3. AS LEIS AMBIENTAIS E DE BIOSEGURANÇA NO BRASIL
De suma importância para que se chegue ao objeto desse trabalho, ou seja, à Lei de Biossegurança, é o conhecimento de toda a evolução legislativa em nosso país, no que diz respeito à proteção ambiental e à própria biossegurança.
Antes da Constituição Federal de 1988, com exceção às Ordenações Filipinas, não houve um amparo específico ao Direito Ambiental, mas sempre se fez sua correlação à segurança da população ante doenças e outros problemas semelhantes. Assim, só se tutelava o meio ambiente quando havia dano potencial à saúde humana.
Dessa forma, ensina Alexandre de Moraes que
não obstante a preocupação com o meio ambiente seja antiga em vários ordenamentos jurídicos, inclusive nas Ordenações Filipinas que previam no Livro Quinto, Título LXXV, pena gravíssima ao agente que cortasse árvore ou fruto, sujeitando-o ao açoite e ao degredo para a África por quatro anos, se o dano fosse mínimo, caso contrário, o degredo seria para sempre, as nossas Constituições anteriores, diferentemente da atual, que destinou um capítulo para sua proteção, com ele nunca se preocuparam. 46
Foi nessa época, contudo, que ocorreu o desenvolvimento basilar do que hoje compõe nossa legislação vigente. Antônio Herman V. Benjamin, citado por Felipe Luiz Machado Barros, divide esse período em três fases que, apesar de distintas, não são compartimentadas, sendo elas a fase da exploração, a fragmentária e o período holístico. 47
Na fase da exploração, cuja duração foi do período colonial aos anos sessenta do século passado, havia praticamente a inexistência jurídica, salvo em decretos isolados voltados para a proteção determinadas culturas. O intuito de preservar não existia, sobretudo por tratar-se de uma época em que explorar significa ampliar as fronteiras e abastecer a metrópole de matéria-prima.
Fragmentário foi o período em que surgiu a preocupação com as espécies de recursos naturais existentes, cabendo à lei regulamentar a atividade exploradora. Aparecem então os Códigos Florestal (Lei nº 4.771/65) , de Caça (Lei nº 5.197/67) , de Pesca (Dec-lei nº 221/67) e de Mineração (Dec-Lei nº 227/67) , bem como a Lei de Responsabilidade por Danos Nucleares (Lei nº 6.453/77) , a Lei do Zoneamento Industrial nas Áreas Críticas de Poluição (Lei nº 6.803/80) e a Lei de Agrotóxicos (Lei nº 7.802/89) .
Por último, o período holístico é o que apresenta o surgimento da preocupação integral com o meio ambiente, que passa a receber tutela jurídica especifica. Como ícones do inicio dessa fase, e da crescente preocupação em normatizar o Direito Ambiental, pode-se citar a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº. 6938/81) e a própria Constituição Federal de 1988.
Além dessas, outras leis surgiram abordando o meio ambiente e a biossegurança em diferentes aspectos, sendo as mais importantes estudadas a seguir, mostrando, antes do estudo específico da nova Lei de Biossegurança, qual a realidade normativa em que se encontra o país, quais serão os limites dessa nova lei e quais os complementos que o sistema atual já a oferece.
3.1. Constituição Federal de 1988
Conforme acima exposto, as primeiras normas voltadas especificamente para a defesa do meio ambiente, bem como o primeiro corpo normativo a apreciar o meio ambiente como bem jurídico indisponível, foi a Constituição Federal de 1988.
A abordagem que dá ao tema possui, acertadamente, caráter preventivo, ou seja, a norma transmite à sociedade e ao Poder Público o dever de defender e preservar o meio ambiente, preconizando ainda pela fiscalização e pela aplicação do estudo prévio de impacto ambiental. Evita-se assim que prevaleça apenas o intuito corretivo, que também existe, compreendendo as sanções e punições para os causadores dos danos consumados.
Quanto à obrigatoriedade do estudo prévio de impacto ambiental a qualquer atividade que ofereça potencial risco, é ela obrigatória no caso das deliberações sobre OGMs, uma vez que a incerteza de seus efeitos e conseqüências configuram risco em potencial ao meio ambiente, como ensina Szklarowsky:
(...) qualquer atividade ou obra que possa eventualmente degradar o meio ambiente ou produzir dano à saúde, depende, para o seu exercício, de avaliação prévia das autoridades e dos órgãos competentes. Esta exigência encontra fundamento na Constituição e na legislação regulamentadora." 48
Assim também Maria Célia Delduque, ao apontar que o "artigo 225, inciso IV e V prevê o EIA, previamente, para a instalação de atividades potencialmente causadora de degradação ambiental." 49
A Constituição também traz consigo, explícita ou implicitamente, os Princípios Fundamentais do Direito Ambiental, a seguir expostos, assim como os principais artigos relacionados ao art. 225, que trata do meio ambiente, e à tutela ambiental.
