1. O SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO NOS TERMOS DA CF/88
Em março de 2019, pelo STF foi instaurado o Inquérito (INQ) 4781, através da Portaria GP 69/2019, assinada pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli e Relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, que o descreveu, inicialmente, da seguinte forma:
“O objeto deste inquérito é a investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que tem o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado de Direito.”
Sob a ótica do sistema processual penal adotado no ordenamento jurídico brasileiro, tal instauração ex officio do inquérito viola tanto a Constituição Federal, bem como também todo o ordenamento jurídico, que instituiu na República Federativa do Brasil tal sistema, a saber, o acusatório.
O Inquérito 4.781 está em total discrepância com os princípios basilares do processo penal, ferindo o vitalmente o devido processo legal, maculando o contraditório e a ampla defesa, bem como a inércia da jurisdição e a imparcialidade do magistrado.
Tal inquérito é no mínimo ilegal e demonstra uma atitude estranha e autoritária de membros de uma instituição que deve ser guardiã da Constituição Federal, conforme preceitua o artigo 102 da referida Lei Magna. [1]
Com a Constituição Federal de 1988, a persecução penal no Brasil sofreu modificações e avanços consideráveis.
O sistema penal acusatório é utilizado em regimes democráticos, tendo como principal característica a distinção entre as funções de investigar, acusar, defender e julgar, as quais são incumbidas para instituições e pessoas distintas.
Vale ressaltar que a legislação processual penal ainda não foi totalmente reformulada pelo Poder Legislativo, havendo ainda muitos resquícios do sistema penal inquisitório no ordenamento jurídico brasileiro, tendo inclusive alguns doutrinadores entendendo que o Brasil adota o sistema penal misto, considerando a fase de inquérito policial, na qual vigora o sistema inquisitorial, e o sistema acusatório na fase judicial.
Entretanto o modelo constitucional que adota o sistema acusatório deve prevalecer em todos os casos, pois é esse o sistema estabelecido no artigo 129, inciso I, pela Constituição Federal. [2]
Ainda que haja entendimento de que no Brasil vigora o sistema processual misto, no qual há uma primeira fase inquisitiva e uma segunda fase acusatória, a Constituição estabelece garantias ainda na fase de inquérito, bem como há entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal assegurando direitos à defesa na fase de investigação, a exemplo, pela Súmula Vinculante número 14. [3]
Portanto, independentemente de qual seja a ótica em que se analisa o sistema processual penal brasileiro, existe algo em comum: que os direitos do cidadão não podem ser violados, seja na fase investigativa, seja na fase acusatória, devendo ser ambas realizadas sob a ótica do devido processo legal.
É imprescindível salientar que ninguém pode ser levado a julgamento sem que exista uma acusação e, diante dessa, é garantido pela Constituição Federal o contraditório e a ampla defesa para o réu, são direitos de qualquer cidadão, independente daquilo que ele cometeu ou esteja sendo acusado de ter cometido, são garantias constitucionais, previstas em seu inciso LV do artigo 5º. [4]
Neste sistema processual há paridade nas armas, possibilitando às partes o equilíbrio processual, tendo em vista que em todo tempo a defesa não fica prejudicada diante dos atos processuais realizados pela acusação.
No sistema acusatório aplica-se o princípio da inércia de jurisdição, o qual estabelece que o início do processo jamais deva ocorrer por iniciativa do magistrado, devendo sempre o processo ser iniciado mediante provocação do interessado.
2. A APDF 572 E O INQUÉRITO 4781
No dia 10 de junho de 2020 o STF iniciou o julgamento em Sessão Plenária da ADPF 572 que questiona a (in)constitucionalidade do Inquérito 4781, proposta pela Rede Sustentabilidade. Como citado, o nomeado "inquérito das fake news" foi instaurado para apurar notícias falsas, denunciações caluniosas, ofensas e ameaças a ministros do STF.
O STF, através de seu Presidente Dias Toffoli, por meio da Portaria GP n.º 69, de 14 de março de 2019, determinou a abertura do Inquérito nº 4781 no STF, para investigar a possível existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de calúnia, difamação e injúria contra os membros do STF e de seus familiares.
