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Inconstitucionalidade da taxa de registro de arma de fogo

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Agenda 07/04/2006 às 00:00

4 – TAXA DE REGISTRO DE ARMA E EXTRAFISCALIDADE.

            O Estatuto do Desarmamento, defendido por uns, combatido por outros, certamente mudará o destino deste País: para melhor, diminuindo a violência, ou para pior, deixando o cidadão honesto a mercê de criminosos, os quais provavelmente não entregarão suas armas. Sofreu duro golpe, quando recebeu a repulsa da grande maioria dos cidadãos brasileiros, que rejeitaram a proposta de proibição do comércio de armas de fogo, no referendo realizado no dia 23 de outubro de 2005.

            Foi editado com a promessa de diminuir os números de crimes violentos, muito embora combata apenas o instrumento utilizado para a prática da violência, não sendo atacado o fator principal da violência: o ser humano, privado inicialmente de qualquer atenção estatal, esquecido nas favelas, sem emprego, sem dinheiro, sem educação, sem cultura, sem saúde, sem futuro; corrompido pela concupiscência e pelas drogas, acabam alistando-se nas trincheiras do crime. Esse grave problema não foi atacado pelo mencionado Estatuto, nem mesmo por qualquer outra política do Governo Federal.

            Na ADIN nº. 3198, ajuizada pela Associação Nacional dos Proprietários e Comerciantes de Armas – ANPCA, com o objetivo de ver declarada a integral inconstitucionalidade da Lei 10.826/03, o Advogado Geral da União, exercendo seu mister, ao defender a constitucionalidade de tal lei escreveu que:

            O Estatuto do Desarmamento tem por finalidade restringir a posse e o porte de armas no Brasil e impedir o uso indiscriminado de armas, causa maior da violência no País. Não será certamente a solução para todo o problema da violência, mas é um grande passo no enfrentamento dessa chaga. O Estatuto do Desarmamento é uma grande conquista da sociedade brasileira na luta contra a violência.

            Por outro lado, imputou às armas a pecha de grande vilã da violência, ressaltando que,

            O comércio e o uso indiscriminado das armas de fogo estão intrinsecamente ligados ao aumento da violência e da criminalidade em todo o mundo" e que "Ao contrário da pregação dos lobbies de fabricantes e comerciantes de armas, e de parlamentares contrários ao controle das armas, a maioria dos brasileiros sabe que a liberação do comércio e do porte de armas só contribui para o aumento da violência. Circulam, atualmente, pelo país, 20 milhões de armas de fogo sem registro e apenas 2 milhões registradas, segundo a Agência Nacional de Segurança (Abin). Reduzir esses números, mas, sobretudo, os números de vítimas das armas de fogo, é o principal objetivo do Estatuto do Desarmamento. A escalada da violência é questão grave que angustia a sociedade brasileira. O controle das armas e da violência, sem dúvida, é questão urgente, que nos pede soluções rápidas, enérgicas e eficazes.

            Assim, poder-se-ia argumentar que tais taxas teriam finalidade extrafiscal [16], ou seja, seria elevada e desproporcional, com o objetivo de diminuir a comercialização de armas em nosso País.

            Contudo, tal argumento não merece prosperar.

            Em primeiro lugar, porque pela própria natureza jurídica de taxa, ou seja, contraprestação a um serviço publico específico, ela não pode ser exacerbada a maior, pois disso resultaria desvirtuamento de sua função. A nosso ver, somente seria possível falar em extrafiscalidade em relação a taxas no caso destas serem menores que o custo do serviço prestado, isto é, quando os serviços forem subsidiados. O inverso não seria possível, pois taxa é uma contraprestação a um serviço público e não é razoável aceitar a idéia de que o Estado crie um serviço e ao mesmo tempo tente evitar que as pessoas usufruam desse serviço.