3.1.1. Princípios Fundamentais do Direito Ambiental
Os princípios do direito ambiental contidos na Constituição Federal são o suporte para a elaboração e a interpretação de todos os preceitos raciocínios que versem sobre a saúde humana e ambiental em face da engenharia genética, tanto dentro do ordenamento nacional como nas relações internacionais. Segundo Paulo Affonso Lemes Machado 50, são eles:
a) Princípio da Educação Ambiental: consiste no direito fundamental a condições de vida satisfatórias, compreendendo aí o bem-estar, a dignidade e o ambiente saudável. Conforme a CF, art. 225, parágrafo primeiro, inciso VI, "promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente";
b) Princípio do Desenvolvimento Sustentável, que é o dever de se fornecer, na exploração do meio ambiente, apenas o necessário para as gerações presentes, de forma a não comprometer as futuras;
c) Princípio do Poluidor-Pagador, que dá ao causador do dano o dever de indenizá-lo. Aqui, eleva-se também ao âmbito internacional, comprometendo o Estado em que ocorreu o dano a indenizar todos aqueles outros atingidos pelo prejuízo. Encontra previsão nos parágrafos segundo e terceiro do art. 225. da Constituição Federal;
d) Princípio da Igualdade Material, que rege as relações internacionais no sentido de equiparar proporcionalmente os deveres de cada Estado, de acordo com sua capacidade;
e) Princípio da Normatização, que compromete cada país a atualizar suas leis de acordo com a atualidade e a realidade em que se encontra. Conforme já mencionado, o Brasil teve sua pedra fundamental lançada com a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, e hoje apresenta um corpo jurídico moderno e abrangente;
f) Princípio da Precaução, que visa prevenir ou dar margem de segurança a uma situação de perigo potencialmente possível. Encontra-se expresso no inciso IV do parágrafo primeiro do art. 225, na Constituição Federal, com a exigência do estudo prévio de impacto ambiental para atividades que impliquem risco potencial de dano ao meio ambiente;
g) Princípio da Prevenção, contido no caput do mesmo art. 225, indica que o Poder Público deve agir para prevenir os danos ambientais, e não somente para repará-los;
h) Princípio da Informação: impõe ao causador da degradação o dever de comunicar a autoridade pública competente, evitando maiores perdas com a demora, bem como ao Poder Público comunicar à sociedade do ocorrido e das providências a seres tomadas. Contudo, é de difícil aplicabilidade, visto que a esperança de impunidade do agente prevalece, caso seja difícil que outrem tome conhecimento de seu ato em tempo hábil para denunciá-lo;
i) Princípio da Participação Popular: norteador da imprescindível participação das pessoas físicas e das organizações não governamentais na defesa da natureza. Para tanto, o art. 5º da Constituição Federal garante a todos o acesso irrestrito ao Poder Judiciário (incisos XXXIV e XXXV) , e a todo cidadão o direito de mover uma ação popular, quando cabível (inciso LXXIII) .
3.1.2. O art. 225. da Constituição Federal
Dispõe o caput do artigo 225 da Constituição Federal:
Art. 225. - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
É clara a iniciativa do legislador em promover a participação popular na defesa ambiental, não só ao fazer do meio ambiente ecologicamente equilibrado um bem jurídico indisponível, mas ao compartilhar a responsabilidade de zelo por ele entre o Poder Público e a sociedade. Para tanto, é fundamental que se pratique o desenvolvimento sustentável, prescrito na premissa que determina a preservação e a defesa para as "presentes e futuras gerações".
Ao Poder Público é incumbido, ainda, o dever de assegurar a efetividade da qualidade do meio ambiente, valendo-se do poder de fiscalizar todas as atividades que envolvam a natureza e a biogenética e de aplicar sanções penais e administrativas àqueles que derem causa a prejuízos (artigo 225, parágrafo terceiro) , conforme os incisos do parágrafo primeiro do artigo em questão e as disposições da legislação de biossegurança.
Desses incisos, o primeiro incumbe o Poder Público da preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais e do manejo ecológico das espécies e ecossistemas. Processo ecológico essencial é o fato natural indispensável à manutenção da vida em determinado ecossistema, como ocorre, por exemplo, nas inundações periódicas do Pantanal, conhecidas por pulsos de inundação, indispensáveis à rica biodiversidade da região 51; manejo ecológico é a intervenção no meio ambiente, voltada para o todo ou apenas para certas espécies de animais ou plantas, de modo que se permita as melhores condições de desenvolvimento da fauna e da flora e o equilíbrio ecológico em geral.
No mesmo sentido as redações dos incisos III e VII. Neste, determina-se a proteção da fauna e da flora, vedando práticas que coloquem em risco sua função ecológica, causem a extinção de espécies ou lhes provoquem maus tratos. Naquele, estabelece-se a necessidade de definição dos espaços territoriais especialmente protegidos, sendo que o parágrafo quarto do mesmo art. 225. dá à Floresta Amazônica, à Mata Atlântica, à Serra do Mar, ao Pantanal Mato-Grossense e à Zona Costeira o status de patrimônio nacional, assegurando a preservação de seus meio ambientes, inclusive no que diz respeito à exploração de recursos naturais.
Por sua vez, o inciso II incumbe ao Poder Público o dever de "preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético". O que se pretende é a preservação de um patrimônio genético riquíssimo, invejado por pesquisadores do mundo todo, e, ao mesmo tempo, evitar que as pesquisas sobre esse patrimônio se desenvolvam de modo a prejudicar as espécies naturais.
Para tanto, a Lei de Biossegurança cria a CTNBio para deliberar sobre assuntos que versem sobre os OGMs e as técnicas de engenharia genética em assuntos que envolvam o meio ambiente, incumbindo os Ministérios que tenham relação com determinada área natural a exercer a devida fiscalização, conforme explicado no estudo especifico dessa Lei.
Já o inciso IV do mesmo parágrafo prevê o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) como obrigatório no caso de qualquer atividade que ofereça risco potencial ao meio ambiente. Tal disposição é condizente com o Princípio da Precaução, melhor estudado em tópico próprio, que pretende evitar quaisquer danos ambientais decorrentes do uso descontrolado dos recursos naturais e dos frutos da biogenética.
Nesse sentido, sua aplicação é perfeitamente aplicável aos OGMs, visto que a imprevisibilidade de conseqüências configura, de fato, um risco em potencial à natureza.
No inciso seguinte (V) encontra-se uma referência indireta ao EIA, uma vez que impõe ao Estado o controle total sobre todas as atividades que possam comprometer a vida, a qualidade de vida ou o meio ambiente, e para o melhor exercício desse controle é necessário um conhecimento prévio do que pode atingir ou não o meio ambiente.
Correlacionam com a obrigatoriedade do estudo prévio de impacto ambiental os art. 6º e 170, VI, também da Carta Magna. Neste, afirma-se que a ordem econômica deve observar os Princípios de defesa do meio ambiente, ou seja, nenhuma atividade econômica pode sobrepor-se ao equilíbrio ambiental; naquele, o direito social à saúde garante à população alimentos saudáveis, livres de qualquer poluição, seja química ou genética.
