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Notas sobre a alienação do trabalho intelectual e o novo dilema de Promoteu

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Agenda 01/05/2006 às 00:00

4. OS INTELECTUAIS E A PROLETARIZAÇÃO

O filósofo holandês Baruch SPINOZA, em meados do século XVII, afirmou que "só o conhecimento é liberdade" e que "a única felicidade permanente é a busca do conhecimento e a alegria da compreensão". Para ele "embora os homens se achem livres porque têm volições e desejos", "ignoram as causas pelas quais são levados a desejar e querer". A resposta para esta dúvida, tomando como ponto de partida o trabalho de MARX e ENGELS, só pode encontrar explicação na "alienação" e na "ideologia".

Com a divisão social do trabalho, o trabalho intelectual e trabalho manual foram separados. Para a burguesia, são trabalhos totalmente distintos quanto à técnica e à substância, a ponto de Taylor classificar o trabalhador manual como "gorila amestrado".

A divisão social do trabalho, conforme destacam MARX e ENGELS, entre trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais, atingem a própria classe dominante, no caso do capitalismo a burguesia. Segundo estes autores, aparecem nesta classe os seus pensadores (ideólogos ativos, conceptivos, que fazem da formação de ilusões desta classe a respeito de si mesma seu modo de subsistência enquanto classe dominante), e outros que se relacionam de maneira passiva e receptiva com as idéias criadas pelos primeiros, os quais na realidade são os membros ativos desta classe e têm pouco tempo para produzir idéias e ilusões acerca de si próprios:

"(...) No interior desta classe, essa cisão pode mesmo conduzir até a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, mas esta hostilidade, entretanto, desaparece por si mesma logo que surge qualquer colisão prática capaz de colocar em perigo a própria classe, ocasião em que desaparece também a aparência de que as idéias da classe dominante não são idéias da classe dominante e têm um poder diferente do poder desta classe. (...)" (MARX; ENGELS, 1986:73)

Ao desenvolver a sua sociologia do conhecimento, o húngaro Karl MANNHEIM afirma que, não obstante ser verdade que só o indivíduo é capaz de pensar, "seria falso daí deduzir que todas as idéias e sentimentos que motivam o indivíduo tenham origem apenas nele, e que possam ser adequadamente explicados tomando-se unicamente por base sua experiência de vida".

"(...), é incorreto dizer-lhe que um indivíduo isolado pensa. Antes, é incorreto insistir em que ele participa no pensar acrescentando-se ao que outros homens pensaram antes dele. O indivíduo se encontra em uma situação herdada, com padrões de pensamento a ela apropriados, tentando reelaborar os modos de reação herdados, ou substituindo-os por outros, a fim de lidar mais adequadamente com os novos desafios surgidos das variações e mudanças em sua situação. (...)" (MANNHEIM, 1986:31)

Para MANNHEIM, com a derrocada da organização medieval, os intelectuais que outrora estavam compelidos a pensar conforme a rigorosa organização da igreja, foram libertados e tiveram reconhecidas, cada vez mais, outras formas de interpretar o mundo.

"A emergência do problema da multiplicidade de estilos de pensamento surgida no decorrer do desenvolvimento científico e a percetibilidade de motivações do inconsciente coletivo, anteriormente veladas, é apenas um dos aspectos da preponderância da inquietação intelectual que caracteriza nossa época. Apesar da difusão democrática do conhecimento, os problemas filosóficos, psicológicos e sociológicos por nós apresentados têm sido confinados a uma minoria intelectual relativamente pequena. Esta inquietação intelectual veio gradativamente sendo encarada, por tal minoria, como um seu privilégio profissional, e seria considerada como preocupação privada destes grupos se todos os estratos não tivessem, com o crescimento da democracia, sido atraídos à discussão política e filosófica." (MANNHEIM, 1986:60)

Segundo Karl MANNHEIM, num momento social e político como o contemporâneo, onde cada vez mais as pessoas tendem a tomar consciência de sua situação de classe, os intelectuais assumem uma posição especial. Não que se possa considerar os intelectuais politicamente em termos independentes, mas sim pela possibilidade da descoberta de uma perspectiva total de interpretação da sociedade:

