3. A TUTELA ANTECIPADA NAS OBRIGAÇÕES DE FAZER E NÃO FAZER E AS ASTREINTES COMO MEIO EFETIVADOR
3.1 A tutela antecipada nas obrigações de fazer e não fazer (art. 461, § 3º do CPC)
O legislador da lei 8.952/94, que institui no artigo 273 do CPC, o instituto da tutela antecipada e em princípio, para todos os procedimentos, também previu no artigo 461, § 3º, do mesmo codex, a antecipação dos efeitos da sentença no que tange as disposições de fazer e não fazer, com idêntica redação do artigo 83, § 3º do CDC.
Cinge a questão, em saber se os requisitos estudados no item 2.2, da antecipação quando determina um facere ou não, por exemplo, determinar que pinte um muro, são os mesmos ou não, do esculpido no art. 273 do CPC, ainda que com algumas peculiaridades.
Há quem entenda que a antecipação do artigo 461, §3º do CPC exige menos requisitos do que o do art. 273 (como vimos no item 2.2) e, nesta esteira encontramos uma doutrina de peso como Luiz Fux60 e Nelson Nery Jr.61 e este afirma que “é suficiente a mera probabilidade, isto é relevância do fundamento demanda para concessão da tutela antecipatória da obrigação de fazer ou não fazer (...)”. E, aquele informa que “afirma que no art. 461, do CPC, desaparece a interdição a concessão de tutela de efeitos irreversíveis”.
Essa exegese não merece sucesso, como já ensina Wambier62, ao dizer que a tutela do art. 461, §3º do CPC se submete aos mesmos requisitos da antecipação genérica do art. 273 do CPC, pois ao reclamar a relevância do fundamento da demanda quer dizer senão que a prova carreada aos autos conduz a verossimilhança das alegações, por serem inequívocas, não havendo que se falar em uma diferença profunda e para a expressão “situação de perigo” do art. 273 do CPC, é a mesma coisa que “justificado receio de ineficácia do provimento final”.
Não há que se falar em ausência do requisito de perigo de irreversibilidade, como tenta fazer crer Luiz Fux, por simplesmente não ter havido disposição literal no rol do art. 461, mais se realizando uma interpretação sistemática e do próprio § 3º, este informa que a decisão pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo, traduzindo é claro, como não poderia deixar de ser em provisoriedade da decisão e como decorrência deste requisito, como o aludido no item 2.2, tem-se a possibilidade de irreversibilidade dos efeitos do modo que em caso de revogação deverá retornar aos status quo ante, em exceção, é claro, a ponderação de valores postos em juízo, podendo o magistrado sacrificá-lo em prol de outro de maior relevância.
Percebemos então, que a antecipação da tutela nas obrigações de conduta, muito se assemelha a prevista no art. 273, I (tutela de segurança). O mesmo poderia ocorrer na hipótese do inciso II (abuso no direito de defesa), não havendo qualquer incompatibilidade com o art. 461, apesar do seu silêncio, como também compreende Zavascki (1997, p. 120-121)63:
(...) cabe indagar, ante o silêncio do art. 461, se é viável antecipação da tutela em caso de abuso do direito de defesa ou de manifesto propósito protelatório do réu, tal como prevê o inc. II do art. 273. A resposta deve ser afirmativa. Ante o sistema geral implantando pelo art. 273, não teria justificativa alguma o veto a tal hipótese de antecipação. Grifo nosso.
Com o substrato do art. 273 é o de permitir maior efetividade a prestação jurisdicional, nenhum óbice teria para a aplicação do art. 273, II, bem como, realizando inclusive uma exegese mais ampla abarcaria também a hipótese do § 6º, a antecipação por incontrovérsia do(s) pedido(s).
No mais, dos requisitos da antecipação geral do art. 273, estudados no capítulo anterior, estes também se aplicam in totum ao do art. 461, necessitando de fundamentação, tanto para conceder, quanto para denegar e, nesse ponto incidiu em mesmo erro o legislador ao prever tão somente necessidade de fundamentação quando revogada ou denegada.
Desse modo, no cotejo entre o sistema do art. 273 e o do art. 461, os seus requisitos estão muito mais para antecipação da tutela do que para a tutela cautelar.