            Melhor dizendo, se o Estado disponibiliza um serviço público aos administrados, não é lógico ou aceitável que ao mesmo tempo impeça o acesso a esse serviço, cobrando taxa muito acima do custo do serviço. Daí a afirmação de que no caso de taxa somente se há falar em extrafiscalidade no caso de os serviços serem subsidiados, permitindo que maior número de pessoas tenha acesso ao serviço oferecido, até mesmo porque todo serviço oferecido pelo Estado possui uma finalidade pública, ou seja, há interesse do Estado em que boa parte dos administrados tenham acesso ao serviço oferecido, pois, caso contrário, bastaria ao Estado abster-se de oferecer tal serviço.

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            Em segundo lugar, agora analisando apenas concretamente as taxas criadas pela Lei 10.826/2003, não se há falar em extrafiscalidade no registro de arma de fogo, pois o registro não traz qualquer benefício ao administrado, mas apenas ao Estado, que passa a ter controle sobre a propriedade da arma. Interessa muito mais ao Estado que a arma seja devidamente registrada, ao invés de circular de forma clandestina. Arma clandestina possui muito maior probabilidade de chegar às mãos de um marginal, pois não há qualquer controle sobre elas.

            Parece intuitivo que haja muito maior interesse social em que tais armas sejam registradas, saindo da clandestinidade, do que mantê-las sem registro. Extrafiscal seria a taxa subsidiada, pois aí sim cumpriria uma finalidade social: facilitar o registro para que o Estado tenha controle sobre as armas, e não o contrário, criando taxas absurdas que desestimulará o proprietário da arma a legalizá-la.

            Hoje, financeiramente, é muito mais conveniente adquirir uma arma clandestina do que uma legalizada, por culpa do próprio Estado, que por um lado pretende ter controle total das armas deste País, mas ao mesmo tempo cria obstáculos para que os administrados tenham acesso ao registro.

            Taxa elevada de registro de arma não impede a comercialização de armas, mas sim a comercialização lícita de armas. Ou seja, o mercado de armas ilegais, de onde sai a maioria das armas utilizadas na prática de crimes, continuará crescendo, agora com o incentivo estatal.

            Assim, seria contraditório justificar a existência de taxa elevada com o argumento de extrafiscalidade, uma vez que taxas elevadas acabarão por conduzir à clandestinidade, enquanto que a situação socialmente desejada é de que todas as armas sejam registradas e estejam sob controle estatal, sendo essa, inclusive, a vontade da Lei 10.826/2003, tanto que possibilitou o registro de armas "frias", concedendo uma semi-anistia (art. 30).

            Pois bem, ao instituir taxas elevadas, muitas pessoas serão desestimuladas a registrar sua arma e, principalmente, a renovar o registro a cada três anos, afinal, trezentos reais é valor atual do salário mínimo e uma boa parcela da população possui renda próxima a esse valor. Daí é fácil presumir que boa parte das pessoas que hoje possuem armas não renovará o registro, por conta do alto valor da taxa cobrada. E em julho de 2007, quando os registros emitidos pela Polícia Civil perderão seu valor e será necessária a renovação do registro, nem todas as pessoas que possuem licitamente armas terão condições de pagar o disparatado valor de trezentos reais para renovar o registro. O Estado simplesmente estará empurrando para a clandestinidade milhares de pessoas.

            E, em não renovando o registro da arma, tal pessoa estará cometendo crime, haja vista que a Lei 10.826/03 tipificou como crime a simples posse de arma sem registro (ou com o registro vencido). Assim, paradoxalmente tais taxas, por mera artimanha do legislador, da noite para o dia, transformarão uma pessoa que jamais ofendeu qualquer bem jurídico relevante em criminoso, não porque queira cometer um ilícito penal, mas simplesmente porque não terá condições de pagar a malfadada taxa, deixando de renovar o registro.

            Chega mesmo a ser um truísmo afirmar que uma taxa que transformará, de um dia para o outro, o cidadão de bem em um criminoso, não tem objetivo extrafiscal, mas é escancaradamente abominável, irracional e inconstitucional, a menos que seja objetivo da Nação Brasileira que pais de família venham a cometer o crime previsto no artigo 12 da Lei 10.826/2003, o que, de tão absurdo, sequer deve ser cogitado.