Também é dever do Estado, conforme o inciso VI do mesmo parágrafo, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino, objetivando a conscientização da sociedade quanto à importância da preservação do meio ambiente e à aplicação de seus direitos em benefício da coletividade.
Por fim, na Carta Constitucional é incumbido ao explorador de recursos minerais o dever de recuperar o meio ambiente degradado (art. 225, parágrafo segundo) , além de estabelecer como indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelo Estado, se necessárias à proteção dos ecossistemas naturais, e determinar a necessidade de lei para a instalação e funcionamento de usinas nucleares, dada sua alta potenciabilidade de causar uma catástrofe ambiental (parágrafos quinto e sexto) .
3.1.3. Tutela Jurídica do Meio Ambiente
A Carta Magna de 1988 prevê como formas de tutela jurídica do meio ambiente a Ação Civil Pública Ambiental e a Ação Popular. Em ambos os casos, as liminares e as cautelares constituem excelentes armas processuais, tendo em vista que podem fazer com que a atividade potencialmente perigosa cesse até que se adapte à forma correta, ou que se interrompa o dano antes mesmo do julgamento do mérito, evitando o agravamento e a continuidade do prejuízo.
A Ação Civil Pública Ambiental é voltada diretamente contra o poluidor, devendo ser proposta, obrigatoriamente, pelo Ministério Público, ou por qualquer associação interessada em efetuar a defesa, juntamente com o MP, ou no caso de omissão desse.
Já a Ação Popular, prevista no inciso 5º, LXIII, permite a qualquer cidadão 52 o acesso à Justiça para, entre outros fins, resguardar o patrimônio ambiental de qualquer ato lesivo que o ponha em risco. Diferencia-se da primeira porque é voltada contra a autoridade pública que deveria fiscalizar e impedir a ocorrência do ato lesivo e o terceiro que dele beneficiar-se.
Existe ainda a hipótese de indenização pleiteada por aquele que sofrer o dano, movida contra o causador, prevista no Código Civil.
O que temos em nosso ordenamento é um amplo acesso à proteção ambiental, sendo permitido aos mais diversos setores sociais o exercício da defesa do meio ambiente em prol de toda a coletividade. Da mesma opinião as palavras de Sydney Sanches:
(...) vê-se, pois, que, no Brasil, a proteção ao ambiente só não se tornará efetiva se os legitimados a defendê-lo não o fizerem adequadamente ou não estiverem devidamente aparelhados para isso. Ou, ainda, se o Poder Judiciário, com suas eternas deficiências de pessoal suficiente e qualificado, suas invencíveis insuficiências orçamentárias e administrativas, ou à falta de entusiasmo de seus membros e servidores, não puder responder, a tempo e hora, aos reclamos da sociedade brasileira. 53
3.2. O Princípio da Precaução
Consiste o Princípio da Precaução, anteriormente apresentado, em dar a uma situação que apresente risco de dano potencial envolvendo o meio ambiente a devida atenção, de forma a não permitir a existência de condutas que, dada sua forma, sua finalidade ou seus meios, possam vir a causar algum impacto ambiental.
Para tanto, as agências deliberadoras acerca do tema tem como arma a garantia prevista na Constituição Federal da elaboração do Estudo de Impacto Ambiental, juntamente com o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) , que objetivam o devido estudo dos danos que possam vir a ocorrer, se houverem, prescrevendo também as proibições e medidas de segurança a serem adotadas.
Segundo Maria Rafaela Junqueira Bruno Rodrigues, "a doutrina e jurisprudência têm se manifestado pela adoção do princípio da precaução no direito ambiental, que consiste em proteger-se o meio ambiente de maneira antecipada, não deixando que aconteça sua degradação para que, depois, se tomem providências a respeito." 54
Evita-se, dessa forma, a aparição de problemas cujo combate em meios naturais é extremamente complicado, visto que implica na aplicação de produtos estranhos ao ambiente, ou na destruição da área atingida. Recordam Rubens Nodari e Miguel Pedro Guerra, levantando caso já ocorrido, quando o uso indiscriminado de agrotóxicos, desamparado de rigorosa legislação e livre de fiscalização, trouxe vários problemas de saúde pública e ambiental. 55
O Princípio não pretende, de forma alguma, ignorar, impedir ou imobilizar qualquer avanço científico. Exige-se, sim, a segurança razoável para garantir a preservação da natureza e a exploração sustentável, permitindo o uso e gozo das gerações futuras, conforme ensina Patrícia de Lucena Cornette:
É importante salientar que o Princípio da Precaução não pretende restringir ou ignorar qualquer avanço científico. Mas, sim, exigir, de cada Estado, a incorporação de um nível de segurança razoável nas avaliações de riscos de novas tecnologias que possam drasticamente afetar o meio-ambiente. 56
Importante observar que a aplicabilidade desse princípio é sempre anterior ao início da atividade que oferece risco, não se esperando a configuração de qualquer dano. Impedir o prosseguimento de uma atividade que, por ter sido praticada, já forneceu informações suficientes quanto à potencialidade de seus danos é ato baseado no Princípio da Prevenção.
Percebe-se, assim, a temporariedade como característica da precaução, uma vez que, aplicado o princípio, ele perdurará até que se tenha certeza sobre as conseqüências reais, liberando-se ou vetando definitivamente a atividade.
Dessa opinião os professores Toshio Mukai, Rubens Onofre Nodari, Miguel Pedro Guerra, Patrícia de Lucena Cornette e o português Fernando Alves Correia, dentre outros.
Quanto às críticas, muitos afirmam haver injustiça no impedimento da aplicação da biogenética em face do desconhecimento de suas conseqüências, ainda que essa proibição seja temporária. Defendem que deve haver uma proporcionalidade entre a restrição e as hipóteses de risco, sendo a atividade revestida de mais liberdades ou restrições conforme seus efeitos são avaliados na prática. O argumento principal é que nenhuma atividade que envolve o meio ambiente apresenta risco zero.