O legislador do art. 461, § 3º (o mesmo do art. 273), previu de forma expressa a possibilidade da justificação prévia, de modo que o requerente consiga melhor prova de seu pleito, exaurindo aqui, a dicotomia existente no sistema geral do art. 273, quando se discutia pela sua aplicação ou não.
Contudo, novamente falece de clareza a lei, dando margem a dúvidas, se para fazer uso desse instituto, haveria ou não à necessidade de citação do réu, ou até mesmo, para a concessão do provimento antecipatório. Esta última afirmação cai por terra, pela possibilidade do contraditório deferido, já quanto a justificação, esta deverá ocorrer somente quando citado o réu64 ou até mesmo intimado, bastando contraditório na justificação, não necessitando apresentar defesa de mérito, como determina na melhor exegese do art. 461, § 3º, porém, como no direito não há lugar para absolutos, poderia ser a citação ou intimação mitigada em prol da gravidade do risco de ineficácia do provimento antecipatório requerido.
Já na redação do caput, do art. 461, prevê que nas ações que tenham por objeto um facere ou não, o magistrado poderá tomar providências que assegurem o resultado prático equivalente da tutela específica, como por exemplo, na impossibilidade de o réu pintar o muro, nomear terceiro que o faça, as expensas do réu. A dúvida reina, se pode ou não o juiz fazer uso dessa medida em sede de tutela antecipada, já que diz a norma se somente quando “procedente o pedido”, ou seja, em sede de sentença.
Dessa forma, na interpretação literal do dispositivo, em sede de liminar, a lei não autoriza ao juiz conceder provimento diverso do pleiteado pelo requerente, como permitiu em sede de sentença, em exceção ao princípio da demanda (art. 463 do CPC), tendo em vista, a provisoriedade da decisão. Mas, como dito alhures, o direito não é algo absoluto, aplicando-se o princípio da razoabilidade para os casos em que a execução específica for impossível e haver grande risco de ineficácia do provimento.
Posto algumas peculiaridades da antecipação dos efeitos da tutelas nas obrigações de fazer e não fazer, esta rege-se de forma subsidiária a do modo geral do art. 273, do CPC e, de modo a vencer recalcitrância do demandado, poderá o juiz valer-se de determinadas medidas de apoio (art. 461, §§ 4º e 5º do CPC), como a multa pecuniária, também conhecida como astreinte.
3.2 As astreintes como meio efetivador indireto na antecipação da tutela nas obrigações de fazer e não fazer
O magistrado ao conceder a antecipação dos efeitos da tutela de obrigação de fazer ou não fazer pretendida pelo requerente, pode utilizar dos meios de coerção previstos no art. 461, §§ 4º e 5º, do CPC, na sua totalidade e não como apenas meios operacionais da antecipação e aplicação apenas no que couber, como determinada a regra geral de antecipação do art. 273, § 3º, do CPC.
Essas medidas de coerção, que tem por escopo ultrapassar a inércia do réu, se classificam em medidas coercitivas diretas ou indiretas, a primeira está prevista no § 5º do Art. 461 e consiste em busca e apreensão, desfazimento de obras, remoção de pessoas e coisas, impedimento de atividade nociva e se necessário requisição de força policial. E, a segunda que se encontra no § 4º e confirmada no § 5º, estabelece a possibilidade de imposição de multa pecuniária diária, por tempo de atraso, chamada de astreinte pelo Direito Francês, que nos deteremos a estudar neste capítulo.
Nesse desiderato, a multa pecuniária atua como um potencializador da efetividade das ordens do juiz e, pode ser utilizada tanto nas decisões interlocutórias como na sentença (como vimos, podemos ter antecipação o corpo da sentença), desde que, assuma um caráter mandamental.
A relevância da multa pecuniária, consiste que quando se afeta o “bolso” do recalcitrante, este irá se sentir mais lesionado do que se cumprisse a ordem judicial, já que há uma consolidação no costume brasileiro de que a “dor no bolso” supera qualquer outra.
