder Judiciário. Referimo-nos à concepção que trata da eficácia jurídica, o movimento do realismo jurídico (Adeodato, 1989: 64-65; Alf Ross, 1977: 105-51; Alf Ross, 1982: 138; Alf Ross, 1961: 23; Massini, s.d.: passin).

Destes distinguem-se os chamados sociólogos do direito, os quais, preocupados com o afastamento do direito em relação à sociedade, trabalham a eficácia social, ou seja, a coesão social aos preceitos legais, a reação do comportamento social perante as leis. Divulgam-se pesquisas que revelam a existência de normas sociais, por vezes mais eficazes que as impostas pelo Estado, para dirimir os conflitos sociais, por guiar os comportamentos. Fala-se em direito vivo, com Eugen Ehrlich, na Alemanha (Ehrlich, 1986: 373-88; Treves, 1993:112-17) e em direito livre, como na escola da livre investigação do direito de François Gény, na França (Azevedo, 1991: 5-19; Treves, 1993:118-20). Nem por isso eles, realistas e sociólogos, deixam de defender a indispensabilidade do direito estatal como forma de controle social, todavia sustentam um mundo jurídico mais amplo que o estatal, pois este último é apenas uma das formas de manifestação do fenômeno social jurídico.

O dogmatismo reage a estas posturas acusando-os de lançarem a sociedade à insegurança ao porem em "cheque" o direito estatal e, consequentemente, sua certeza. Com base no argumento de que a segurança da sociedade provém das prescrições normativas, sustentam que elas garantem, por serem modelos de comportamento, as expectativas de cada um, pois permitem prever-se os comportamentos alheios. Assim, frustradas as expectativas, recorre-se ao Poder Judiciário requerendo a restauração da situação de equilíbrio social. Acontece que o "marketing" dogmático da certeza do direito estatal só tem lugar àqueles que restringem seu conhecimento às leituras apressadas ou à informação do "ouvi dizer". Em nenhum escrito os realistas nem os sociólogos proclamam o fim do direito estatal, antes pretendem auxiliá-lo.

Fique evidenciado, portanto, que essas correntes são contrárias, mas não contraditórias, ao dogmatismo e não ao positivismo jurídico. Elas nada mais fazem que evidenciar a insuficiência de as decisões judiciais serem tomadas com base restrita aos textos legislativos, pois inúmeros são os casos concretos em que o magistrado vê-se entre alternativas à decisão, inclusive devido à ambigüidade e vagueza dos textos legais (Reale, 1994: 23 e 25). Daí, ordenamentos jurídicos, como o brasileiro, acatam meios de integração do direito, como a analogia, os princípios gerais do direito e a equidade, como prevê a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942); amplia-se assim a perspectiva da formação do livre convencimento do juiz.

Como é indispensável uma instância interpretativa, pois além da ambigüidade e da vagueza, há a possibilidade de mais de norma jurídica estatal servir de norte à solução de um caso concreto, infere-se que a decisão judicial será mais segura quanto maiores informações, não só sobre as prescrições legais, mas também quanto aos dados fáticos.


IV - Metodologia Intuicionista

Rawls formula a teoria da justiça como equidade afastando-se do utilitarismo clássico, do perfeccionismo e do contratualismo, todavia, por meio do método intuicionista aproveita questões utilitaristas e contratualistas.

4.1. O Intuicionismo (raciocínio hipotético e idéia intuitiva)

Intuicionismo é a doutrina que afirma haver um grupo irredutível de princípios, os axiomas, os quais devem ser comparados entre si, determinando o mais justo equilíbrio entre eles. Suas duas características são (Rawls, 1986: 39): pluralidade de primeiros princípios que podem entrar em conflito no fornecimento de diretivas diante de situações concretas; e não incluir um método explícito, nem regras capazes de determinar a ponderação desses princípios, admite-se, porém, o estabelecimento de um equilíbrio, através da intuição, por meio do que nos parece mais próximo do justo.

Caso se reconheçam regras de prioridade, estas são consideradas triviais, não fornecendo um auxílio útil para atingir uma decisão. Por exemplo, a dicotomia agregação/distribuição contém dois princípios: o primeiro é produzir um bem maior, no sentido de maior equilíbrio de satisfação (modelo da utilidade); o segundo, distribuir de modo igual a satisfazer as necessidades, limitando a acumulação do bem estar por agregação e igualizando a distribuição dos benefícios (padrão de justiça). Esta concepção é intuicionista porque não fornece qualquer regra de prioridade para determinar como é que estes dois princípios são ponderados. (Rawls, 1986: 50-1 e 237).

