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A razoabilidade constitucional

(o princípio do devido processo legal substantivo aplicado a casos concretos)

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Agenda 01/05/2000 às 00:00

VI – O DEVIDO PROCESSO LEGAL E A RAZOABILIDADE CONSTITUCIONAL: ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Como já se disse, é da excelente obra de Carlos Roberto de Siqueira Castro(30) que se extraem as melhores considerações sobre o devido processo legal e o princípio constitucional da razoabilidade. Vejamos como que se pode revelar a origem e a evolução histórica do assunto.

Surgimento: o devido processo legal surgiu na Idade Média, por meio da Magna Carta, em 15 de junho de 1215, inicialmente concebida como simples limitação às ações reais.

Evolução do termo "due process of law": o princípio do devido processo legal acobertou-se inicialmente sob a locução "law of the land". Em 1354, editada lei pelo Parlamento inglês que substitui o termo "law of the land" por "due process of law".

Ingresso da cláusula do devido processo legal nas cartas das colônias inglesas da América do Norte.

Evolução constitucional britânica: teve como pano de fundo a resistência do Parlamento contra a autoridade do rei, acabando por sacramentar a supremacia do Parlamento. Por este motivo, e depois do sufrágio universal, o Parlamento significava para o povo inglês a casa da liberdade e das grandes aspirações sociais. O Parlamento pode até abolir o "Bill of Rights", mas confia-se que não o fará por causa da "rigidez sociológica", que dá caráter imutável aos institutos jurídicos calcados nas tradições seculares.

Evolução constitucional dos Estados Unidos da América: tanto no período colonial como no período pós-independência preponderou o preconceito contra o Poder Legislativo porque o Parlamento, para as colônias, representava o poder de repressão vinculado através da legislação da metrópole. Era através do Parlamento que as colônias eram exploradas economicamente e se impedia a emancipação das famílias protestantes pioneiras na colonização. Por isso era necessário encontrar mecanismos de controle do Legislativo. Após a emancipação política e a formação da federação foi criado o controle judicial de constitucionalidade das leis ("judicial review") e o veto presidencial.

As diferenças existentes entre os dois sistemas também traz marcante diferença no conceito de legalidade. Para os americanos a legalidade é a supremacia da Constituição conforme assim o declare o Poder Judiciário. Para os ingleses a legalidade nada mais é do que a vontade do Poder Legislativo expressa nas leis que foram votadas segundo o princípio da maioria parlamentar.

Edward Coke: juiz que na Inglaterra, em 1610, defendeu a revisão judicial dos atos do Parlamento pelas Cortes de "common law". Suas idéias tiveram muito maior ressonância nos EUA. No "Dr. Bonhan’s Case" o juiz Coke concluiu que seria nulo o ato do Parlamento que transformasse alguém interessado na causa em seu julgador, ou seja, em juiz em causa própria.

Juiz Marshall: em 1803, no caso "Marbury v. Madyson", julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, consagrou a "judicial review".

Os americanos passaram a adotar os mesmos direitos individuais ("fundamental rights") já consagrados na formação constitucional anglo-saxônica, mas foram adicionando mecanismos que garantiam a revisão judicial dos atos legislativos. Com isso passaram a desautorizar no seu território as leis do Parlamento inglês que considerassem violadoras de suas liberdades fundamentais. O Poder Judiciário passou a ter a função de declarar o sentido e alcance das normas ("what the law is").

          "Bill of Rights" inglês: foi aprovado como lei pelo Parlamento em 1.689. Em sentido jurídico, pode ser emendado ou revogado pelo legislador. Simboliza a vitória do Parlamento sobre a monarquia.

          "Bill of Rights" americano: o conceito de declaração de direitos é primariamente americano em sua origem porque incorpora garantias de liberdade individual a um documento constitucional no qual se limita e define as áreas de atuação legislativa. O primeiro "Bill of Rights" moderno foi a Declaração de Direitos de Virgínia (1776), porque foi pioneiro em usar uma Constituição escrita para imunizar os direitos individuais da atividade legislativa. Expressa uma conquista supralegal da sociedade sobre o Estado como um todo, confiando-se ao Poder Judiciário o depósito das liberdades individuais. Índole jusnaturalista atrelada ao ideal de independência contra a dominação inglesa.

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          Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Revolução Francesa de 1789): nítido caráter burguês, metafísico e universalista. Visava retirar privilégios dados à nobreza e ao clero em detrimento do terceiro estado (burguesia), que tinha pretensões de conquistar o poder político ao lado do econômico (que já detinha).

Desde os tempos de colonialismo o sistema jurídico norte-americano assimilou as tradições humanistas inglesas pela via da "recepção". Por terem necessidade de se estruturarem organicamente após a independência, os novos Estados, reunidos na convenção da Filadélfia de 1787, não proclamaram desde logo o "Bill of Rights" uniforme para toda a Federação. Isso só aconteceu 4 anos mais tarde (1791) com a promulgação das 10 primeiras emendas à Constituição dos EUA, ratificadas por ¾ dos Estados–membros.