Assume a multa, caráter de obrigação acessória da principal, que é a determinação de um facere pelo juiz e, nesse escopo, ensina Spadoni (2001, p. 485), in verbis:
É uma obrigação derivada da relação jurídica processual, da relação das partes com o Estado-juiz e com a função de satisfazer, em primeiro lugar, o interesse primário do Estado na eficaz e adequada integra da prestação jurisdicional e, reflexamente, satisfazer o direito vislumbrado na decisão.65
Com efeito, tem as astreintes o fito de velar pela dignidade da justiça, atuando como verdadeira sanção para aquele que tentar tisnar o seu poder, por isso, poderá o juiz impô-la e modificar o seu valor (art. 461, § 6º) de ofício, bem como, também, as medidas coercitivas diretas, tutelando o interesse do Estado na prestação de uma jurisdição efetiva e eficaz, tendo natureza inibitória e coercitiva psicológica, se desvinculando do direito material objeto da tutela, não se confundindo com a multa moratória e a compensatória.
3.2.1 Breve escorço histórico da astreinte
O termo astreinte advém do verbo latino adstringere (ou astringere) e em seu sentido literal quer dizer obrigar, sujeitar, apertar, constranger, compelir, pressionar o devedor a cumprir a prestação devida.
Trata-se de criação do ordenamento jurídico gaulês, dos átrios pretorianos deste país, calcado também nas decisões das Cortes Inglesas, no instituto Contempt of court do sistema common low, que objetivava “coibir e reprimir os atos das partes que fossem ofensivas a dignidade da justiça”66.
Na França67 e na Itália68, alguns doutrinadores desferem severas críticas sobre a atuação do juiz de ordenar sobre multa, pela ausência de previsão expressa na lei desses países, já que é uma criação pretoriana, contudo, os juristas em geral não deixam de realçar sua importância.
Já no Direito Pátrio, as multas pecuniárias encontram substrato legal nos artigos 287, 644 e 645 do CPC. A lei 8.953/94 que instituiu a tutela antecipada reforçou a astreinte no sistema processual com a modificação nos suso artigos datados de 1973 e sua aplicação no alvissareiro instituto criado por ela, a tutela antecipada, que também pode fazer uso da multa por força dos artigos 273, § 3º e 461, §§ 3º, 4º e 5º, reconhecendo a valia deste método.
3.2.2 Imposição da multa
Como dito alhures, a multa pode ser imposta de ofício pelo juiz, ou seja, não é necessário que a parte requeira, como determina o § 4º do art. 461, do CPC, já que a recalcitrância do demandado em cumprir determinada ordem judicial é questão de ordem pública, afeta a dignidade da justiça e a responsabilidade do Estado-juiz em assegurar aos jurisdicionados uma tutela eficaz.
Contudo, nada impede que a parte requeira a aplicação da astreinte, que será apenas uma imploratio judicis officii, reafirmando o pedido imediato formulado pelo requerente, haja vista que, como assertoa Spadoni (2001, p. 491): “(...) o magistrado tem o poder-dever de se utilizar das medidas necessárias para alcançar a efetividade de sua decisão”.69
Quanto ao momento de imposição da multa a lei o art. 461, §§ 3º e 4º, do CPC descreve penas duas hipóteses de incidência da multa, a uma, quando do deferimento de liminares nas obrigações de fazer e não fazer, entendendo aí, as decisões que antecedem os efeitos da tutela e a duas, quando da prolação da sentença que determina um facere ou não.
Desse dispositivo legal, deve-se realizar uma interpretação extensiva, já que o legislador disse de menos, sendo as possibilidades mais extensas, não obstante, serem esses os momentos mais oportunos. Com isso, podemos ter o uso de astreintes, a título ilustrativo, na hipótese de em havendo letargia de entrega de laudo por perito, pode o juiz se valer desse meio coercitivo.
Outra questão é que o magistrado não está obrigado a impor a multa sempre que produzir tais atos, como bem se utiliza o § 4º, da expressão “poderá”, ou seja, somente quando vislumbrar situação de letargia do réu, que se utilizará de tais meios coercitivos, podendo assim se dar a posteriori a decisão da concessão da liminar ou da sentença, uma nova decisão interlocutória, que é passível de recurso de agravo.
Concomitantemente a imposição da multa, tem-se a fixação de prazo para cumprimento do decisum ou primeiro este e correndo in albis, em decisão posterior, a caracterização da astreinte.