Estudos de psicologia social revelam mecanismos de construção de uma padronização social das idéias de justiça (Rumiati, 1990: passim; ). Recorre-se ao intuicionismo acusando-se a falta de uma metodologia específica à constatação dos sentimentos humanos, todavia, pesquisas vêem sendo realizadas, tanto em psicologia como em sociologia, apresentando dados científicos, baseadas principalmente na observação controlada, na busca de detectar uma padronização ao sentimento de justiça. Não se nega que estamos longe de construir um método capaz de estudar objetivamente a justiça, mas é de se reconhecer que há um sentimento ético básico permanente no ser humano (Souto, 1956: 27, 38-39, 61-62,66-67, 69 ), isto pode não servir como mecanismo capaz de evitar a violência, como a marginalidade e a corrução, contudo, deve-se distinguir o marginal que tem e o que não tem plena consciência de que seus atos não são aprovados socialmente, bem como que são atos contrários ao direito, o qual pode até ser estimulado pelos seus páreas, mas ele sabe muito bem o quanto é recriminado socialmente.

4.2. A Teoria da Moral (sentimento de justiça)

Na teoria da moral a melhor análise do sentido de justiça não é aquela que corresponde aos juízos pré-estabelecidos, mas aquela que se adequa aos seus juízos proferidos em equilíbrio (Rawls, 1986: 59). Para Rawls moral não se subordina a preconceitos, a uma visão pessoal pré-concebida, antes significa nossa capacidade de moldar e modificar nossos juízos morais segundo a situação fática. Moral, assim entendida, não é a formulação de uma perspectiva baseada em princípios irredutíveis, mas a nossa disposição de apreender e ponderar valores conforme as circunstâncias de uma relação social.

Não se fala em moral pré-estabelecida, mas em moral como guia de comportamento, de juízos proferidos segundo se pondere o contexto de uma situação concreta. É aí que Rawls apresenta o intuicionismo como único método capaz de oferecer meios ao estudo da moral, por não comportar convenções metodológicas que forneçam formas de apreensão previamente definidas. Assim sustenta-se a necessidade de uma disposição para revisitar as próprias convicções, o que significa a possibilidade de modificá-las.

A teoria da justiça como equidade fornece princípios da justiça aplicáveis às estruturas sociais de natureza pública, por isso, afasta a questão da moral individual, pessoal. Tendo por instituição "um sistema público de regras que determina funções e posições, fixando, p. ex., os respectivos direitos, deveres, poderes e imunidade" (Rawls, 1986: 63), Rawls distingue as instituições justas das instituições mais importantes. Instituição justa é quando não há discriminações arbitrárias na atribuição dos direitos e deveres básicos e quando as regras estabelecem um equilíbrio adequado entre as diversas pretensões que concorrem na atribuição dos benefícios da vida em sociedade (1986: 29). Já por instituições mais importantes refere-se à constituição política e às principais estruturas econômicas e sociais.

Quanto à sociedade, a visão de Rawls é a do cooperativismo, a de comunidade: um grupo de pessoas com interesses comuns que se unem para melhor atingir seus objetivos. Para a realização desta visão, este autor lança a idéia de sociedade bem ordenada. Para haver justiça impõe-se haja igualdade e liberdade de direitos a todos os cidadãos, o que torna imprescindível a formação de um conjunto de princípios que forneçam os critérios definidores dos "direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social. Assim, dir-se-á que a sociedade é bem ordenada quando não só é concebida para aumentar o bem dos respectivos membros"... "trata-se de uma sociedade em que, por um lado, cada um aceita, sabendo que todos também aceitam, os mesmos princípios da justiça, e por outro, em que, no geral, as respectivas instituições básicas satisfazem esses princípios, sendo reconhecidas como tal." (Rawls, 1986: 28; Osborn e Neumeyer, 1936: 455-460).

A imposição de realização dos princípios não se reduz à pretensão de que todos aceitem determinado princípio de justiça, antes prescinde um comportamento à realização do que se entende por justo. Não se deixa de contar com os conflitos sociais e com as divergências de opiniões, todavia admite-se haver uma concepção de justiça comum e aceita por todos, principalmente quando se trata de reconhecer a necessidade de um conjunto de princípios aos direitos e deveres básicos. Na atualidade, não há um raciocínio capaz de substituir a idéia de ser indispensável ao convívio social um sistema normativo condutor da distribuição adequada dos encargos e benefícios para construção da cooperação na sociedade. A padronização, então, não elimina as diferenças sociais, sendo inclusive indispensáveis às mudanças sociais (Souto, 1981: 3 e 10; Souto, 1985: 259-262).

