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Notas sobre a alienação do trabalho intelectual e o novo dilema de Promoteu

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01/05/2006 às 00:00
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3. ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E IDEOLOGIA

Na tradição do pensamento liberal "naturalista", onde se destacam John LOCKE e Jean Jacques ROSSEAU, a sociedade civil é o reino da ordem sobre um estado de natureza. A presença do Estado é aceita apenas para proteger a liberdade. Para HEGEL, ao contrário, a sociedade civil é o reino da "dissipação", da miséria e da corrupção física e ética, deve ter seu comportamento controlado pela capacidade "intelectual" superior do Estado, forma mais elevada da moral da ética humana.

"Instituindo o Estado-funcionário como instância suprema da decisão e como razão em ato; compreendendo a sociedade civil como domínio da luta pelo lucro e apresentando a propriedade e o trabalho como dados inelutáveis do processo histórico; prometendo para o futuro a satisfação universal como resultado da "mundialização" do Estado assim concebido, Hegel não fez mais do que hipostaziar uma situação de fato: a situação de sociedades onde a minoria da população, a burguesia industrial e mercantil e os proprietários fundiários, assenhorou-se do poder do Estado para manter sua exploração econômica e sua dominação política. Ele "esqueceu-se" do fato de que as camadas politicamente dirigentes, tanto na Prússia como na França e no Reino Unido, longe de estarem separadas da sociedade civil, ocupam nela um lugar preponderante; e de que as decisões de tais camadas, pretensamente tomadas em função do interesse geral, servem para o fortalecimento do poder delas. Hegel não viu que, em conseqüência disso, a dinâmica da sociedade civil, tal como ele a concebe, condena industriais e proprietários fundiários a buscarem o lucro máximo e exercerem uma violência incessantemente crescente sobre trabalhadores das cidades e dos campos." (CHATELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1990:125-6)

O princípio hegeliano, de que o Estado moderno encarna os ideais da Moral mais objetivos e manifesta a Razão no domínio da vida social, era tomado como apoio direto pelo Estado prussiano de Frederico Guilherme IV que, ao contrário da pregação ideológica liberal, mantinha um governo fortemente centralizado. Quando FEUERBACH, BAUER e MARX utilizaram-se da filosofia hegeliana para exercer uma crítica radical contra o Estado prussiano, o velho filósofo lhos denunciou como sonhadores e aliou-se ao governo prussiano, abençoando-o como a mais recente expressão do Absoluto, e passou a ser chamado por seus críticos de "filósofo oficial". "Ele começou a considerar o sistema hegeliano uma parte das leis naturais do mundo; esqueceu-se de que a sua própria dialética condenava o seu pensamento à impermanência e à decadência" (DURANT, 2000:283).

Segundo MARX,

"(....) a mistificação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais do movimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância dentro do invólucro místico." (MARX, 1980:17)

No prefácio que escreveu à sua obra "Para a Crítica da Economia Política", MARX escreveu que as relações jurídicas, tais como as formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, como pregavam os positivistas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, como defendia a Escola Histórica, mas, pelo contrário, "elas se enraízam nas relações materiais de vida, cujo a totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’ (bürgerliche Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses do século XVIII". A "sociedade civil", portanto, é o espaço onde ocorre o intercâmbio material dos indivíduos:

"A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção existentes em todas as fases históricas anteriores e que, por sua vez, as condiciona, é a sociedade civil; esta última, como se depreende do anteriormente exposto, tem como pressuposto e fundamento a família simples e a família composta, o que se costuma chamar de tribo, cujas determinações mais precisas foram dadas anteriormente. Vê-se, já aqui, que esta sociedade é verdadeiramente fonte, o verdadeiro cenário de toda a história, e quão absurda é a concepção histórica anterior que, negligenciando as relações reais, limitava-se às ações altissonantes dos príncipes e dos Estados. A sociedade civil abrange todo intercâmbio material dos indivíduos, no interior de uma fase determinada de desenvolvimento das forças produtivas. Abrange toda a vida comercial e industrial de uma dada fase e, neste sentido, ultrapassa o Estado e a nação, se bem que, por outro lado, deve se fazer valer frente ao exterior como nacionalidade e organizar-se no interior como Estado. A ‘sociedade civil’ aparece no século XVIII, quando as relações de propriedade já se tinham desprendido da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil, como tal, desenvolve-se apenas com a burguesia; entretanto, a organização social que se desenvolve imediatamente a partir da produção e do intercâmbio e que forma em todas as épocas a base do Estado e do resto da superestrutura idealista, foi sempre designada, invariavelmente como o mesmo nome". (MARX; ENGELS, 1986:52-3 – grifos nossos)