Há quem, sustente ser desnecessária a determinação de prazo para cumprimento da decisão70, que deverá levar em conta a urgência da periclitação do direito (perigo de dano). Tal entendimento não há que prosperar, pois se não há prazo para cumprir a ordem, o réu certamente ficará ad aeternum para realizá-la.
Com efeito, o tempo dado ao réu para que realize o facere, deverá ser razoável, levando-se em consideração a questão posta em juízo, não sendo este muito exíguo, a ponto de que não possa cumpri-la, nem muito dilatado, a ponto de frustrar a eficácia da decisão judicial.
3.2.3 O valor da multa
O Código de Processo Civil não impõe qualquer limite ao valor da multa, nem se arriscou a estabelecer um patamar mínimo, ficando assim, a critério do magistrado estabelecer o quantum, ainda que a parte requeira a imposição de determinado valor, pois o magistrado não fica a distrito a esse pedido, dado o caráter público e por ser medida de juízo, como já dito, não guarda relação direta como o direito material, não se submetendo ao valor da obrigação devida.
É cediço esclarecer que o valor da multa deve assumir um real caráter coercitivo de modo a causar uma pressão psicológica ao demandado e para tanto, leva-se em consideração a capacidade econômica do réu, com ligação proporcional a onerosidade que deve causar a este, não prevalecendo nesse ponto, a vontade de se manter inerte.
Com eloqüência, Nelson Netto (2003, p. 200), descrever o que se deve ponderar na fixação do valor da multa, in literis:
O valor deverá ser balizado pela análise combinada do patrimônio do réu e da conduta que está sendo exigida (v.g., não pode ser tão pequeno que ao réu seja mais interessante pagá-la e descumprir a ordem judicial, nem tão pouco pode ser elevado demais de sorte que as forças do patrimônio do réu não possam fazer frente a seu pagamento, propiciando que ele deixe de cumprir a obrigação, uma vez que o valor da multa torna-se algo ‘incobrável’).71
Nesse ponto, o magistrado não pode ficar com receio de fixar o valor da multa em patamar muito elevado, pensando no pagamento, já que o intuito da astreinte é obrigar o demandado a cumprir a ordem judicial e nesse esteio, deve atingir um quantum, significativamente alto, de modo que o devedor se sinta pressionado a sair do seu estado de letargia. Por isso, que a multa não tem patamar máximo, sendo o valor atingido na totalidade da multa, proporcional a recalcitrância do demandado no atendimento da ordem judicial.
Em sentido contrário, data vênia, de forma equivocada, o STJ acabou por entender que quando a totalidade da multa atingisse o valor de um milhão de reais e o valor do bem objeto do processo é inferior a R$ 100,00 (cem mil) reais, configuraria enriquecimento ilícito, como se depreende do julgado no Resp 947.466- PR, em noticia veiculada no informativo de nº. 407, da mesma casa, que colaciono a seguir:
ASTREINTES. VEÍCULO. SUBSTITUIÇÃO. A Turma reiterou o entendimento de que configura enriquecimento sem causa a execução do valor das astreintes em quantia superior a R$ 1 milhão, quando o bem objeto do pleito principal (automóvel similar) é bem inferior a R$ 100 mil atuais, pois o objetivo deve ater-se aos limites da razoabilidade. Com efeito, foi provido o recurso para reduzir o valor da multa diária de R$ 200 para R$ 100, até porque o autor obteve a substituição do veículo por outro, bem como a indenização por danos morais (no valor de R$ 20 mil). Precedentes citados: Resp 793.491-RN, DJ 6/11/2006; AgRg no Ag 745.631-PR, DJ 18/6/2007, e Resp 705.914-RN, DJ 6/3/2006.
Resp 947.466-PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 17/9/2009.
Essa exegese não há que prosperar, pois, como dito alhures, a astreinte não guarda qualquer relação com o valor do objeto discutido em juízo, mas sim com a dignidade da justiça, não tendo qualquer limite, como constatamos de anteriores julgados desse mesmo tribunal, no Resp 141.559, de Relatoria do Min. Eduardo Ribeiro, em que se entendeu que não há limite para a multa, ao contrário do que era previsto no Código de 1939, pois visa tão somente induzir ao cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, não se justificando qualquer tolerância com o devedor.