Nessa corrente, Helga Hoffmann afirma que
a precaução tem de ser proporcional ao risco, cientificamente avaliado, de tal maneira que se o que está num dos pratos da balança for mais preconceito do que risco, é socialmente injusto defender políticas públicas que apenas atendam de imediato a um desconforto neoludita, travando a longo prazo o avanço de uma tecnologia que permite cultivos com menos pesticidas e menor uso de recursos naturais, capaz de aumentar a produtividade e diminuir riscos, o que permitiria melhorar as qualidades nutricionais de alguns alimentos, com modificações genéticas que aumentariam o seu teor de vitaminas e proteínas. 57
O que se esquece, nesse ponto, é que não se pode afirmar que a inserção dos organismos geneticamente modificados é, inicialmente, um risco mínimo que pode ser agravado; é, sim, um risco desconhecido e ainda não mensurado. Entretanto, é dessa forma que vem agindo a CTNBio em suas decisões quanto as atividades que envolvem os OGMs.
No que diz respeito à lei, é perceptível a intenção do legislador em acolher o princípio da precaução dentro da Constituição Federal de 1988, ao exigir o estudo prévio de impacto ambiental em atividades que ofereçam potencial risco de dano, conforme o art. 225, parágrafo primeiro, incisos IV e V.
Nesse sentido também a Resolução n.º 001/1986 do CONAMA, em seu art. 6º, inciso II, que estabelece que o estudo de impacto ambiental desenvolverá
a análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos) , diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazo; temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade: suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais.
Contudo, foi apenas na Conferência Mundial do Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro, no ano de 1992, popularmente conhecida como Eco-92, através da Resolução n.º 394 da Comunidade Andina, em sua Agenda 21, Princípio 15, que o Princípio da Precaução ganhou texto, passando a ter entendimento uniforme em todo o mundo, ou seja:
Agenda 21 – Princípio 15 - A fim de proteger o meio-ambiente, a atitude de precaução deve ser amplamente adotada pelos Estados, de acordo com suas possibilidades. Onde haja ameaça de sérios e irreversíveis danos, a falta de certeza científica não poderá ser usada como razão para o adiamento de medidas efetivas para prevenir a degradação ambienta. 58
Também nessa Conferência preconizou-se a necessidade do estudo de impacto ambiental, conforme o Princípio 17, dizendo que, "como instrumento nacional, deve ser empreendida para atividades planejadas que possam vir a ter impacto negativo considerável sobre o meio ambiente, e que dependam de uma decisão de uma autoridade nacional competente".
Além desses, outros 25 princípios foram aderidos pelos 174 países que participaram do evento.
Quanto à validade desse princípio dentro do ordenamento jurídico nacional, explica o emérito professor Phillipe Sands que:
(...) tal princípio, expresso na Declaração do Rio e devidamente incorporado nas Convenções Internacionais de Mudanças Climáticas e Conservação da Diversidade Biológica, faz parte do direito costumeiro internacional, sendo, portanto, uma regra de jus cogens que, em países como o Reino Unido, se incorpora automaticamente ao direito interno. 59
Tomando-se em conta o anteriormente mencionado artigo 225, pode-se, portanto, considerar o Princípio da Precaução como devidamente incorporado ao sistema legislativo nacional, devendo, portanto, ser observado, exigindo-se a elaboração do EIA/RIMA nos casos que envolvem a autorização de plantio ou descarte de OGMs na natureza, dada a imprevisibilidade das conseqüências daí decorrentes.
3.3. A Lei de Biossegurança de 1995 (Lei n.º 8.974/95)
A Lei de Biossegurança, promulgada em 5 de janeiro de 1995, elaborada para regulamentar o art. 225, parágrafo primeiro, da Constituição Federal, dispunha, conforme seu art. 1º, sobre
normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado (OGM) , visando a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente. 60
Terminava, assim, a visão antropocêntrica do meio ambiente, uma vez que se equiparavam ao homem a fauna e a flora. Isso se deve à forte inspiração do legislador nos Princípios Ambientais, levando a lei a dispor sobre a agricultura, a saúde, a fauna, a flora e o meio ambiente, envolvendo inclusive os Ministérios relacionados com cada um desses setores.
Quanto à capacidade para trabalhar com os OGMs, vedava a lei, em seu art. 2º, parágrafo segundo, o acesso de pessoas físicas a atividades ou projetos envolvidos com o tema. A justificativa para tal medida estava no auxílio à fiscalização, evitando a ploriferação de laboratórios ou centro de pesquisas individuais por todo o território nacional, o que limita as pessoas capacitadas a lidar com a biotecnologia trabalhem apenas naqueles centros já autorizados, que são sempre pessoas jurídicas de direito público ou privado.
Entretanto, essa decisão do legislador causou polêmica por ferir os preceitos constitucionais previstos nos artigos 5º, XIII, e 170, que estabelecem, respectivamente, a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, se atendidas as qualificações que a lei estabelecer, e o livre exercício de qualquer atividade econômica, dependendo de autorização dos órgãos públicos apenas nos casos previstos em lei. Por isso, chegou-se a questionar a constitucionalidade da disposição:
Louvável a intenção do legislador ordinário ao não querer, por certo, a proliferação de clínicas ou laboratórios biogenéticos em toda a extensão do território nacional, o que dificultaria a fiscalização. Contudo, o espírito da norma não é o de dificultar o trabalho de profissionais sérios existentes, mas que, de acordo com o dispositivo ordinário supracitado, têm que estar empregados a alguma pessoa jurídica para, assim, poderem trabalhar. Até mesmo pela leitura dos objetivos da lei percebemos claramente que este artigo encontra-se um tanto quanto destoante. O Estado existe para exercer o seu Poder de Polícia, e não para, por comodidade, vedar o acesso ao trabalho, por suposta facilitação da fiscalização, sendo, por estas razões, inconstitucional o § 2º, do art. 2º, da Lei nº 8.974/95. 61
Cada pessoa jurídica autorizada deveria criar uma Comissão Interna de Biossegurança (CIBio) , com um engenheiro-chefe designado, a qual teria como obrigações informar à CTNBio e à população todas as ocorrências durante os trabalhos, todas as avaliações de risco e acidentes que viessem a acontecer, estabelecer programas preventivos a possíveis danos futuros e encaminhar à CTNBio todos os documentos solicitados, quando necessário.