Como se vê, a sociedade civil é um produto da divisão social do trabalho, ela regula as relações de trocas materialmente estabelecidas pelos indivíduos. Ao mesmo tempo em que é a infra-estrutura da sociedade, é também a super estrutura. Ao mesmo tempo que é condicionada por todas as formas de produção existentes nas fases históricas anteriores, também as condiciona. Ao mesmo tempo que ultrapassa o Estado e as nacionalidades, deve fazer-se valer frente ao exterior como nação, deve-se organizar no interior como Estado. O Estado, portanto, é uma coletividade que no universo de trocas é incluído pela sociedade civil, ao mesmo tempo em que na organização externa a sociedade civil é incluída por ele:

"desde que os homens se encontram numa sociedade natural e também desde que há cisão entre o interesse particular e o interesse comum, desde que, por conseguinte, a atividade está dividida não voluntariamente, mas de modo natural, a própria ação converte-se num poder estranho a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado. Com efeito, desde o instante em que o trabalho começa a ser distribuído, cada um dispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual não pode sair, o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico [alusão à Bruno BAUER], e aí deve permanecer se não quiser perder seus meios de vida – ao passo que na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico. Esta fixação da atividade social – esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa ao nosso controle, que contraria nossas expetativas e reduz a nada nossos cálculos – é um dos momentos capitais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos. É justamente desta contradição entre o interesse particular e o interesse coletivo que o interesse coletivo toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de uma coletividade ilusória, mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar e tribal – tais como, laços de sangue, linguagem, divisão do trabalho em maior escala e outros interesses – e sobretudo, como desenvolveremos mais adiante, baseada nas classes, já condicionados pela divisão do trabalho, que se isolam em cada um destes conglomerados humanos e entre as quais há uma que domina todas as outras. Segue-se que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc., são apenas as formas ilusórias nas quais se desenrolam as lutas reais entre as diferentes classes. (...)" (MARX; ENGELS, 1986:47-8 – grifos nossos)

Mas com o advento da propriedade privada moderna, a existência particular, autônoma, do Estado, se submete à disciplina econômica:

"A esta propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, o qual, é comprado paulatinamente pelos proprietários privados através dos impostos, cai completamente sob o controle destes pelo sistema da dívida pública, e cuja existência, como é revelado pela alta e baixa de valores do Estado na bolsa, tornou-se completamente dependente do crédito comercial concedido pelos proprietários privados, os burgueses." (MARX; ENGELS, 1986: 97 – grifos nossos)

O Estado transforma-se no comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia.

"Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si na comuna; aqui, cidade-república independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluto, pedra angular das grandes monarquias; a burguesia, a partir do estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa." (MARX; ENGELS, 1988:78)

Logo, o Estado como uma forma independente e separada dos reais interesses particulares e gerais, constitui-se numa coletividade ilusória, portanto o Estado é "ideologia". O Estado também submete-se ao universo de produção material, sua representação não é apenas ideal, ou seja, simples expressão dos acontecimentos no mundo social, ele também tem existência material além de estar inserido na lógica do capital, portanto, o Estado também é "produção". Mas existe uma terceira dimensão do Estado, onde ele legitima e preserva as relações sociais dominantes (direito), assumindo uma forma exterior e acima da sociedade civil, onde se encontra toda a engenhosa e multifacetada maquinaria burocrática e militar repressiva, que assume uma forma extremada nos períodos de crise e instabilidade do capital, corretamente destacado em "A origem da Família, da Propriedade e do Estado" de ENGELS, e nos escritos de MARX sobre o período revolucionário na França, "A Guerra Civil na França" e "O Dezoito Brumário", ou seja, o Estado também é "força", dominação exercida através da "coação" [9].

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Esta última característica do Estado capitalista, o papel opressor e ditatorial, vai ser super valorizado por LENIN em seu "O Estado e a Revolução". Partindo principalmente nas obras de ENGELS sobre o tema, o grande revolucionário russo afirma que no capitalismo, o Estado está alienado da sociedade. O seu papel é atuar, é tentar conciliar o inconciliável, as contradições de classe:

"(...). A essência da doutrina de Marx acerca do Estado só foi assimilada pelos que compreenderam que a ditadura de uma só classe é necessária não só para qualquer sociedade de classes em geral, não só para proletariado que derrubou a burguesia, mas também para a totalidade do período histórico que separa o capitalismo da "sociedade sem classes", do comunismo. As formas de Estados burgueses são extraordinariamente variadas, mas a sua essência é apenas uma: em última análise, todos estes Estados são, de uma maneira ou de outra, mas necessariamente, uma ditadura da burguesia. A transição do capitalismo para o comunismo não pode naturalmente deixar de dar uma enorme abundância e variedade de formas políticas, mas a sua essência será necessariamente uma só: a ditadura do proletariado." (LENIN, 1980:245 – grifos nossos)