As 10 primeiras emendas consubstanciam o "Bill of Rights" norte-americano ao qual foram agregadas depois outras emendas, também para proteção dos direitos humanos.

          "Due Process of Law": intimamente ligada à própria prerrogativa de revisão judicial e independência do judiciário. Esteve sempre latente no pensamento constitucional norte-americano. Foi haurido e aperfeiçoado a partir de tradições jusnaturalistas do "common law" anglo-saxônico. Ao lado do princípio da igualdade ("equal protection of the law"), o due process of law tem sido o principal instrumento de argumentação utilizado pela doutrina e pela jurisprudência no processo de transformação do direito constitucional norte-americano.

          5ª e 14ª Emendas: Incorporaram formalmente ao direito constitucional norte-americano a cláusula "due process of law", que tem passado por profundas variações em razão da interpretação que lhe tem dado a jurisprudência da Suprema Corte.

Eis aí a demonstração de como surgiu e a própria evolução histórica do tema do devido processo legal, do qual é possível extrair a noção da razoabilidade constitucional.


VII – O DEVIDO PROCESSO LEGAL ADJETIVO E
SUBSTANTIVO: SURGE A RAZOABILIDADE CONSTITUCIONAL

Já do texto de Charles D. Coole(31) é que se podem extrair outras considerações sobre o devido processo legal, especialmente acerca das diferenças entre o devido processo legal ADJETIVO e SUBSTANTIVO.

O Devido Processo Legal Adjetivo: é determinação extraída da Constituição dos EUA, que garante aos cidadãos um processo JUSTO.

Para afetar a vida, a liberdade ou o patrimônio dos cidadãos é necessário que os governos estaduais e federal observem esta garantia constitucional, algo que se concretiza, por exemplo, diante da necessidade de ser expedida intimação para apresentação de defesa em um procedimento específico adotado para o acaso.

O devido processo adjetivo, no sistema constitucional americano, configura-se como um direito negativo, porque o conceito dele extraído apenas limita a conduta do governo quando este atua no sentido de restringir a vida, a liberdade ou o patrimônio dos cidadãos.

A realidade atual das expressões VIDA, LIBERDADE e PROPRIEDADE na cultura jurídica dos EUA pode ser extraída da jurisprudência firmada pela Suprema Corte, sempre favorável a uma leitura ampla e extensão da Constituição.

Tem sido determinado pela Suprema Corte que a natureza do processo é determinada pelo equilíbrio de valor do procedimento ao indivíduo em questão ("teste de equilíbrio"), tudo como forma de evitar privação indevida do patrimônio, contra o custo de tal procedimento para a sociedade como um todo.

O Devido Processo Legal Substantivo: a Constituição indica a existência de competência a ser exercida pelo Judiciário, no sentido de poder afastar a aplicabilidade das Leis com conteúdo arbitrário e desarrazoado, como forma de limitar a conduta do legislador.

Lei que não atinge um fim legítimo é inválida, como tal devendo ser declarada, por força da garantia constitucional em exame.

Na atualidade, o texto da Lei ou ato governamental será preservado pela Suprema Corte, até que nenhum posicionamento razoavelmente concebível possa estabelecer uma relação entre a regulamentação contestada e um fim legítimo do governo.

Fato é que o entendimento atual do devido processo legal substantivo permite o controle de atos normativos disciplinadores de liberdades individuais até mesmo "não econômicas". Este princípio, em sua concepção substantiva, é fonte inesgotável de criatividade hermenêutica, transformando-se numa mistura entre os princípios da "legalidade" e "razoabilidade" para o controle dos atos editados pelo Executivo e Legislativo.

Expostas assim as diferenças entre as duas formas apresentadas pelo devido processo legal, convém aplicar a casos concretos o princípio da razoabilidade constitucional (extraído da noção do devido processo legal substantivo), buscando, sempre, a integração entre teoria e prática exigida pela melhor doutrina (Tércio Sampaio Ferraz, "decidibilidade de conflitos").


VIII - CASO CONCRETO ANALISADO À LUZ DA RAZOABILIDADE CONSTITUCIONAL: A QUESTÃO DA CONVERSÃO OBRIGATÓRIA AO EXECUTIVO DOS DEPÓSITOS JUDICIAIS RELATIVOS A TRIBUTOS

Eis um tema que andou agitando o Judiciário e que pode ser solucionado à luz da razoabilidade constitucional.

Inovando a ordem jurídica de forma indevida, o Legislador do Estado de Mato Grosso do Sul, aprovando projeto de lei apresentado pelo Governador do Estado, editou a Lei Ordinária Estadual nº 1.952, de 19 de março de 1999, tratando da questão da conversão dos depósitos judiciais e extrajudiciais (futuros e passados), relativos a tributos estaduais, para a conta do Tesouro do Estado (art. 1º, §§ 1º e 2º e art. 2º).

Também ficou estabelecido que em caso de derrota judicial do Estado os valores antes convertidos em renda serão "devolvidos ao depositante pela Secretaria de Estado de Fazenda, no prazo máximo de dez dias, quando a sentença lhe for favorável ou na proporção em que o for, acrescido de juros, sob pena de bloqueio das contas do Estado" (§ 3º, inciso I, do art. 1º).