Quanto às definições dos termos técnicos envolvidos com as atividades, encontravam-se as mais freqüentes elencadas no art. 3º, dentre eles a de organismo geneticamente modificado, tido como "organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética".
Definia, ainda, no artigo seguinte, que não seria aplicada a lei nos casos em que não houvesse, dentro do processo tecnológico, OGM como receptor ou doador de material genético.
Aos Ministérios da Saúde, Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária, Meio Ambiente e Amazônia Legal cabia o dever de, através do parecer técnico da CTNBio, fiscalizar e monitorar as atividades relacionadas aos OGMs, emitir certificados autorizando sua comercialização ou liberação, cadastrar e autorizar o funcionamento de uma empresa no setor biogenético, autorizar importações desses organismos e encaminhar os dados obtidos sobre as atividades exercidas à CTNBio, auxiliando na elaboração dos pareceres, que então seriam publicados (art. 7º) .
Imputava ao autor do dano a responsabilidade civil objetiva, ou seja, a responsabilidade de indenizar e reparar o ocorrido independentemente de culpa. Além disso, em seu art 13, estabelecia como crime a intervenção in vivo em animais, salvo para o avanço da pesquisa tecnológica e seu desenvolvimento, e a liberação ou descarte de OGM em desacordo com a norma e o estabelecido pelo CTNBio. Por força do art. 30. da nova Lei de Biossegurança, esse dispositivo continua em vigor.
Finalmente, a lei estabelecia competências ao CTNBio, bem como baseava nele sua estrutura de funcionamento, conforme demonstrado. Porém não trazia regulamentação ao órgão, falha corrigida apenas com o Decreto 1752/95, a ser estudado a seguir.
Em matéria alheia ao objeto do presente deste trabalho, a lei dispunha sobre a pesquisa genética em células germinativas humanas, estabelecendo os crimes a ela relacionados.
3.4. O Decreto 1.752/95, a CTNBio e a questão do EIA/RIMA
Apesar das várias menções presentes na Lei de 1995 à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, não havia ali qualquer dispositivo legal que efetivamente a criasse e estabelecesse suas diretrizes e competências, visto que os artigos relacionados a essas disposições sofreram veto presidencial. Desses artigos, destaca-se o quinto, que criava oficialmente a Comissão, vetado porque a competência para a criação de órgãos públicos é do Presidente da República, através de Projeto de Lei, e não do Poder Legislativo, como ocorreu.
De fato, a composição, as competências e o funcionamento da CTNBio só foram estabelecidos com o Decreto n.º 1.752, de 20 de dezembro de 1995; sobre sua criação legal, esta só ocorreu com a edição da Medida Provisória n.º 2.919-9, de 23 de agosto de 2001, a qual estabelecia, ainda, a convalidação de todos os atos praticados pela Comissão antes de sua oficialização (art. 4º) .
Nesse momento, a CTNBio ganhou forma, constituindo um órgão colegiado multidisciplinar que tem como finalidade prestar apoio técnico e assessorar o Governo Federal na Política Nacional de Biossegurança, no tocante aos OGMs. Por força do art. 1º-A da Medida Provisória, a CTNBio ficava vinculada à Secretaria Executiva do Ministério da Ciência e Tecnologia, que recebia, portanto, a delegação para deliberar acerca dos organismos geneticamente modificados.
Sobre as atribuições da CTNBio, criticou Patrícia de Lucena Cornette:
Tal delegação de poder tem sido bastante controvertida, em particular no que concerne ao risco ambiental de transformar OGMs em tendência dominante na produção agrícola do país. O Capítulo II, do Decreto 1752/95, dispõe sobre as atribuições da CTNbio, conferindo à Comissão a atribuição de preparar uma opinião técnica conclusiva que lhe garante, entre outros, o poder de produzir, usar, comercializar, transportar e dispor de qualquer OGM no país. Este extensivo poder dado à Comissão abriu a porta para decisões arbitrárias, muitas das quais em flagrante violação à Constituição, gerando intensos litígios. 62
Quanto às demais atribuições dadas à CTNBio, serão resumidamente apresentadas suas características básicas, sendo melhor apresentada sua situação atual no capítulo que versa sobre a nova legislação de biossegurança, a qual, inclusive, revogou os dispositivos aqui mencionados.
3.4.1. Composição da CTNBio
A composição da Comissão, apresentada no art 7º do Decreto n.º 1.752/95, foi considerada bem formulada e adequada às necessidades, uma vez que englobava entre seus membros pessoas das mais diversas áreas que tivessem interesse econômica, social, político ou tecnológico sobre os OGMs e a biogenética.
Integravam a CTNBio, através de designação do Ministro da Ciência e Tecnologia:
a) oito especialistas de notório saber científico e técnico, sendo dois da área humana, dois da área animal, dois da área vegetal e dois da área ambiental;
b) um representante do Ministério da Ciência e Tecnologia, um da Saúde, um do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, um da Educação e do Desporto e um das Relações Exteriores;
c) dois representantes do Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária, um da área animal e outro da vegetal;
d) um representante de órgão legalmente constituído da defesa do consumidor;
e) um representante de associação legalmente constituída no setor empresarial de biotecnologia;
f) um representante de órgão legalmente constituído de proteção à saúde do trabalhador.
Não se fez menção, contudo, à forma em que seria exercida a participação popular junto à CTNBio. Apesar de o art. 225. da Constituição Federal impor, com relação ao meio ambiente, "ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações", o Decreto apenas regia a restrição da participação da sociedade em virtude da segurança do sigilo de informações, conforme o art. 15.
