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O que é inconstitucionalidade ideológica?

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V – Casuística: hipóteses de inconstitucionalidades ideológicas

Vejamos, neste passo, algumas hipóteses da casuística onde vislumbra-se a ocorrência de normas, decisões e atos ideologicamente inconstitucionais.

- Mandado de injunção (art. 5º, LXXI).

O mandado de injunção é garantia fundamental [30], consistente em ação constitucional de caráter civil [31] e mandamental, prevista no inciso LXXI do art. 5º da Constituição da República, e visa combater a denominada síndrome de inefetividade das normas constitucionais.

Reza o texto constitucional que conceder-se-á o mandado de injunção toda vez em que a omissão quanto à regulamentação de dispositivo constitucional torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais, assim como das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (CR, art. 5º, LXXI).

Há evidente similitude com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, embora, frise-se desde logo, tratem-se de institutos jurídicos diferentes, aos quais deve, por conseguinte, ser conferido tratamento jurídico diverso.

Assim, sempre que a omissão na regulamentação de dispositivo constitucional impossibilite o exercício de direitos e liberdades fundamentais, ou de prerrogativas da nacionalidade, soberania e cidadania, vislumbra-se a possibilidade do manejo de injunção por parte do interessado, para fazer cessar a omissão e poder exercer o direito, liberdade ou prerrogativa cujo exercício resta prejudicado.

Dada não ter sido ainda editada norma infraconstitucional traçando a disciplina jurídico-processual do instituto, observa o mandado de injunção o procedimento do mandado de segurança (art. 24, § 1º, da Lei nº 8.038/90).

Quanto aos efeitos da decisão judicial proferida em sede de mandado de injunção, existem as correntes concretistas e as não-concretistas.

Pelas posições concretistas, grosso modo, presentes os requisitos constitucionais necessários à concessão da tutela, esta deverá ser deferida, consistindo em declaração da omissão administrativa ou legislativa e implementação imediata do direito, liberdade ou prerrogativa, pela própria decisão judicial, nos termos em que dispuser, até ulterior regulamentação [32].

Já pelas posições não-concretistas, em respeito ao Princípio da Separação dos Poderes, não cabe ao Poder Judiciário, em nenhuma hipótese, legislar, de modo que a concessão da tutela somente poderá consistir na declaração da omissão administrativa ou legislativa e na exortação ao legislador ou administrador para que supra a omissão, tão somente, sem qualquer outra conseqüência, restando impossível falar-se em estabelecimento, pela própria decisão judicial, de condições viabilizadoras do exercício do direito, liberdade ou prerrogativa em questão, posição esta adotada pelo Supremo Tribunal Federal.

Sobre o particular, ALEXANDRE DE MORAES assim manifesta-se:

"Critica-se essa posição por tornar os efeitos do mandado de injunção idênticos aos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), apesar de serem institutos diversos." [33]

A posição do Pretório Excelso na matéria é muito criticada e fundamentalmente equivocada. A uma, porque equipara os efeitos de institutos jurídicos diversos (mandado de injunção x ação direta de inconstitucionalidade por omissão), descurando que a Constituição não contém palavras inúteis. A duas, porque desconsidera o caráter mandamental do mandado de injunção, e não declaratório, como os efeitos de que o dotou com sua interpretação.

Mas a principal razão está em que o resultado da intepretação adotada vai contra os valores maiores da Carta Política, a saber, a dignidade da pessoa humana, cidadania, soberania, os direitos e garantias fundamentais, encontrando-se teleologicamente e axiologicamente apartada do sistema preconizado e engendrado pelo Poder Constituinte originário [34].

Como visto, a posição adotada de forma dominante pelo Supremo Tribunal Federal é ideologicamente inconstitucional, eis que fere o espírito da Constituição, que é de prevalência dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, reduzindo um instituto jurídico concebido para a tutela de direitos fundamentais a uma mera exortação ou notificação, sem qualquer efeito concreto ou útil para a pretensão do impetrante [35].