Urge esclarecer que se mostra mais razoável que o valor estipulado na multa, ante o silêncio do legislador, seja expresso em moeda corrente nacional, não se devendo usar como valor da multa, qualquer parâmetro valorativo ou índice oficial, para que não se obscure a sanção e se facilite à execução dos valores devidos.
3.2.4 Modificação e revogação da multa
A Lei 10.444/02 introduziu em seu artigo 461 do CPC, o parágrafo sexto, que disciplina a possibilidade de o magistrado alterar o valor ou a periodicidade da multa imposta, seja para majorar ou reduzir, quando detectada alguma alteração no quadro fático, podendo até mesmo ser sem requerimento de alguma das partes, dada a característica da astreinte.
Como salientado anteriormente, o juiz ao estipular o valor da multa imposta, deve levar em consideração a capacidade econômica do réu e a natureza da obrigação a ser adimplida e, neste quadro, pode ocorrer que a multa imposta pelo magistrado, inicialmente, não surta os efeitos psicológicos que deveriam gerar, ou seja, não fora capaz de fazer com que o demandado saísse do seu estado de inércia, exurgindo neste momento, a necessidade de majorar o valor dado, que por meio de decisão interlocutória, buscará dar maior força coercitiva ao comando judicial.
Situação inversa também pode ocorrer, que é a diminuição do valor da multa, caso se verifique que se tornou excessiva, pela respectiva alteração no plano fático processual, por exemplo, cumprimento parcial da ordem judicial. Não havendo que se olvidar falar em excessividade da astreinte quando pela demora do demandado em cumprir a mandamus judicial, o valor atingir um patamar estratosférico, pois esse valor, nada mais, reflete a renitência do réu e, nessa esteira, em notícia veiculada no informativo de nº. 408 do STJ, ao contrário de outras deste tribunal, por conta do julgamento do Resp 1.022.033-RJ, ficou assentado esse entendimento, in literis:
ASTREINTE. TURBAÇÃO. Trata-se de Resp em que se busca definir se pode haver execução de multa cominatória, no caso, diária (astreinte), fixada para o descumprimento de decisão judicial que determinava a derrubada de muro e o fim da turbação possessória. Para a Min. Relatora, na hipótese em questão, restou evidente que o único obstáculo à efetividade do direito já reconhecido por sentença era o descaso da recorrente pela Justiça. Se a multa diária tem por objetivo forçar o devedor renitente a cumprir sua obrigação, não há como reduzi-la sem cair em contradição, pois a conclusão inafastável que se retira de todo o contexto fático é que, nem diante do acúmulo de uma multa pesadíssima, a recorrente cedeu à ordem judicial. Assim, desde a fixação da multa, passaram-se tantos dias quantos quis a recorrente e nada era óbice para que se cumprisse a ordem de demolição. (...) A multa, portanto, perdurou enquanto foi necessário; se o valor final é alto, ainda mais elevada era a resistência da recorrente a cumprir o devido. Dessa forma, a análise do excesso desse valor não deve ser feita na perspectiva de quem, olhando para os fatos já consolidados no tempo, procura razoabilidade quando, na raiz do problema, existe justamente um comportamento desarrazoado de umas das partes; ao contrário, a eventual revisão deve ser pensada de acordo com as condições enfrentadas no momento em que a multa incidia e com o grau de resistência do devedor. Desse modo, a redução não se faz possível sem que, com isso, a própria natureza da multa cominatória seja violada. Com esses argumentos, entre outros, a Turma negou provimento ao recurso.
Resp 1.022.033-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/9/2009. (Grifo nosso)
Desse modo, a modificação do valor da multa, deve estar fundamentada na alteração da situação fática que a enseja, do mesmo modo a constatar a sua insuficiência ou excessividade.
Não se mostra óbice algum, a alteração da astreinte, após a certidão de trânsito em julgado da sentença que a tenha fixado, pois em havendo alteração no plano empírico na fase de execução, nascerá à necessidade de modificação, podendo até ser de oficio, para que se adapte ao novo contexto do litígio, já que a sentença, nesse ponto, se reveste da claúsula rebus sic stantibus.