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"O ponto de vista político de um grupo, cuja posição de classe esteja mais ou menos definitivamente fixada, já se encontra por tal posição definido. Quando isso não sucede, como no caso dos intelectuais, existe uma área mais ampla de escolha e uma correspondente necessidade de orientação total e de síntese. Esta última tendência, oriunda da posição dos intelectuais, existe, ainda que a relação entre os vários grupos não conduza à formação de um partido integrado. Analogamente, os intelectuais permanecem capazes de chegar a uma orientação total mesmo depois de ingressarem em um partido. A capacidade de adquirir um ponto de vista mais amplo deveria ser considerada meramente um ônus? Não se trataria, pelo contrário, de uma missão? Só aquele que realmente pode escolher é que tem interesse em perceber o conjunto da estrutura social e política. Somente no período de tempo e no estágio de investigação que é dedicado a deliberação é que se poderá encontrar a localização sociológica e lógica do desenvolvimento de uma perspectiva sintética. A elaboração de uma decisão só é verdadeiramente possível sob condições de liberdade baseadas numa possibilidade de escolha que continue a existir, mesmo depois de tomada a decisão. Devemos a possibilidade de interpenetração mútua e compreensão das correntes de pensamento existentes à presença deste extrato médio relativamente desvinculado das mais diversas classes e grupos sociais, com todos os pontos de vista possíveis. Só nessas condições pode surgir a síntese incessantemente nova e ampla a que nos referimos." (MANNHEIM, 1986:186)

O marxista italiano Antônio GRAMSCI, em seus manuscritos escritos no cárcere, estabelece uma distinção entre dois tipos de intelectuais: os intelectuais orgânicos, vinculados às classes sociais e que lhes dão homogeneidade e consciência de sua função na sociedade [14]; e os intelectuais tradicionais herdados dos períodos históricos anteriores [15]. A trajetória histórica, a "qualificação" técnica, cria uma espécie de "espírito de grupo" entre estes intelectuais e a aparência de que são independentes e autônomos do grupo social dominante. GRAMSCI alerta que há um erro metodológico constantemente difundido que busca encontrar um critério de distinção intrínseco às atividades intelectuais, ao invés de buscá-los no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades se encontram inseridas, ou seja, "das relações sociais".

Antônio GRAMSCI recupera a idéia de que todos os homens são intelectuais, mas com a divisão social do trabalho e a especialização técnica, nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais.

"Quando se distingue entre intelectuais e não-intelectuais, faz-se referência, na realidade, tão-somente à imediata função social da categoria profissional dos intelectuais, isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso maior da atividade profissional específica, se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular nervoso.(...)" (GRAMSCI, 1979:7 – grifos nossos)

Segundo o marxista italiano, as mais marcantes características de todo o grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista ideológica dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborara simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos. Toda classe que pretende ser hegemônica (ou dominante), necessita criar seus próprios intelectuais orgânicos, tarefa na qual os partidos ocupam um papel fundamental:

"Que todos os membros de um partido devam ser considerados como intelectuais, eis uma afirmação que se pode prestar à ironia e à caricatura; contudo, se pensarmos bem, veremos que nada é mais exato. Dever-se-á fazer distinção de graus; um partido poderá ter uma maior ou menor composição do grau mais alto ou mais baixo, mas não é isto que importa: importa, sim, a função, que é diretiva e organizativa, isto é, educativa, intelectual. (...)" (GRAMSCI, 1979:15).

GRAMSCI destaca que o enorme desenvolvimento alcançado pela atividade educacional nas sociedades que surgiram do mundo medieval indica a importância assumida no mundo moderno pelas categorias e funções intelectuais. Buscou-se aprofundar e ampliar a intelectualidade de cada indivíduo, aperfeiçoá-la e especializá-la. Numa sociedade vertical e hierarquizada como a medieval e a burguesa, a escola acaba sendo o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis, formando a dicotomia entre a chamada "alta cultura" e a "baixa cultura", em todos os campos da técnica e da ciência.