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De se esperar que, em futura composição do Pretório Excelso, seja revisto o referido entendimento, adotando-se a corrente concretista individual direta ou intermediária [36], afastando-se o posicionamento ideologicamente inconstitucional atual.

- Acréscimo do § 3º ao art. 5º da Constituição pela Emenda Constitucional nº 45/04;

Já tivemos a oportunidade de manifestar-nos sobre o acréscimo do § 3º ao artigo 5º da Constituição da República pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004. [37] Naquela oportunidade, já apontávamos a inconstitucionalidade do acréscimo, pelos motivos que nesta oportunidade resumimos.

Pelo teor do novel § 3º, passariam a ter status de emenda constitucional, logo índole constitucional, os tratados aprovados por cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação, por 3/5 dos membros – mesmo procedimento das Emendas à Constituição em geral, conforme art. 60, § 2º, CR -, alteração esta inicialmente festejada, por parecer, numa leitura superficial, privilegiadora dos direitos fundamentais.

Ocorre que, ao dispor que apenas os tratados internacionais assim aprovados teriam a hierarquia de emendas à Constituição, o Poder Constituinte Derivado dispôs, contrariu sensu, que os demais tratados não possuem índole constitucional, ainda que disponham sobre direitos fundamentais, através de um estratagema, um jogo de palavras, um artifício lógico. Ademais, conferiu ao juízo político de conveniência e oportunidade do Parlamento a conferência ou não da hierarquia constitucional ao instrumento internacional.

No entanto, dispositivo constitucional engendrado pelo Poder Constituinte Originário, a saber, o § 2º do art. 5º, já disciplinava a matéria, de forma mais favorável, determinando a abertura do rol de direitos fundamentais, bem como a inclusão automática de outros direitos e garantias fundamentais, quer fossem decorrentes do regime, dos princípios ou dos tratados internacionais em que a República seja parte.

Tal entendimento é adotado por doutrina respeitável, como ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, FLÁVIA PIOVESAN, FERNANDO LUIZ XIMENES ROCHA e outros [38], e defendemos que o dispositivo, ao qual FLÁVIA PIOVESAN denomina cláusula aberta de recepção automática dos direitos fundamentais constantes em tratados internacionais, constitui uma verdadeira garantia fundamental: a garantia da recepção automática.

Assim sendo, ao prever procedimento mais dificultoso de inclusão de direitos fundamentais na ordem interna do que o preconizado por texto constitucional originário e constituinte de garantia fundamental, caracterizou-se como emenda tendente a abolir direitos e garantias fundamentais, violando o preceito do art. 60, § 4º, ainda que não o tenha feito abertamente, mas de maneira velada e artificiosa.

Assim sendo, diante das limitações materiais ao Poder Constituinte Reformador, e diante do Princípio da Primazia da Norma mais Favorável em sede de direitos humanos, há que prevalecer a sistemática da inclusão automática originária.

Note-se que, tendo o legislador constituinte lançado mão de artifício, consistente em jogo de palavras, para acobertar a inconstitucionalidade, pode-se vislumbrar facilmente a inconstitucionalidade ideológica do novel dispositivo [39], eis que parecia favorecer mas, na prática, enfraquece valores consagrados pela Constituição de 1988.

- Extradição do nacional e entrega ao Tribunal Penal Internacional;

Não aprofundar-se-á a presente hipótese nesta oportunidade, vez que consistirá objeto de trabalho próprio futuro. Apenas faz-se o registro da mesma, como exemplo do tema em estudo, para ulterior desenvolvimento.

O Tribunal Penal Internacional – Estatuto de Roma, concluído em 17.07.1998, ratificado pelo Brasil em 20.06.2002 e promulgado pelo Decreto nº 4.388, de 25.09.2002 -, foi criado com jurisdição subsidiária [40], com vistas ao julgamento dos responsáveis pelo que denomina "crimes de maior gravidade com alcance internacional" – art. 1º -, com competência para crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, de guerra e de agressão – art. 5º e seguintes -.