            Logo, extrafiscal, em termos de registro de arma, seria a taxa subsidiada, módica, pois é interesse de toda a sociedade que as armas existentes no País sejam registradas e não o contrário. Se a taxa de registro fosse módica, provavelmente grande parte das armas que ainda hoje continuam na clandestinidade estaria devidamente registrada, valendo-se da anistia concedida pelo Estatuto do Desarmamento.


5 – Conclusão

            As taxas instituídas pela Lei 10.826/03 não guardam qualquer relação com o custo do registro, renovação ou expedição de segunda via de registro de arma e, de tão elevadas, possuem efeito de confisco, pois, como já mencionado anteriormente, efeito de confisco não se confunde com o confisco propriamente dito (retirada do bem pelo fisco), não sendo necessária a total supressão da propriedade, bastando que o tributo cause uma restrição desarrazoada do exercício do direito de propriedade, ou seja, que em pouco tempo consuma todo o valor do bem.

            No caso em testilha, em muito pouco tempo o valor total das armas será consumido pela exorbitante taxa, máxime se considerarmos que ela deve ser paga de três em três anos.

            Não se justifica a cobrança de taxa tão elevada sob a alegação de extrafiscalidade, pois a taxa exacerbada criará justamente uma situação anti-social – milhares de pessoas deixarão de renovar o registro de arma, incorrendo em crime, enquanto o desejável seria que todas as armas fossem devidamente registradas, vez que aí o Estado passaria a ter controle sobre elas, podendo diminuir o seu uso na prática de ilícitos.

            Logo, as taxas previstas na Lei 10.826/2003 são inconstitucionais, por possuir efeito de confisco.


NOTAS

            01

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 6. ed., São Paulo: Saraiva, 2001. p. 139.

            02

Idem.

            03

MARONE, José Ruben. O Princípio da Vedação ao Confisco à Luz do Estado Democrático de Direito Contemporâneo. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra (Coord). A Defesa do Contribuinte no Direito Brasileiro. São Paulo: IOB, 2002. p. 124.

            04

FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1994, pág. 101.

            05

Deve ser observado que apenas as armas de calibre restrito são indenizadas com a quantia de trezentos reais, porém tal tipo de arma somente pode ser possuída de forma lícita por colecionadores, atiradores e caçadores devidamente registrados no Exército, policiais e por oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica. A imensa maioria das armas (revólveres, pistolas, espingardas, de calibre permitido) são indenizadas com apenas cem reais, enquanto as carabinas de calibre permitido são indenizadas com duzentos reais.

            06

MARONE, José Ruben. O Princípio da Vedação ao Confisco à Luz do Estado Democrático de Direito Contemporâneo. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra (Coord). A Defesa do Contribuinte no Direito Brasileiro. São Paulo: IOB, 2002. p. 121.

            07

RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. Os Limites da Legalidade Tributária e os Direitos Fundamentais do Contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra (Coord). A Defesa do Contribuinte no Direito Brasileiro. São Paulo: IOB, 2002. p. 96.

            08

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1990, t. I, v.6, pág. 161-165..

            09

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 151.

            10

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p. 345.

            11

Idem.

            12

Idem.

            13

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 153.

            14

Apud BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 153/154.

            15

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 152

            16

O tributo é Extrafiscal, segundo Hugo de Brito Machado, quando seu objetivo principal é a interferência no domínio econômico, buscando um efeito diverso da simples arrecadação de recursos financeiros (Curso de direito tributário, pág. 57).
Sobre o autor
Júnior A. Taglialenha

delegado de Polícia Federal em Três Lagoas (MS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAGLIALENHA, Júnior A.. Inconstitucionalidade da taxa de registro de arma de fogo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1010, 7 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8193. Acesso em: 24 nov. 2024.

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