A Lei n. 10.826/03, denominado Estatuto do Desarmamento, dispôs, em seu art. 32, uma espécie de "anistia", ou, descriminalização temporária, aos possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas, já que poderiam, "no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal". Depois, prorrogou-se esse prazo de 180 (cento e oitenta) dias, por duas vezes, até a data final de 23/10/05 (Lei n. 11.191/05, art. 1º). Alterou-se ainda a redação sobre o termo inicial de 180 (cento e oitenta) dias (art. 1º, da Lei n. 10.884/04) para "fluir a partir da publicação do decreto" que regulamentou os arts. 29. a 32 da nova Lei de Armas.
Vale mencionar que o Estatuto do Desarmamento revogou expressamente a Lei n. 9.437/97 (art. 36) e cominou aos crimes de posse ilegal de arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido e restrito, penas mais desfavoráveis aos condenados em comparação com a lei revogada.
A par desses dados e de acordo com o entendimento consolidado no Colendo Superior Tribunal de Justiça (RHC n. 16938, HC n. 42374, HC n. 39787), sabe-se que a Lei n. 10.826/03, em virtude do preceituado no art. 32, tem uma peculiaridade: seus arts. 12. e 16, referentes à posse irregular de arma de fogo, de uso permitido e restrito, devem ser considerados atípicos em face da "abolitio criminis temporária" e da "vacatio legis indireta". Afirma-se em tais julgados que esses crimes ficam "desprovidos de eficácia durante aquele período de 180 (cento e oitenta) dias", na forma como estabelece a Lei n. 10.826/03 (art. 32).
Também está assentado na jurisprudência que os demais delitos do Estatuto do Desarmamento, como o de porte ilegal de arma de fogo (arts. 14. e 16), desde a sua entrada em vigor, detêm eficácia plena (STF, RHC n. 86723, RHC n. 86681). À conduta típica de portar arma de fogo, destarte, aplica-se o "princípio da continuidade normativa típica" (STJ, HC n. 41619).
Dúvida maior advém nos julgamentos envolvendo crimes de posse ilegal de arma de fogo cometidos ainda sob a égide da revogada Lei n. 9.437/97 (art. 10). Aplica-se, no caso, a abolitio criminis surgida com a Lei n. 10.826/03 (art. 32) desde a vigência daquela lei revogada até o dia 23/10/05? Ou não, só a partir da entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, ou do seu Decreto, até esse termo derradeiro?
Para resolver tal problema entendo que o raciocínio correto é – mormente porque mais benéfico ao réu - a aplicação do art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal, e do art. 2º, do Código Penal.
Dá-se tal hipótese justamente em razão de uma "ficção" da Lei n. 10.826/03 que criou, em face do período de vacatio legis dos crimes de posse irregular de arma de fogo, uma lei intermediária descriminalizadora (STF, HC n. 418876; TACRIM-SP in RT n. 534/364).
Havia a Lei n. 9.437/97 (a), revogada com a entrada em vigor da Lei n. 10.826/03. Esta, no início, não era completamente eficaz (b), pois, as sanções dos arts. 12. e 16 (em relação à posse) até 23/10/05, não possuíam eficácia, eram atípicas, seja desde a sua publicação, seja da entrada em vigor do seu Decreto. Agora, a partir do dia 24/10/05, inclusive (art. 10, do CP), vige em sua plenitude a nova Lei de Armas (c) e, portanto, os delitos de posse irregular de arma de fogo de uso permitido e restrito detêm eficácia, aplicando-se dessa data em diante as penas mais graves do Estatuto do Desarmamento.
Saliente-se que as Medidas Provisórias nºs. 229/04 e 253/05 – hoje já convertidas nas leis ordinárias nºs. 11.118/05 e 11.191/05, respectivamente - que prolongaram tal período de "anistia" do art. 32, da Lei n. 10.826/03, puderam ser utilizadas para legislar em matéria penal, já que em benefício do réu (STF, RE n. 254.818).
Outrossim, infere-se que qualquer conclusão limitadora do termo inicial dessa "anistia" do art. 32. do Estatuto do Desarmamento é inconstitucional por afrontar o art. 5º, XL, da Carta Magna. É que a Constituição Federal vedou qualquer limitação à retroatividade da lei sucessiva que abolir uma conduta criminosa, como ocorreu com o crime de posse ilegal de arma de fogo (art. 10, caput, da Lei n. 9.437/97 e arts. 12. e 16, da Lei n. 10.826/03), até o dia 23/10/05, inclusive.
Se fosse considerado o termo inicial da descriminalização dessas condutas a data da vigência do Decreto n. 5.123/04, do Diário Oficial da União (DOU) de 02.07.04, publicada a Lei n. 10.826/03 no DOU de 23.12.03, deduzir-se-ia que entre essas datas, os crimes de posse ilegal de arma de fogo deveriam ser entendidos como típicos. Ou, no mínimo, tais delitos (arts. 12. e 16) seriam eficazes entre o marco inicial de vigência do Estatuto do Desarmamento e o da Lei n. 10.884/04, do DOU de 17.06.04, porquanto alterou a redação do art. 32, do Estatuto, em prejuízo do réu. Um absurdo!
Em vista disso, deve o magistrado extinguir, mediante provocação ou de ofício, a "punibilidade" (art. 107, inc. III, do CP e art 386, inc. III, do CPP) de denunciados por crimes de posse irregular de arma de fogo cometidos do dia 23/10/05 para trás, até mesmo àqueles cuja decisão condenatória já transitou em julgado (Súmula n. 611, do STF e art. 66, inc. I, da Lei n. 7.210/84), por atipicidade da conduta. Por tais acusações praticadas nesse período, frise-se, sequer pode alguém ser mantido preso, dentre outros efeitos de uma lei descriminalizadora (cf. lições de Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, no livro Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, RT, 2ª ed., pp. 233/234).
Já houve pronunciamento jurisprudencial em sentido diverso (STJ, HC n. 43573) ao ora defendido mas que, pelo exposto, pode gerar incongruência crassa. Por exemplo, na hipótese de o réu ter sido preso acusado de posse ilegal de arma de fogo um dia antes da entrada em vigor da Lei n. 10.826/03, sob a égide da Lei n. 9.437/97, seria condenado por este delito, enquanto se preso fosse na data da entrada em vigor do Decreto do Estatuto do Desarmamento, no período da denominada "abolitio criminis temporária", deveria ser solto e absolvido por atipicidade da conduta. E, pior, entre a publicação da Lei n. 10.826/03 e a vigência do Decreto n. 5.123/04, as condutas dos arts. 12. e 16 seriam plenamente aplicáveis!
Por fim, enfatizo que na data de 16.03.06, no site do Superior Tribunal de Justiça, publicou-se notícia de recente e inédita decisão acerca do tema ora defendido (vide Apn 394, relator Min. José Delgado).