O Estatuto de Roma prevê, em seu art. 89 e seguintes, a detenção e entrega de pessoas a serem julgadas pelo Tribunal, às quais seja imputada a prática dos referidos crimes. A Constituição brasileira veda, de maneira incondicional, a extradição do nacional, exceto o naturalizado, em determinadas condições – art. 5º, LI, CR -.

A despeito da vedação, vêem-se esforços hermenêuticos no sentido de defender que extradição e entrega são institutos jurídicos distintos, de modo que a entrega de nacional não estaria vedada.

Ocorre que, à maneira do que ocorre com os tributos [41], por exemplo, a denominação é desinfluente na caracterização da natureza jurídica dos institutos de direito. Chamar determinado instituto jurídico por um nomen juris diverso não é fato jurídico hábil a alterar-lhe a natureza jurídica.

Argumenta-se, por outro lado, alegando que a distinção é de fundo, sendo a extradição realizada entre dois Estados soberanos, ao passo que a entrega seria realizada entre um Estado e um organismo internacional – o Tribunal Penal Internacional -.

Ocorre que é indispensável a identificação dos valores protegidos pela Carta Magna e dos objetivos por ela perseguidos. Numa interpretação teleológica, percebe-se que a entrega do nacional redundará no mesmo resultado prático da extradição do nacional, constitucionalmente vedada, razão pela qual, até o momento e s.m.j., parece-nos constitucionalmente impossível.

Assim, os esforços hermenêuticos referidos, intentando distinguir entrega de extradição por questões acessórias – entidades de direito público externo parte na relação e denominação do instituto -, em incongruência para com os valores e as finalidades da Constituição são ideologicamente inconstitucionais, assim como as decisões administrativas ou judiciais que porventura os esposem [42].

- Revogação da norma de garantia das limitações explícitas ao Poder Constituinte derivado reformador.

Por fim, como exemplo de norma ideologicamente inconstitucional, utilizamo-nos de especulação feita pela doutrina em torno do tema das limitações implícitas ao Poder Constituinte derivado reformador.

Como visto, o art. 60 consubstancia limitações ao Poder Constituinte reformador, determinando, em seu § 4º, a imodificabilidade de determinados pontos da Carta Magna – as denominadas cláusulas pétreas -. Ocorre que, em momento algum, referido dispositivo – ou outro qualquer – dispõe ser, ele mesmo, imodificável.

Face a tal situação, poder-se-ia especular da possibilidade de o Poder Constituinte derivado vir a, num primeiro momento, revogar o próprio dispositivo protetivo para, após, poder alterar, revogar ou abolir os dispositivos protegidos.

Sobre a hipótese, veja-se o magistério de ALEXANDRE DE MORAES:

"A existência de limitação explícita e implícita que controla o Poder Constituinte derivado reformador é, igualmente, reconhecida por Pontes de Miranda, Pinto Ferreira e Nelson de Souza Sampaio, que entre outros ilustres publicistas salientam ser implicitamente irreformável a norma constitucional que prevê as limitações expressas (CF, art. 60), pois, se diferente forsse, a proibição expressa poderia desaparecer, para, só posteriormente, desaparecer, por exemplo, as cláusulas pétreas." [43]

Portanto, vê-se que a revogação da cláusula de garantia inserta no § 4º do art. 60 da Constituição da República, embora não esteja expressamente vedada, decorre logicamente do próprio sistema, por coerência teleológica e axiológica para com a Constituição.

A tentativa da referida revogação, conforme a especulação doutrinária apontada, consistiria indubitavelmente inconstitucionalidade ideológica, por não guardar congruência para com os fins e valores constitucionalmente protegidos, consistindo em evidente fraude à Constituição.


VI – Conclusão

O império da Constituição é a essência de um Estado Democrático de Direito Constitucional. Para que tal império seja um fato, e não mero discurso político ou acadêmico, é essencial que a Carta Magna seja levada a sério, encarada como norma cogente e vinculante, e suas disposições intransponíveis, direta ou indiretamente.