"A mais refinada especialização técnico-cultural, não pode deixar de corresponder a maior ampliação possível da difusão da instrução primária e a maior solicitude no favorecimento dos graus intermediários ao maior número. Naturalmente, esta necessidade de criar a mais ampla base possível para a seleção e elaboração das mais altas qualificações intelectuais – ou seja, de dar à alta cultura e à técnica superior uma estrutura democrática – não deixa de ter inconvenientes: cria-se, deste modo, a possibilidade de vastas crises de desemprego nas camadas médias intelectuais, tal como realmente ocorre em todas as sociedades modernas." (GRAMSCI, 1979:9-10)

Numa busca mais aprofundada no trabalho de Karl MARX, podemos encontrar mais um elemento que amplia a assertiva de GRAMSCI. Os modernos profissionais, intelectuais e artistas, também ocupam espaço no universo do proletariado, na medida em que também estão subordinados à alienação do trabalho e ao modo de produção capitalista. Os intelectuais sobrevivem somente enquanto trabalham, e só encontram trabalho enquanto este colabora para a incrementação do capital. O seu trabalho possui valor de troca e valor de uso, mas diferentememte da maioria dos trabalhadores, como destaca MARX, os intelectuais se envolvem pessoalmente com o seu trabalho. Tais trabalhadores, que precisam vender-se peça por peça, constituem uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio e estão, conseqüentemente, sujeitos a todas as vicissitudes da competição e a todas as flutuações do mercado:

"Por que Marx se refere, em primeiro lugar, ao halo que circunda as cabeças dos modernos profissionais e intelectuais? Para trazer à luz um dos paradoxos de seu papel histórico: não obstante se orgulhem da natureza emancipada de seus espíritos, através dos séculos, eles vêm a ser os únicos modernos a de fato acreditar que atendem ao chamado de suas vocações e que seu trabalho é sagrado. É óbvio para qualquer leitor de Marx que ele partilha essa mesma fé, em seu compromisso com o trabalho intelectual. No entanto, ele sugere aí que, de algum modo, trata-se de uma fé negativa, uma auto-ilusão. Essa passagem é especialmente interessante porque à medida que vemos Marx se identificando com a força e o discernimento crítico da burguesia, tentando despir os halos das cabeças dos modernos intelectuais, percebemos que, de um modo ou de outro, é a sua própria cabeça que ele pretende ver despida.

O fato básico da vida para esses intelectuais, como Marx os vê, é que eles são "trabalhadores assalariados" da burguesia, membros da "moderna classe trabalhadora, o proletariado". Eles talvez neguem essa identidade – afinal, quem deseja pertencer ao proletariado? –, mas são lançados à classe trabalhadora pelas condições historicamente definidas sob as quais são forçados a trabalhar. Quando descreve os intelectuais como assalariados, Marx está tentando fazer-nos ver a cultura moderna como parte da moderna indústria. Arte, ciências físicas, teoria social (como a do próprio Marx), tudo isso são modos de produção; a burguesia controla os meios de produção na cultura, como em tudo o mais, e quem quer que pretenda criar deve operar em sua órbita de poder." (BERMAN, 1997:113)

Foi exatamente este ponto analítico que proporcionou ao marxista belga Ernest MANDEL superar MARCUSE na interpretação das vicissitudes da sociedade industrial. Diferentemente do que pensavam os social-democratas da Segunda Internacional, a proletarização progressiva da sociedade capitalista, intuída por MARX, não se deu pela incorporação dos intelectuais aos quadros do operariado fabril, senão pela própria "proletarização" do trabalho intelectual. Esta variável empírica, não foi observada pelos líderes da Revolução Cultural Chinesa, nem por boa parte dos intelectuais da esquerda, incluindo os teóricos da Escola de Frankfurt, na medida em que viam o proletariado com os olhos do século XIX [16].

"Um processo de proletarização do trabalho intelectual está, pois, em marcha. A proletarização não significa essencialmente (e em certos casos de modo nenhum) um consumo limitado ou um baixo nível de vida, mas uma alienação crescente, a perda de acesso aos meios de trabalho e de controle das condições de trabalho, uma subordinação crescente do trabalhador a exigências que não tem mais nenhuma ligação com as suas capacidades ou as suas necessidades próprias [...] A superespecialização, a instrumentalização e a proletarização do trabalho intelectual são as manifestações objetivas da alienação crescente do trabalho e conduzem inevitavelmente a uma consciência subjetiva crescente dessa alienação. A sensação de perda de todo o controle sobre o conteúdo e o desenrolar do seu próprio trabalho está tão difundido nos nossos dias nos chamados especialistas, incluindo aqueles que saem da Universidade, como entre os trabalhadores manuais." (MANDEL, 1979:43-4)