3.4.2. Competências da CTNBio
De acordo com o Decreto, em seu artigo 2º, competia à CTNBio:
a) Propor a Política Nacional de Biossegurança;
b) Acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e científico na biossegurança e em áreas afins;
c) Relacionar-se com instituições voltadas para engenharia genética e a biossegurança a nível nacional e internacional;
d) Propor o Código de Ética de Manipulações Genéticas;
e) Estabelecer normas e regulamentos relativos às atividades e projetos que contemplem construção, cultivo, manipulação, uso, transporte, armazenamento, comercialização, consumo, liberação e descarte de OGMs;
f) Classificar os OGMs segundo o grau de risco, definindo os níveis de segurança a eles aplicados e as atividades consideradas insalubres e perigosas 63;
g) Estabelecer os mecanismos de funcionamento das Comissões Internas de Biossegurança - CIBio, as quais devem atuar no âmbito de cada instituição que se dedique a ensino, pesquisa, desenvolvimento e utilização das técnicas de engenharia genética;
h) Emitir parecer técnico conclusivo sobre os projetos relacionados a OGM pertencentes ao grupo de risco II;
i) Apoiar tecnicamente os órgãos competentes no processo de investigação de acidentes e de enfermidades verificadas no curso dos projetos e das atividades na área de engenharia genética, bem como na fiscalização e monitoramento de projetos e outras atividades previstas na lei;
j) Emitir parecer técnico prévio conclusivo sobre registro, uso, transporte, armazenamento, comercialização, consumo, liberação e descarte de produto contendo OGM ou derivados, encaminhando-o ao órgão de fiscalização competente;
k) Publicar no Diário Oficial da União, previamente ao processo de análise, extrato dos pleitos que forem submetidos à sua análise, referentes à liberação de OGM no meio ambiente;
l) Exigir como documentação adicional, quando entenda necessário, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA) de projetos que envolvam a liberação de OGM no meio ambiente;
m) Nomear, quando necessário, para a avaliação de projetos específicos, consultores ad hoc;
n) Propor modificações na Lei 8.974/95.
O ponto mais controverso dessas atribuições está na possibilidade de a CTNBio exigir o EIA/RIMA apenas como documentação adicional para a elaboração de seu parecer técnico conclusivo sobre o organismo geneticamente modificado e a atividade a ele relacionada, conforme os incisos XII e XIV do decreto.
O parecer técnico conclusivo da CTNBio, necessário para qualquer atividade que envolva OGMs, nos termos do decreto, é o posicionamento da Comissão em relação à atividade a ser exercida e os riscos que ela implica.
Entretanto, tendo em vista a complexidade e a quantidade de dúvidas que ainda cercam os alimentos transgênicos, não pode a CTNBio deixar de lado a garantia constitucional de exigir que a pessoa jurídica interessada apresente o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) , que é a análise científica dos riscos inerentes às atividades relacionadas ao OGM, seguida do Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA) , onde transcrevem-se todas as conclusões extraídas da primeira análise, em obediência ao Princípio da Informação, e prescrevem-se as medidas de segurança e restrições a serem impostas.
Segundo Paulo de Bessa Antunes,
o EIA é conditio sine qua non para a concessão de qualquer licenciamento de obra ou empreendimento de impacto ambiental. Destarte, o licenciamento transmutou-se em ato administrativo complexo, cujo requisito básico é a apresentação e aprovação do RIMA, em seus aspectos técnicos e formais. Parece-me que, por força de caráter eminentemente público, assumido pelo EIA, os requisitos formais para sua elaboração assumem natureza imperativa, de essencialidade para a própria validade do ato. A formalidade administrativa é, aqui, um pressuposto capaz de garantir à coletividade a correta utilização do meio ambiente. 64
Assim também o entendimento de Patrícia de Lucena Cornette:
Não obstante o fato de que tanto a Constituição Federal quanto a Política Nacional de Meio-Ambiente exigem a produção de um Relatório Sobre Impacto Ambiental, nos projetos que possam causar significativa degradação ao ambiente, as regras da CTNbio apenas fazem uma breve menção ao processo de elaboração do RIMA, em seu Art. 2, XIV. De acordo com o previsto no Art. 2, o relatório deve ser requerido apenas quando a Comissão entenda ser necessário. Logo, o RIMA deixou de ser uma garantia constitucional, tornando-se um item opcional que pode ou não ser requerido, independentemente do impacto ambiental da atividade. Com efeito, esse dispositivo permite que a Comissão se sobreponha a todas as demais agências nacionais, incluindo o Conselho Nacional do Meio-Ambiente – CONAMA, agência responsável pela execução da Política Nacional do Meio-Ambiente. 65
É perceptível, no caso, um equívoco do legislador, que deu à Comissão poder discricionário para deliberar nas questões que envolvam OGMs e seus derivados, enquanto a Constituição Federal, no art. 225, inciso IV, exige a apresentação do EIA/RIMA sempre que houver potencial perigo de dano ambiental, e, conforme demonstrado, não há como excluir esse risco diante do alto grau de incerteza cientifica que acerca os organismos geneticamente modificados.
Ademais, se os OGMs são realmente inofensivos, ou pouco ofensivos, como preconizam seus patronos e financiadores, não haveria razão para que as empresas de biotecnologia deixassem de apresentar os devidos relatórios, considerando-se que dessa forma economizariam os milhões gastos em campanhas publicitária e ações judiciais, investindo apenas em uma pesquisa de campo que preencheria todos os requisitos constitucionais e permitiria o trabalho definitivo com o OGM aprovado. 66
O que se espera é que passe a ocorrer a prevalência lógica da hierarquia da norma constitucional sobre a infraconstitucional, sendo exigida a apresentação do EIA/RIMA para que se demonstre cientificamente que o OGM em questão não constituirá uma potencial ameaça de degradação ambiental.
3.5. A Lei de Proteção aos Cultivares (Lei n.º 9.456/97)
Baseando-se na existência de variedades de plantas, chamadas de cultivares, criadas através de técnicas científicas e laboratoriais, foi aprovada a Lei de Proteção aos Cultivares. Dessa forma, permite-se que o responsável pelo desenvolvimento de uma nova cultivar, ou de uma cultivar essencialmente derivada de outra, obtida através da biotecnologia e da modificação genética, registre a variedade desenvolvida obtenha sua propriedade intelectual, podendo cobrar royalties daqueles que a cultivarem.