Quanto à revogação da multa pecuniária, novamente o legislador quedou-se inerte, em nada tratando do tema. Pois bem, é de se concluir que se faz necessário a revogação quando se perceber que esse instrumento hábil de coerção não se tornar mais útil, como por exemplo, constatação de estado de insolvência do réu, que por óbvio, frustra a coação ao patrimônio do demandado e outra hipótese de revogação, ainda que tacitamente, é a satisfação do direito do autor, que por essa razão, perde sua finalidade e deixa de existir.
3.2.5 Execução da multa
A execução da astreinte, seja ela imposta por conta de decisão interlocutória ou sentença, se dá por meio da ação de execução por quantia certa, fundada em título executivo judicial, sendo proposta após a constatação da certidão do trânsito em julgado da sentença.
Nessas circunstâncias, a cobrança do credito decorrente da multa, deve atender os requisitos da certeza, que se afere pela ausência de duvida do conteúdo da prestação devida; liquidez, em que é facilmente constatada por simples cálculo aritmético do valor imposto pelo juiz e a exigibilidade, que se consagra pela eficácia da multa aliada à desobediência do réu.
Contudo, a questão não se mostra tão simples como parece. A doutrina e a jurisprudência se digladiam, com entendimento para todos os lados, uma vez que o código de processo civil não estabeleceu em que momento se daria a cobrança da astreinte, se somente depois do trânsito em julgado ou se poderia ser antes do mesmo e, ocorrendo tal hipótese, se teria caráter provisório ou definitivo.
No sentido de se poder realizar a execução antes do trânsito em julgado da sentença, está o sustentáculo de que a multa é desvinculada do direito substantivo (material), estando relacionada com a efetividade do processo e a dignidade da justiça, já que a função da multa é garantir a obediência do comando judicial e o seu fato gerador está justamente no desatendimento do comando. Assim entende Spadoni (2001, p. 499), in verbis:
Em todo caso, os valores da multa passam a ser devidos desde o momento em que for constatado o não cumprimento do preceito judicial pelo réu, podendo desde logo, serem cobrados judicialmente, em execução definitiva, sem que haja a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado da eventual sentença de procedência.72
Do mesmo modo, o STJ já decidiu, em voto da lavra do Min. Francisco Falcão, na primeira turma, em 27/02/2007, no Resp. nº. 885.737/SE, em que ficou assentado o entendimento de que é possível a execução de imediato da multa, sem que se configure afronta ao art. 475-N, do CPC, sendo um título executivo judicial que não se insere neste rol, mas que pode dar ensejo a execução provisória, dada a característica da astreinte, que é vencer a inércia do devedor.
Indo mais longe, parte da doutrina invoca a dissociação entre o resultado do julgamento do processo com a aplicação da multa pecuniária, sustentando a independência dos dois, ainda que julgado improcedente a demanda, pois a astreinte, visa garantir a obediência à ordem judicial, pouco importando se a ordem se justifica ou não, como sustenta JUNIOR (2001, p. 562), in verbis:
Tenha ou não o autor o direito, quanto ao cerne da controvérsia, o certo é que o fundamento que autoriza a exigência da multa é a desobediência a uma decisão judicial. Se o réu não concorda deve recorrer, não apresentada qualquer irresignação ou não sendo esta provida, o direito ao recebimento da multa, ao nosso ver, independe do resultado final do processo.73
De outro bordo está a maioria da doutrina, na exegese de não ser possível à execução da multa antes do trânsito em julgado da sentença, a não ser na hipótese de execução provisória, condicionando a cobrança, a procedência do pleito autoral. A base legal desse entendimento está na lei que disciplina as ações civis publicas, Lei 7.347/85, no seu art. 12, § 2º e na Lei 8.069/90, que instituiu o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 213, § 3º.
Esses dispositivos legais especiais disciplinam que as multas impostas em sede de concessão de medida liminar, como meio efetivador indireto, somente poderão ser cobrados após o trânsito em julgado da sentença que confirme o ato concessivo da antecipação da tutela, tendo aplicação subsidiária ao regime geral, estabelecido no CPC.
