4 DA IMPORTÂNCIA DO LIMITE AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ANALISADA SOB O CASO CONCRETO
A fim de demonstrar a necessidade de aplicação dos limites ao exercício do poder-dever de autotutela inerente à atividade da Administração Pública e complementar o exame da matéria analisada, cita-se o Agravo em Recurso Especial nº 1.357.157/SP, que se encontra pendente de julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça.
No caso concreto, a discussão é travada acerca da possibilidade do Procurador da Fazenda editar Nota Técnica desconstituindo acórdão proferido pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF em procedimento administrativo cuja própria Fazenda Nacional figurava como parte.
Em outras palavras, a Fazenda Nacional, órgão público integrante da administração direta e parte no procedimento administrativo que tramitou perante o CARF, por meio de seu Procurador, desprovido de poder atributivo – princípio da legalidade –, invalidou, anulou ato administrativo proveniente do CARF, órgão independente.
A título de esclarecimento, o Agravante do aludido recurso é sujeito passivo de dois lançamentos de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica e Contribuição sobre o Lucro Líquido, efetuados pela Receita Federal, no âmbito de procedimento administrativo instaurado.
Em referido procedimento administrativo, foram promovidos os recursos cabíveis e, em seu curso regular, o Conselho de Contribuintes (atual CARF), julgando recurso interposto pelo Agravante contra a Fazenda Nacional, reconheceu a ilegitimidade passiva daquele para responder pelas multas aplicadas pela Receita Federal.
Após a publicação de tal decisão, a Fazenda interpôs embargos de declaração, os quais foram desprovidos e, em razão da ausência de interposição de recurso, operou-se, assim, a preclusão da decisão administrativa.
Destaca-se que a Fazenda não promoveu qualquer ação judicial contra a decisão administrativa, operando-se o trânsito em julgado daquela decisão.
Desta forma, diante da decisão administrativa transitada em julgado e apresentada a Declaração de Compensação, a mesma foi submetida a uma Comissão de Assuntos Tributários – CAT, presidida por Procurador da Fazenda – parte no procedimento administrativo perante o CARF –, por meio da qual se editou Nota Técnica desconstituindo acórdão proferido pelo CARF, em flagrante exercício ilegal de autotutela.
Como se vê, o Procurador Chefe, subscritor da aludida Nota, sem qualquer atribuição legal, anulou acórdão do CARF, editando ato administrativo ilegal e nulo na forma, nos moldes do que foi exposto ao longo do presente trabalho.
A preclusão, mencionada como limitação ao exercício da autotutela no tópico anterior, como é óbvio, também foi totalmente desprezada no caso concreto em exame.
Nem se diga que a edição da Nota Técnica, além de violar os preceitos já mencionados, transgrediu também o devido processo legal, já que a decisão administrativa transitada em julgado, proferida pelo CARF, foi retirada do mundo jurídico pela própria parte interessada – Fazenda Nacional – não oportunizando a parte adversa o contraditório e a ampla defesa.
Aliás, nos autos do caso ora em análise, observa-se parecer da própria Fazenda Nacional que entende que o Tribunal Administrativo Fiscal:
é um órgão administrativo perante o qual não há instauração de um contencioso, com a garantia do contraditório e da ampla defesa, em paridade de armas, entre os contribuintes e a União que, ao final de um rito procedimental, produz uma decisão na esfera administrativa acerca dos lançamentos tributários, insuscetível de revisão pelo exercício da autotutela[10].
Por fim, destaca-se que, em caso análogo ao dos autos em destaque, o Superior Tribunal de Justiça, por meio do julgamento do Recurso Especial nº 1.218.417/SC, em voto de lavra do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, frisou-se que “se cabia ou não recurso na esfera administrativa, a União, principal interessada em reverter a decisão, não fez uso do instrumento competente, de maneira que, ao que tudo indica, ambas as partes se conformaram com o julgado emanado pelo 1º. Conselho de Contribuinte”, de tal forma que a Fazenda Nacional deve se submeter à decisão administrativa do CARF transitada em julgado.
Desta forma, a partir das limitações elencadas no tópico anterior e da análise do caso concreto aqui exposto, não pairam quaisquer dúvidas acerca da necessidade de se impor e, sobretudo, de se respeitar, os limites impostos ao exercício da autotutela, a fim de que sejam assegurados princípios constitucionais amplamente protegidos pelo ordenamento jurídico, tais como a segurança jurídica, a legalidade e o devido processo legal.
5 CONCLUSÃO
A partir da análise dos conceitos apresentados, bem como das jurisprudências colacionadas, pode-se afirmar que a problematização a respeito dos limites impostos ao agente público para o exercício do poder-dever da autotutela administrativa liga-se diretamente à existência ou não da competência dada pela lei.
Apesar de ser um exercício inerente à atividade da Administração Pública, viu-se, ao longo do presente trabalho, que a norma jurídica que atribui a competência ao agente, ao mesmo tempo que habilita a sua atuação, também a limita.
Justamente por tratar-se de um poder-dever - ou seja, poder dado ao agente público e dever para com a coletividade, com o interesse público - é que deve ser adequado a outras normais legais.
É preciso, portanto, limitar a atuação do agente público, já que o exercício irrestrito de tal atividade pode violar princípios protegidos constitucionalmente, bem como diretrizes basilares da função administrativa, quais sejam, em síntese, a legalidade, o devido processo legal, a ampla defesa, contraditório e a segurança jurídica, demonstradas cabalmente a partir do exame do caso concreto pendente de julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça.
6 REFERÊNCIAS
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 2ª ed. Malheiros Editores.
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LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo: coordenação Yussef Cahali. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 16ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018.
Notas
[1][2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 15ª edição. Malheiros Editores.
[3] CRATELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
[4] GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[5] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 2ª edição. Editora: Malheiros Editores.
[6] A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revoga-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.
[7] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
[8] Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
[9] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 13ª ed. Revista dos Tribunais, 2018.
[10] Documento anexo.