Desse raciocínio, tem-se que, por mais diversas que sejam as concepções de justiça, todos reconhecem que uma instituição é justa quando não há discriminação arbitrária, inclusive porque "a desconfiança e o ressentimento afectam ao laços da civilidade, bem como a suspeição e a hostilidade levam os homens a actuar por formas que normalmente evitariam". (Rawls, 1986: 29). Mas qual o conceito de justiça de Rawls?

4.3. Conceito versus Concepções de Justiça

Rawls distingue conceito de justiça de suas várias concepções, explica que cada membro da comunidade tem uma concepção de justiça, mas todos reconhecem a necessidade de um conjunto específico de princípios para atribuição dos direitos e deveres básicos e para determinação do que se entende ser distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação em sociedade. Daí se dizer que para a teoria da justiça como equidade o que interessa é a justiça pública.

Conceito é o equilíbrio adequado entre pretensões concorrentes, já concepção é o conjunto de princípios inter-relacionados que permitem a identificação dos aspectos relevantes para a determinação do equilíbrio adequado (Rawls, 1986: 32). Este autor trata a justiça como consenso, asseverando que um consenso sobre as concepções de justiça é uma das condições para uma comunidade viável e que a posição de determinação do justo ou injusto é normalmente objeto de disputas, de forma que os projetos individuais possam ser articulados em conjunto e a realização deles deve conduzir à realização dos objetos sociais de uma forma que seja eficiente e conforme a justiça (Rawls, 1986: 29-30).

Neste sentido, ao refletir sobre a postura do magistrado nas audiências, pode-se classificar - formulando-se tipos ideais, no sentido werberiano - em duas posturas: a do magistrado ditador, aquele que se vê como portador da verdade indiscutível, como se as leis pusessem-no em estado de certeza; a segunda, é a do juiz administrador, aquele que provoca e instiga o debate observando as alegações, controlando as exaltações das partes e evidenciando os pontos controversos.

Enfatizar os debates é conferir às partes participação na solução do litígio, pois "a função legitimadora do procedimento não está em se produzir consenso entre as partes, mas em tornar inevitáveis e prováveis decepções em decepções difusas: apesar de descontentes, as partes aceitam a decisão"; assim , o litigante que insistir em sua expectativa decepcionada, termina pagando um preço muito alto, por isso se vê forçado a ceder. "Nesse sentido, a função legitimadora do procedimento não está em substituir uma decepção por um reconhecimento, mas em imunizar a decisão final contra as decepções inevitáveis" (Luhmann, 1980: 4). É que a decisão judicial tem por características de legitimação: a função de absorver e reduzir as inseguranças; conduzir à segurança, devido à certeza de que uma decisão ocorrerá; legitima-se pelo procedimento (ilusão funcional); e baseia-se na ficção de que pode haver decepção rebelde, só que de fato esta não se realiza.

Impõe-se, então, imparcialidade ao magistrado, pois a confiança é adquirida no decorrer do processo e não previamente, como nas sociedades primitivas, pois os status sociais e os papéis não conferem uma base firme (Luhmann, 1980: 59); assim, na "legitimação pelo procedimento são a diferenciação e a autonomia que abrem um espaço de manobra para a autuação dos participantes pleno de alternativas e de importância básicas, reduzindo a complexidade. Só assim os participantes podem ser motivados a tomarem, eles próprios, os riscos da sua ação, a cooperarem, sob controle, na absorção da incerteza e dessa forma a contraírem gradualmente um compromisso" (Luhmann, 1980: 64), inclusive porque para a legitimação pelo procedimento é válido o procedimento apoiado no poder de persuasão e no valor considerado pelas normas jurídicas, bem como os mecanismos extralegais (Luhmann, 1980: 68). Provocando a participação das partes legitima-se a decisão final pelo procedimento, pois, não se trata de justificá-la, como prevê o direito processual, antes de uma transformação estrutural das expectativas, pois forma-se um clima social que institucionaliza o reconhecimento das opções como obrigatórias.

O papel da justiça é fornecer um critério de atribuição de direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definir a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social, seu objeto é a estrutura básica da sociedade (a justiça social), ou seja, a forma pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão dos benefícios da cooperação (Rawls, 1986: 30). Enfim, a aplicação do direito estatal será justa na medida que melhor servir para distribuir direitos e deveres.

Sobre o autor
Artur Stamford

professor da Faculdade de Direito de Olinda (FADO), da Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (ESMATRA VI), e da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE), doutorando em Direito pela UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STAMFORD, Artur. O magistrado e as audiências judiciais.: Para uma aplicabilidade judicial da Teoria da Justiça de Rawls e da Legitimação pelo Procedimento de Luhmann. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/810. Acesso em: 28 dez. 2024.

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