Tentando refutar essa interpretação, a doutrina contrária já exposta aduz que não se pode realizar uma aplicação subsidiária das leis especiais ao código de processo civil, que é norma geral, pois iria contrariar o objetivo geral da lei, já que o que é especial é exceção. Data máxima vênia, cai por terra esse entendimento, já que a norma geral não dispôs qualquer linha sobre o tema, se fazendo necessário que o interprete da lei se utilize primeiramente de outras disposições legais, para depois utilizar-se de outros meios interpretativos.
Nesse desiderato, já decidiu o TJRJ, em 26/08/2009, no agravo de instrumento de nº. 2009.002.29597, sendo relator o Des. Gilberto Dutra, da décima câmara cível, com a seguinte ementa:
Agravo de instrumento. Ação revisional. Tutela antecipada concedida. Invocação de descumprimento da determinação da ordem judicial. Pedido de execução provisória da astreinte indeferido. Multa diária fixada em caso de descumprimento de tutela antecipada concedida de forma precária, em juízo de cognição sumária. Execução das astreintes apenas ao final e desde que confirmada a antecipação de tutela concedida initio litis. Exegese do art. 461, § 6º do C.P.C. confirmação da tutela antecipada em sentença e intimação pessoal do devedor. Antecedentes lógicos que conferem exeqüibilidade a multa. Inexistência de titulo a ser executado em relação a penalidade cominada. Jurisprudência assente deste tribunal neste sentido, restando caracterizado o dissídio apenas quanto a necessidade de trânsito em julgado. Recurso a que se nega seguimento, na forma do art. 557, caput, do CPC.74
Assim, em atenção à segurança jurídica das relações, não faz jus a parte requerer a execução da multa, antes de passada em julgado a decisão que a concedeu, pois se o direito do autor não for reconhecido, o crédito da multa deixa de existir, senão, estaríamos admitindo que qualquer decisão teratológica determinando um facere e que imponha multa como meio coercitivo indireto e sendo reformada a decisão, a multa ainda seria devida, claro que não.
Ultrapassada essa questão, analisemos a possibilidade de correção monetária do quantum devido e a incidência de honorários advocatícios, que é outra celeuma da doutrina e jurisprudência, como se pode constatar nos dois julgados do TJRJ, com posições antagônicas:
Sentença, transitada em julgado. Execução de multa pecuniária fixada para o caso de descumprimento após o prazo estabelecido, acrescida de honorários advocatícios. Incidência de correção monetária na execução das astreintes a partir do momento do descumprimento do decisum. Possibilidade. Reconhecimento legal e jurisprudencial. Agravo de instrumento conhecido. Recurso que se nega provimento.
(Agravo de Instrumento, nº. 2009.002.24624, Des. Sergio Jerônimo – Julgamento: 04/08/2009 da Nona Câmara Cível).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução de título judicial. Acolhimento parcial da impugnação: exclusão da imposição da multa no período compreendido entre 15.09.03 e 08.03.04 e da incidência de correção monetária, juros e honorários sobre o valor da astreinte; redução do valor da multa diária para R$ 500,00 (CPC, art. 461, § 6º). O pleito de condenação do impugnado, ora agravado, nos ônus da sucumbência deverá ser apreciado pelo Juízo, observado o disposto no art. 20, § 4º, do CPC. Recurso a que se dá parcial provimento.
(Agravo de Instrumento, nº. 2008.002.20035, Des. Jesse Torres – Julgamento: 04/07/2008 da Segunda Câmara Cível).
Não merece sucesso o segundo arresto do pretório fluminense, uma vez que todo e qualquer valor merece atualização monetária, principalmente a astreinte, sob pena de perder a coercibilidade, sua principal finalidade, caso contrário, o devedor renitente, postergaria o seu adimplemento, com recursos infundados, até que atingisse um valor, em determinada época, já desgastado pela inflação, que pudesse pagar. Já no que concerne aos honorários advocatícios, esses são devidos sempre que houver atividade do patrono do autor na busca pela satisfação da multa, em que o devedor se escusa em pagar espontaneamente do contrário, em pagamento voluntário, não seria necessário à inclusão dos honorários advocatícios.