Cria-se o Serviço Nacional de Proteção aos Cultivares (SNPC) , vinculado ao Ministério da Agricultura e do Abastecimento, a quem compete a proteção dos cultivares nos termos da lei e conforme seu regimento interno.
A necessidade dessa lei se deu em face da lacuna na Lei de Propriedade Industrial, que nada dispunha acerca do domínio sobre seres vivos, não permitindo o registro e a cobrança sobre a aplicação da tecnologia desenvolvida.
3.6. As Medidas Provisórias da Soja Geneticamente Modificada
O imbróglio relacionado à soja geneticamente modificada teve início em 1998, quando a CTNBio liberou o cultivo da variedade Roundup ready, criada pela multinacional Monstanto, cuja característica é a resistência ao herbicida Roundup, fabricado pela mesma empresa.
Várias ações foram propostas no sentido de obstar a autorização, tendo em vista que não foi obedecido o requisito constitucional da elaboração do EIA/RIMA. Atualmente, encontra-se suspensa essa liberação, enquanto não é julgado o recurso oferecido pela criadora da variedade, proibida do plantio em primeira instância.
Mesmo diante dessa proibição, houve, a partir daquele ano, principalmente nos Estados do sul do país, a entrada ilegal de grande quantidade de sementes da soja transgênica, sobretudo através de contrabando pela fronteira com a Argentina, o que contrariava o dispositivo da Lei de Biossegurança de 1995 que determinava a prévia autorização do CTNBio para a importação de OGMs e seus derivados (art. 7º, inciso V) .
Assim, iniciou-se uma grande produção do alimento geneticamente modificado no Brasil. Daí às pressões político-econômicas exercidas pelos agricultores bastou o tempo de uma safra, fazendo com que o Governo Federal editasse a Medida Provisória n.º 113, de 26 de março de 2003, posteriormente convertida na Lei n.º 10.688, de 13 de junho de 2003.
Tal medida, adotada sob a alegação de urgência em face do risco de prejuízo aos produtores, com a perda da safra e a queda da produção nacional, autorizava a comercialização da safra já colhida no início de 2003, mas determinava a destruição das sementes e grãos remanescentes antes de iniciado o novo plantio.
Essa decisão levou grupos ambientalistas e de defesa do consumidor à propositura de algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, tendo em vista que a autorização de plantio de um OGM por meio de Medida Provisória não só fere o requisito constitucional do estudo do impacto ambiental, como deixa de apreciar os postulados de proteção ao consumidor (arts. 5º, XXXII, e 171, V, da Constituição Federal) e o parecer técnico conclusivo da CTNBio, como ensina Flávio Viana Filho:
Nesta esteira, perscrutando-se a intenção da Constituição, ideal alcançado com a análise sistemática dos dispositivos Constitucionais, conclui-se, de modo irrefutável, que a Medida Provisória n.º 113/03 é inconstitucional por conflitar o objetivo principal da ordem social: a busca do bem-comum que inclui a manutenção do equilíbrio ecológico, inclusive, com o controle estatal da propagação de organismos geneticamente modificados no ambiente.
Ao excluir a aplicação da Lei n.º 8.974/95 para safra de soja de 2003, o Governo Federal nada mais fez do que afastar os mecanismos legais asseguradores da biossegurança, ou seja, com a liberação do alimento, sem a elaboração do parecer técnico pelo CTNBio, permanecem desconhecidas pela ciência e pelo público em geral a existência de eventuais propriedades nocivas na soja geneticamente modificada assumindo o risco potencial que, eventualmente, pode ser criado para o meio ambiente e para a saúde da população. 67
Esqueceu-se o Governo Federal, nesse caso, de relevar o fato de os produtores conhecerem da ilegalidade de seus atos, primeiro ao contrabandear sementes, e depois ao desrespeitar uma Lei que estava em vigor desde 1995 e importar OGMs, assumindo os riscos a eles inerentes, não devendo, portanto, ter seus interesses defendidos e protegidos pela União, quanto mais em tamanha proporção, como completa o doutrinador:
Amparar os interesses dos produtores de soja que adquiriram sementes transgênicas em desacordo com a Lei e que, tinham plena consciência da ilegalidade de seus atos e, mesmo assim, assumiram o risco de terem perdas patrimoniais com a impossibilidade de escoamento de safra, não pode servir escusa para a edição de Medida Provisória conflitante com os interesses de toda a sociedade.
Inclusive, as sementes foram importadas e cultivadas muito tempo depois de a Lei n.º 8.974/95 estar em vigor, o que afasta qualquer alegação de desconhecimento da necessidade de procedimentos necessários para a liberação e utilização da soja transgênica na lavoura e para a comercialização dos produtos extraídos dessa soja. 68
Nova desobediência legal ocorreu também no ano de 2003. Não só não se procedeu a destruição das sementes e grãos geneticamente modificados, nos termos da lei, como foi dado início a uma nova safra.
O Governo Federal, a quem caberia o dever de impedir o prosseguimento de tais condutas e aplicar as devidas penas, agiu coniventemente ao editar a Medida Provisória n.º 131, de 25 de setembro de 2003, convertida na Lei n.º 10.814, de 15 de dezembro do mesmo ano.
Novamente, autorizava-se o plantio, restrito àqueles que já aviam feito o cultivo do OGM na safra anterior, desde que se firmasse o Termo de Ajustamento de Responsabilidade e Conduta, o que tornava o produtor do OGM apto a obter financiamentos junto ao Sistema Nacional de Crédito Rural. A colheita dessa produção teria prazo limite no final de janeiro de 2005, prorrogável até o final de março.
Quanto às proibições, voltavam-se ao plantio dos OGMs na safra de 2004 e ao plantio próximo às áreas naturais protegidas por lei. Ao consumidor, garantia a necessidade de haver, no produto, informações ostensivas sobre a origem do produto.
Finalmente, elencava a empresa produtora do organismo como solidariamente responsável, junto com o produtor, pelos eventuais danos causados, mantendo ainda a teoria objetiva da responsabilidade nas questões ambientais, prevendo que "a responsabilidade independe da existência de culpa do agricultor, pois os danos são decorrentes do sistema de produção, e não da intenção de quem planta." 69
Mais uma vez, foram movidas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a Medida Provisória pelo Procurador Geral da República, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG) e pelo Partido Verde.