Segundo MANDEL, o capitalismo da terceira fase do desenvolvimento do modo de produção capitalista, baseia-se numa revolução tecnológica, tal qual as duas fases que o precederam. O eixo desta revolução é a automação, a eletrônica, a energia nuclear, e eu acrescento a telemática e a biotecnologia. Enquanto a primeira revolução girava em torno do motor a vapor e a Segunda em torno do motor elétrico,

"o neocapitalismo, apareceu assim como uma fase do modo de produção caracterizada por uma corrida permanente na obtenção de rendimentos tecnológicos. O que provocou uma aceleração da inovação tecnológica, a partir dos anos 40 nos Estados Unidos e, depois de 1948, no resto dos países imperialistas. Dois aspectos importante do neocapitalismo surgem com a aceleração da inovação tecnológica, tanto ao nível econômico como social. [...] Por um lado essa aceleração conduz a uma obsolescência rápida das máquinas e dos equipamentos. [...] Por outro lado, a corrida ao rendimento tecnológico implica um crescimento colossal das despesas de pesquisa e de desenvolvimento (...)" (MANDEL, 1979:57-8)

Além destas, uma terceira conseqüência implica numa integração em larga escala do trabalho intelectual no processo de produção. Se nas fases anteriores do capitalismo o trabalho intelectual estava em larga medida limitado à esfera da superestrutura social, revela-se hoje cada vez mais inserido na infra-estrutura. Eu acrescentaria que com a difusão da telemática e dos meios de comunicação, o que antes era considerado uma simples manifestação ideológica, notícias, por exemplo, hoje inegavelmente consiste numa mercadoria. Longe de ser uma sociedade pós-industrial, o capitalismo após a terceira revolução industrial consiste na industrialização sempre mais acabada de todas as atividades humanas, e com o desenvolvimento da biotecnologia, do próprio ser humano.

"A proletarização do trabalho intelectual implica a sua especialização, veja-se a sua parcelarização, a sua atomização em extremo. Na época da glorificação dos peritos, adquirir uma tal qualificação apenas é possível em domínios cada vez mais reduzidos do saber. Conhecer a fundo um minúsculo setor de um ramo científico possuindo apenas vagos dados sobre o conjunto desse mesmo ramo e desconhecer totalmente outros domínios científicos, tal é o destino a que está condenado o trabalhador intelectual. Um trabalho intelectual desse tipo, parcelar, fragmentado, tendo perdido toda a visão de conjunto das atividades sociais em que se insere, não pode deixar de ser um trabalho alienado. A proletarização do trabalho intelectual nas condições do salariato conduz inevitavelmente à sua alienação." (MANDEL, 1979:63)

A reificação das relações humanas que se depreende da produção mercantil, tem como efeito considerar-se a atividade parcial e fragmentada como um objeto em si mesmo, que toda a dialética inerente às ações sociais humanas, entre os objetivos e os meios, está falseada.

"Não é por acaso que o neocapitalismo atribui tanta importância aos problemas de manipulação das massas e a organização totalitária da vida social. É essa a sua maneira de desconhecer a justeza da fórmula de Trotsky segundo a qual o fator decisivo da história, na época da decadência do capitalismo, é o fator subjetivo" (MANDEL, 1979:69)

Entretanto, se TROTSKY defendia que a "dialética não é imaginação nem misticismo e sim uma ciência", com o advento da mercantilização totalitária da ciência, promovida pelo capitalismo, o limite entre verdade e misticismo assume parâmetros medievais. Talvez os intelectuais estejam condenados à realização da tarefa apontada por FOULCALT, de não simplesmente mudar a consciência das pessoas, aquilo que elas têm na cabeça, "mas de libertá-las do próprio regime institucional de produção da verdade", e nesta tarefa a ação dialética é fundamental.

Sobre o autor
Sandro Ari Andrade de Miranda

Advogado no Rio Grande do Sul, Doutorando em Sociologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Sandro Ari Andrade. Notas sobre a alienação do trabalho intelectual e o novo dilema de Promoteu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1034, 1 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8332. Acesso em: 23 nov. 2024.

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