Ocorre que é inválida a conduta do legislador estadual.

Com efeito, é INCONSTITUCIONAL a transferência estabelecida pela questionada lei estadual, por ofensa, inicialmente, ao princípio da Separação dos Poderes, estabelecido no art. 2º da Constituição da República.

Os depósitos judiciais são realizados à ordem e à disposição do Juízo. Traduzem atividade jurisdicional. Deles dispor livremente o Executivo, utilizando-os como receita corrente, constitui intromissão indébita de um Poder em outro.

A transferência dos recursos preconizada pela indigitada lei estadual vulnera ainda o princípio da isonomia – art. 5º, "caput" – e o princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição Federal) (32). Quebra a paridade de armas fazer com que o contribuinte deposite o valor "sub judice", dele privando-se, para entregá-lo à parte contrária, que poderá usar a quantia como lhe aprouver.

          Já a limitação ao levantamento dos depósitos imposta pela mesma lei estadual (permitindo tal ato apenas após o encerramento do processo), a par de ser inconstitucional pelos mesmos fundamentos já deduzidos, é inconstitucional também por violência, sob outro aspecto, ao "due process of law".

Exigir trânsito em julgado para o levantamento de depósitos em regra voluntários é privar – sem o devido processo legal e sem razão justificável – o jurisdicionado de seus bens. É fomentar, ainda, desvirtuando a finalidade do processo, a interposição abusiva de recursos, uma vez que à Fazenda jamais interessará o término da demanda.

Ora, lei dessa natureza ofende mesmo o princípio do devido processo legal substantivo, de onde decorre a noção jurídica da RAZOABILIDADE, somente podendo ser considerado como tal "o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar". (33) Evidente parece ser que não se está diante de lei produzida em obediência este postulado constitucional fundamental.

Noutra vertente, a pretensão do Poder Público Estadual de transformar depósitos judiciais e extrajudiciais em verdadeiros EMPRÉSTIMOS esbarra também no que estabelece o art. 148, incisos I e II, da Constituição, que trata da competência exclusiva da UNIÃO para instituir empréstimos compulsórios.

O apossamento pelo Estado de Mato Grosso do Sul daquilo que foi depositado, com promessa de devolução a termo incerto, caracteriza-se como empréstimo compulsório. Como, porém, para a instituição desta exação tributária existe a necessidade da edição de LEI COMPLEMENTAR FEDERAL e a presença de extraordinárias circunstâncias ausentes na espécie (incisos I e II do art. 148 da CF/88), a lei ordinária estadual nº 1.952/99 é inconstitucional, devendo como tal ser declarada.

Mais se avulta a inconstitucionalidade quando se verifica a existência de previsão legal no sentido de serem devolvidos os recursos repassados ao Tesouro do Estado, em caso de derrota judicial do Estado. Se isto não ocorrer voluntariamente, diz o legislador, deverá haver BLOQUEIO DE RECURSOS QUE JÁ PASSARAM A INTEGRAR A RECEITA ESTADUAL. Como admitir esta hipótese, diante da clareza da redação do art. 100 da Constituição Federal (que determina a expedição de PRECATÓRIO para quitação de dívidas do Poder Público) ?

A bem da verdade, todo o novel diploma legal estadual merece ser invalidado, pois o que restará da Lei impugnada não corresponderá à vontade legislativa.

A invasão da esfera de atuação do Poder Judiciário perpetrada pelo Poder Executivo por meio da lei analisada macula, por si, o próprio Estado Democrático de Direito. Uma vez que a divisão de Poderes é a principal garantia da democracia, qualquer vulneração a este princípio é extremamente grave e exige imediato repúdio. A propósito, merece lembrança o contido no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem de 1789:

"Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a point de constitution".

Limitar, por outro lado, o resgate de depósitos apenas por ocasião do trânsito em julgado da demanda provocará dano injusto e de difícil reparação a inumeráveis jurisdicionados, o que já autoriza a propositura de demandas visando controlar a constitucionalidade daquele indigitada lei estadual, que viola todos os princípios retro-elencados, especialmente a noção da razoabilidade constitucional.

Não se pode compactuar com violação jurídica desta magnitude, em que se inobserva tudo o que há de bom e valioso no regime jurídico pátrio, como forma de atender à vontade ilícita dos Deputados e do Governador Estadual.

Fato é que não se está diante de conduta CONVENIENTE e LEGÍTIMA, à luz do princípio da razoabilidade, dado que este exige prudência e sensatez (Celso Antonio Bandeira de Mello), algo que certamente não foi observado pelo legislador estadual, fulminando de invalidade jurídica o que restou produzido.

A análise dessa questão revela bem como que se pode trabalhar de forma satisfatória com o princípio da razoabilidade constitucional.

Sobre o autor
André Luiz Borges Netto

advogado constitucionalista em Campo Grande (MS), professor universitário, mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES NETTO, André Luiz. A razoabilidade constitucional: (o princípio do devido processo legal substantivo aplicado a casos concretos). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 mai. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/820. Acesso em: 17 nov. 2024.

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