A decisão do STF (HC 82.959, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 23.02.2006) que reconheceu a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/1990, que proibia a progressão de regime nos crimes hediondos, nos conduz a refletir sobre a produção legislativa "emergencial" no nosso país, que vem revelando alto nível de ignorância, pelo legislador derivado, de suas limitações constitucionais.
O legislador brasileiro ainda não tomou consciência de que, no Estado constitucional e democrático de Direito, até mesmo a produção do Direito tem que observar as regras constitucionais (seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista substancial). O sistema de garantias emanado de tal modelo de Estado funda-se, como diz Ferrajoli, [01] numa dupla artificialidade: (a) no caráter positivo das normas produzidas, isto é, já não é a Moral ou o Direito Natural a fonte dos direitos – disso resulta que o "ser" (existência) do ordenamento jurídico é produto do "homem" (artificial, portanto); (b) na sujeição do próprio ordenamento jurídico às regras "formais" e "substanciais" do Estado constitucional e democrático de Direito.
O processo de produção das normas jurídicas, desse modo, está formal e substancialmente constitucionalizado. Tanto a "existência" (aspecto formal) como a validade (aspecto substancial) das normas está condicionada pelo Estado constitucional e democrático de Direito, que possui um núcleo imperativo intangível de valores, regras e princípios fundados nos direitos fundamentais (que configuram a chamada realidade "teleológico-axiológica" da Constituição). Esse núcleo constitui o que se denomina "Constituição material", com a conseqüência de que "o próprio conteúdo de cada uma das normas que compõem o ordenamento jurídico se acha necessariamente afetado pela norma básica". [02]
Por mais que se acredite na bondade de uma determinada medida de "combate" ao crime (inversão do ônus da prova, por exemplo), quando ela é incompatível com a Constituição, deve ser prontamente rechaçada.
O Direito, agora concebido como "sistema de garantias", ainda dentro da linha de pensamento de Ferrajoli, [03] não só é condicionante (rege a sociedade) senão também "condicionado", é dizer, seu conteúdo, sua substância, não pode extrapolar os limites da Constituição, especialmente os dados pelo seu núcleo material.
O Estado constitucional e democrático de Direito não é apenas um "Estado de Direito". Como enfatiza Luigi Ferrajoli, [04] ambos são regidos per lege e sub lege, mas com diferenças marcantes: no Estado de Direito clássico, é a "lei" que condiciona a forma e o conteúdo do ordenamento jurídico; no Estado constitucional e democrático de Direito, é a "Constituição" que estabelece a forma e que dá os limites substanciais do ordenamento jurídico; no primeiro, toda lei vigente tem "validade" e é presumida de interesse geral; no segundo, a validade da lei vigente depende de sua coerência com a Constituição; qualquer lei, inclusive as autoritárias e abusivas, deve ser observada (dentro do positivismo clássico); as leis que violam a Constituição, para o sistema garantista atual, são inválidas e não podem ser aplicadas. A primazia da Constituição, proclama Ramon Peralta, [05] "produz o efeito de invalidar as normas infraconstitucionais que violam os preceitos que estão na norma fundamental".
Poder sub lege no Estado constitucional e democrático de Direito significa, portanto, não só submetimento formal (quem pode e como pode a norma ser editada), senão também "substancial" (o que pode e o que não pode ser decidido pelos poderes constituídos). Só o Estado de Direito no sentido constitucional e democrático, como se percebe, pode ser reputado verdadeiramente "garantista", porque nele tem pertinência a distinção entre "legitimidade formal" e "legitimidade substancial" da norma produzida.
Cabe ainda destacar que só dentro do Estado constitucional e democrático de Direito é que se notabiliza a distinção entre "mera legalidade" (todos os atos submetidos à lei) e "estrita legalidade" (todo o ordenamento jurídico submetido ao conteúdo dos direitos fundamentais). Uma norma jurídica somente adquire esse status quando conta com um referencial normativo superior "que possibilite sua existência como algo válido, positivo, jurídico". [06]
A disjuntiva enfocada por Zaffaroni, [07] ("vontade irrestrita da maioria" ou "supremacia da Constituição") encontra uma pronta resposta dentro do Estado constitucional e democrático de Direito: nenhuma maioria, por mais contundente que seja, pode decidir algumas matérias (as salvaguardadas pelas cláusulas pétreas, por exemplo) ou deixar de decidir outras (nem tampouco pode ir além do que a Constituição lhe permite).
Da democracia "formal" passa-se à "substancial": a maioria decide, mas existem condições "substanciais" que não podem deixar de ser observadas, justamente porque são elas que dão o norte sobre o que não é lícito decidir ou sobre o que não é lícito não decidir.
Desse sistema "garantista" de direito deriva uma série de conseqüências que devem ainda ser devidamente estudadas: a remodelação dos conceitos de vigência e validade da norma jurídica, o respeito ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais, a impossibilidade de o legislador ordinário restringir direitos e garantias fundamentais quando não há expressa previsão constitucional etc.
Os juízes, nesse novo sistema, merecem menção especial, porque possuem a missão de garantir a eficácia dos direitos fundamentais. [08] O melhor modelo de atuação judicial, por isso, é o positivista-constitucionalista, que leva o juiz a questionar sempre a validade da lei, antes de aplicá-la. [09] Dessa postura garantista é que emana, automaticamente, a chamada jurisprudência constitucionalizada, que parte da premissa de que a "Constituição constitui o contexto necessário de todas e cada uma das normas do ordenamento jurídico, inclusive para o efeito de sua interpretação e aplicação". [10]
O legislador, em suma, tem que compreender a evolução que ocorreu do Estado de Direito tout court para o Estado constitucional e democrático de Direito. E todas as vezes que ele vai legislar, especialmente no âmbito criminal, tem que observar estritamente o que se acha constitucionalizado (diretamente ou indiretamente, isto é, observar os preceitos expressos da Constituição, assim como os que vieram em seu complemento nos tratados internacionais).
Notas
01
Cf. FERRAJOLI, Luigi, El derecho como sistema de garantias, in Jueces para la democracia – Información y Debate, n.16-17, 2-3/1992, Madri, p. 63.02
Cf. Ramon Peralta, La interpretación del ordenamiento juridico conforme a la norma fundamental del Estado, UCM-Servicio de Publicaciones, Madri, 1994, p. 62.03
Cf. Luigi Ferrajoli, El derecho... cit., p. 63 e ss.04
Cf. Luigi Ferrajoli, Diritto e ragione, Roma, Laterza, 1990, p. 896 e ss.05
La interpretación del ordenamiento, cit., p. 47.06
V. Ramon Peralta, La interpretación del ordenamiento, cit., p. 48.07
Eugenio R. Zaffaroni, Poder Judiciário - Crise, acertos e desacertos, trad. de Juares Tavares, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, p. 36 e ss.08
Assim Luiz Flávio Gomes, A questão do controle externo do Poder Judiciário, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993, p. 93 e ss.09
Sobre os vários modelos de atuação judicial, v. Luiz Flávio Gomes, Direito de apelar em liberdade, 2. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 108 e ss.10
Assim Ramon Peralta, La interpretación del ordenamiento, cit., p. 51.