Estas são exigências e imperativos do constitucionalismo, da força normativa da Constituição de do Princípio da Supremacia da Lei Fundamental.

Diante de tais premissas, reputa-se que somente se alcançará o referido império da Constituição, no mundo concreto, com um severo e criterioso sistema de controle de constitucionalidade por parte dos órgãso legitimados, especialmente o Poder Judiciário, que desempenha papel precípuo nesta seara.

Isto especialmente em país com déficit democrático e recentes experiências autoritárias, onde, infelizmente, o administrador e o legislador freqüentemente investem-se da autoridade máxima e arbitrária, desbordando da constitucionalidade, reclamando correção.

A correção das inconstitucionalidades é um imperativo do sistema constitucionalista e não se deve olvidar que a sua declaração recorrente, antes de implicar em invasão de esferas de competência e violação da independência dos Poderes, é ínsita ao sistema de freios e contrapesos democrático, exercendo um papel pedagógico fundamental no que corresponde ao respeito à Constituição.

No entanto, para se chegar a um nível satisfatório de controle de constitucionalidade, é essencial que as manifestações violadoras da Lex Fundamentalis sejam atacadas em todas as suas expressões, vale dizer, sejam expressas e evidentes ou veladas, reclamando do intérprete maior acuidade e perspicácia em sua detecção.

Como proposta de instrumento de detecção de inconstitucionalidades maquiadas propomos no presente trabalho o conceito de inconstitucionalidade ideológica [44], para o fim de identificar as tentativas de fraude ao espírito e à essência da Constituição, pelo exercício de um controle de constitucionalidade que abarque uma fiscalização teleológica e axiológica de compatibilidade de atos infraconstitucionais com a Carta Política.

Por fim, faz-se uma proposta aos legitimados a promover o processo de emendas à Constituição. A Consolidação das Leis do Trabalho traz norma clarividente e útil, em seu artigo 9º, cujo teor é o seguinte:

"Art. 9º Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação."

Assim, tomando-se como exemplo a norma protetiva juslaboral, sugere-se a inserção, por projeto de emenda constitucional, de uma norma análoga no texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que consubstancie, expressamente, uma cláusula geral de nulidade dos atos que, direta ou indiretamente, desvirtuem, intentem impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos constitucionais. Neste passo, sugere-se, em princípio, a seguinte redação:

"São nulos de pleno direito quaisquer normas, atos ou decisões, tendentes a desvirtuar, impedir, fraudar ou afastar a aplicação dos preceitos ou Princípios desta Constituição, ainda que de forma velada ou indireta, praticados por parte de quaisquer órgãos ou agentes dos de qualquer dos Poderes Públicos.

Parágrafo único: reputam-se inconstitucionais e nulos de pleno direito, na forma deste artigo, os atos que não guardem congruência teleológica ou axiológica com os preceitos desta Constituição, assim entendidos aqueles cujos efeitos práticos impliquem na redução de direitos ou garantias fundamentais, ou na exclusão de situações, fatos, grupos ou indivíduos da aplicação dos preceitos ou Princípios nela contidos."

Com adoção de dispositivo de tal teor, ou assemelhado, prestigiar-se-á a Constitucionalidade e o aperfeiçoamento das instituições jurídicas pátrias, bem como estar-se-á contribuindo para com a construção de uma consciência e de uma cultura de respeito à constitucionalidade, através do combate aos ataques implícitos à Constituição.

Sobre os autores
Geziela Jensen

Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Membro da Société de Législation Comparée (SLC), em Paris (França) e da Associazione Italiana di Diritto Comparato (AIDC), em Florença (Itália), seção italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques (AISJ), em Paris (França). Especialista em Direito Constitucional. Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito.

Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JENSEN, Geziela; SGARBOSSA, Luis Fernando. O que é inconstitucionalidade ideológica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1039, 6 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8227. Acesso em: 5 nov. 2024.

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