Segundo a proposta da Rede Sustentabilidade não há indicação de ato praticado na sede ou dependência do STF e nem quem são os investigados ou se estes estariam sujeitos à jurisdição do STF. Alega então que não compete ao Poder Judiciário conduzir investigações criminais, defende a necessidade de representação do ofendido para a investigação dos crimes contra a honra e a falta de justa causa para a instauração de inquéritos por fatos indefinidos. Outro ponto destacado na ADPF é que o inquérito não foi submetido à livre distribuição, de acordo com previsão do Regimento Interno do STF. No dia 29/05/2020, o partido Rede Sustentabilidade pediu a extinção da ação, sem resolução do mérito, "pelo seu não cabimento diante de ofensa meramente reflexa à Constituição, prejudicando a apreciação das medidas cautelares requeridas".
Na condição de Amicus Curiae, ou "amigo da corte", ou auxiliar do órgão jurisdicional no sentido de lhe trazer mais elementos para decidir, foram admitidos o Colégio dos Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil, a Associação Nacional das Empresas de Comunicação - Segmentada (Anatec), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp).
Representando o PTB, na condição de Amicus Curiae falou o advogado Dr. Luiz Gustavo Pereira da Cunha. Em sua explanação ele fez uma lista dos problemas a serem observados no Inquérito alegando que o Inquérito é uma afronta ao Estado Democrático de Direito e o comparou ao AI5. Afirmou configurar uma situação de Tribunal de Exceção. Em toda a sua explanação o advogado destacou afronta ao artigo 129 da Constituição Federal que prevê competência do Ministério Público para promover inquérito civil, à Lei Orgânica da Magistratura Nacional em seu artigo 33, parágrafo único; à própria Súmula Vinculante nº 14 e jurisprudência do STF. A decretação do sigilo absoluto foi duramente rechaçada pelo advogado ressaltando a Súmula Vinculante citada e clara afronta a preceito constitucional da ampla defesa e contraditório. Lembrou da postura da ex-procuradora da república Raquel Dodge que solicitou o arquivamento do feito antes da sua saída do cargo, e que este não foi acolhido. Falou também de graves violações constitucionais e legais como a violação da prerrogativa de foro, uma vez que vários dos investigados não detém o foro, criticou o mandado de busca e apreensão à residência de pessoas alheias aos investigados. O advogado apropriou-se da fala de Ruy Barbosa para lembrar que: "A pior ditadura é a ditadura do Judiciário. Contra ela não há há quem recorrer."
Na sessão de 17/06/2020, o julgamento, iniciado na semana anterior, foi retomado com os votos dos ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
O relator, ministro Edson Fachin, reformulou seu voto para julgar totalmente improcedente a ADPF 572. Na sessão de 10/06/2020, ele havia manifestado a necessidade de impor alguns parâmetros à investigação, como o acompanhamento pelo Ministério Público e a observância do direito dos advogados de amplo acesso aos elementos de prova contra seus clientes. No entanto, ele concluiu que esses requisitos já estão sendo cumpridos, conforme informou o relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes.
O julgamento prosseguirá no dia 18 de junho de 2020, com os votos dos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Dias Toffoli (presidente).O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) dará continuidade, então, ao julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 572, em que se questiona a portaria da Presidência da Corte que determinou a instauração do Inquérito (INQ 4781), para investigar notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações que podem configurar crimes e atingir o Supremo, seus membros e familiares. Até então, oito ministros proferiram seus votos e se manifestaram pela constitucionalidade do inquérito.
Desta forma, o STF caminha para afirmar/decidir pela improcedência da ADPF 572 e a constitucionalidade do Inquérito que, é, sem dúvida, inconstitucional.
[1] Constituição Federal de 1988, artigo 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição;
[2] Constituição Federal de 1988, artigo 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
[3] Súmula Vinculante: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
[4] Constituição Federal de 1988, artigo 5º, inciso LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Cf. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=445764 Acesso em 17/06/2020 às 21 hrs.