Agora, além dos argumentos já apresentados contra a MP anterior, combatia-se também a alegação de urgência apresentada pelo Governo Federal, uma vez que, se a MP n.º 113/03 fora urgente e versava sobre esse assunto, inclusive trazendo consigo a proibição de um novo plantio de OGMs, não havia como promulgar medida igual e posterior. Esperava-se que fossem tomadas as medidas legais cabíveis contra aqueles que insistiram na manutenção das plantações.
Para Maria Célia Delduque,
O principal argumento nas três ações é de que a Medida Provisória nº 131 é inconstitucional, pois a liberação do plantio sem a realização prévia de estudos de impacto ambiental fere o disposto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Outro ponto questionado pela ADIN é a justificativa apresentada pelo Governo para a edição da MP nº 131 de 26 de setembro de 2003, de que havia urgência para se resolver o assunto (prejuízo econômico nacional de monta) . O texto defende que o Governo já havia admitido o plantio ilegal em março, quando publicou a MP nº 113 liberando a venda de soja transgênica da safra 2002/2003 e que não poderia haver nova invocação ao caráter de urgência para a safra futura de soja 2003/2004 em matéria já conhecida pelo atual governo há pelo menos seis meses. Além disso, argumentam as ações que a Medida Provisória também legitima situações criminosas, como o contrabando de sementes, a utilização de agrotóxico sem registro e o plantio de sementes não-autorizadas. 70
Conclui-se, portanto, pela inconstitucionalidade das Medidas Provisórias 113 e 131, por afastarem o plantio e a movimentação da soja geneticamente modificada dos requisitos de segurança exigidos pela Constituição Federal e pela legislação complementar, enquanto potencial oferecedora de risco de degradação ambiental.
3.7. O Protocolo de Biossegurança
O Protocolo de Biossegurança, assinado em 28 de janeiro de 2000 por países do mundo todo, inclusive o Brasil, é um marco internacional conseguido pelo movimento ambientalista, uma vez que reconhece de maneira ampla a hipótese de um OGM causar dano ao meio ambiente.
Por isso, traz em seu conteúdo disposições quanto ao movimento internacional dos organismos geneticamente modificados, estabelecendo que o país exportador deve fornecer ao importador todas as informações necessárias quanto ao produto e à demonstração de seus riscos, que correrão às expensas do vendedor. Nenhuma importação será efetuada sem que tenha a devida permissão.
Para Celso Marcelo de Oliveira,
A assinatura do Protocolo significa reconhecer que a engenharia genética pode trazer danos ao meio ambiente e à saúde humana e necessita, portanto, ser controlada. (...) O núcleo de provisão do Protocolo estabelece que o exportador (notificador) forneça informações ao país importador em relação às características e à avaliação de risco do organismo geneticamente modificado (OGM) . É fundamental que o país importador saiba quais são os OGMs que está comprando. Além disso, estes OGMs devem passar por uma avaliação dos riscos e problemas que a sua introdução no país importador pode causar. De acordo com o Protocolo, a avaliação destes riscos deve ser custeada e apresentada pelo exportador, se a parte importadora assim o exigir. Para todos os produtos, nenhuma importação é permitida até que a parte importadora a tenha aprovado. As exigências do Protocolo são semelhantes às que a União Européia (EU) exige para a introdução de um OGM em seus territórios. 71
3.8. O Decreto sobre a Rotulagem dos OGMs (Decreto n.º 4.680/03)
Com a chegada dos OGMs ao mercado consumidor, tornou-se necessária a informação da população quanto à procedência dos alimentos à sua disposição, sendo, para tanto, promulgado o Decreto n.º 4.680, de 21 de abril de 2003, que regula a rotulagem dos produtos que envolvem organismos geneticamente modificados em sua composição.
A base para a regulamentação dessa rotulagem está no Código de Defesa do Consumidor, que, em seu art. 6º, inciso III, exige que seja dado ao consumidor o direito básico da informação daquilo que é consumido. No tocante aos OGMs, esse dispositivo é agravado pelos artigos 8º e 9º, que dispõe, respectivamente, sobre a obrigatoriedade das informações se o produto colocado no mercado oferecer algum risco ao consumidor e sobre a obrigação do fornecedor do produto que oferece risco em informar ostensivamente o consumidor quanto ao que lhe pode acontecer.
art. 8º: Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.
art 9º:O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto. 72
Finalmente, o art. 12. do mesmo Código estabelece ao fabricante, produtor, importador ou comerciante responsabilidade civil objetiva no caso de omissão da rotulagem, ou da parcialidade da mesma. Entre os responsáveis, a responsabilidade e subsidiária.
Quanto ao símbolo usado na identificação dos OGMs – um triângulo com fundo amarelo, este foi implantado através da portaria do Ministério da Justiça n.º 2.658/03.
Especificamente sobre o Decreto, estabelece que qualquer produto que tenha em sua composição 1% (um por cento) de OGMs ou seus derivados deverá apresentar a rotulagem completa. Visa-se, com isso, impedir que produtores misturem a safra geneticamente modificada, fisicamente igual à produção natural, o que lhes permitiria escapar do dever de prestar informações aos consumidores e ganhar mercado com vendas a quem não consumiria um OGM, se dele tivesse ciência.
Estabelece, também, que à sociedade deve ser dado o máximo de informações acerca da segurança, economicidade, desempenho, composição e precauções relativas aos OGMs, através de campanhas publicitárias, manuais, serviços telefônicos gratuitos, ou qualquer outra via rápida e direta, tanto por parte do Estado, como ente regulador e fiscalizador, como por parte do fornecedor, obrigado pela mercadoria que oferece.
O que se pretende é que o consumidor "saiba a origem do produto, de onde ele vem, como foi produzido e de que substâncias ele é composto" 73, dando-lhe a base suficiente para que proceda a escolha entre o OGM e o produto natural, quando necessário.