A derrota dos partidos da classe trabalhadora na Europa para o fascismo fomentou em GRAMSCI a iniciativa de trazer para debate o papel ideológico exercido, também, pela sociedade civil, principalmente nas sociedades industriais do continente europeu:

"(...) No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primordial e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação e em qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento do caráter nacional." (GRAMSCI, 1991:75)

Esta análise de GRAMSCI, vinha no sentido de corrigir tanto os erros da Terceira Internacional, que desprezava o papel político e ideológico exercido pela sociedade civil, quanto os da Segunda Internacional que, inspirados nos escritos de KAUSTSCH e BERNSTEIN, bem como numa interpretação de um trecho final da obra "A Origem da Família, da Propriedade e do Estado" de ENGELS, onde este atribuía ao sufrágio universal a prerrogativa de medir a "maturidade do proletariado" [10], previa a possibilidade do proletariado, da maioria da sociedade, reformar por dentro o capitalismo através da vitória eleitoral. GRAMSCI insere neste debate, precisamente na órbita da "sociedade civil" [11], um conceito anteriormente utilizado por MARX quando este se referiu no "Dezoito Brumário" na luta entre os partidos pelo "espólio" do Estado: a "hegemonia".

"Podemos, para o momento, fixar dois grandes "níveis" superestruturais: o primeiro pode ser chamado de "sociedade civil", isto é, o conjunto dos organismos vulgarmente denominados "privados", e o segundo, de "sociedade política" ou de "Estado". Esses dois níveis correspondem, de um lado, à função de "hegemonia", que o grupo dominante exerce em toda sociedade; e, de outro lado, a "dominação direta" ou comando, que é exercido através do Estado e do governo jurídico" (GRAMSCI apud CARNOY, 1994:93)

Embora a hegemonia seja "ético-política", ela também é "econômica", deve ser essencialmente baseada na função decisiva da atividade econômica. GRAMSCI declara expressamente uma idéia apenas intuída em "A Ideologia Alemã", a de que o conceito de Estado inclui a sociedade civil:

"Permanecemos sempre no terreno da identificação de Estado e de governo, identificação que não passa de uma representação da forma corporativa-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade política, isto é, hegemonia revestida de coerção). Numa doutrina que conceba o Estado como tendencialmente passível de extinção e de dissolução na sociedade regulada, o argumento é fundamental. O elemento Estado-coerção pode ser imaginado em processo de desaparecimento à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado ético ou sociedade civil)." (GRAMSCI, 1991:149)

Se o marxismo clássico, de MARX e ENGELS foi construído numa sociedade em que nem todos os direitos primários da cidadania liberal como o sufrágio universal, haviam sido conquistados pela luta organizada do proletariado, GRAMSCI teve a vantagem de desenvolver a sua teoria após o fracasso político dos partidos de massa do operariado europeu. Mesmo que mais otimista dos reformistas não acreditasse numa vitória política imediata dos partidos operários, embora acreditassem que está era uma conseqüência inevitável dos avanços da história, jamais poderiam crer que o próprio operariado fabril conduzisse a mais atroz representação do capitalismo ao poder, o "fascismo". Nem a teoria do desenvolvimento econômico desigual, apontada por LENIN evitou a dogmatização da Terceira Internacional. No relato sobre a luta de classes na França, país que em virtude das diversas vagas revolucionárias conviveu muito mais cedo com o sufrágio universal do que a Inglaterra e a Alemanha, demonstrou que a luta pela hegemonia política eleitoral não iria solucionar os problemas da classe operária: o Estado continuava sendo o Estado burguês; o exército continuava sendo o exército burguês. Se MARX via, em uma carta que mandou a seu amigo Kulgeman a necessidade de destruir o aparelho [12] militar, GRAMSCI demonstrou que era necessário estabelecer a luta para conquistar a hegemonia na própria sociedade civil:

"(...) Um grupo social é dominante sobre os grupos inimigos, a que tende a liquidar ou submeter, mediante a força armada, é dirigente (hegemônico) com relação aos grupos afins ou aliados. Um grupo social pode, e de fato deve, ser dirigente antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das principais etapas para conquista do poder mesmo); depois, quando exerce o poder e o mantém firmemente em seu punho, se converte em dominante, porém segue sendo dirigente." [13] (GRAMSCI apud MARQUES, 1991:33)

Antônio GRAMSCI estabelece duas estratégias táticas para a conquista do poder pelo proletariado revolucionário: a "guerra de movimento", para as condições estabelecidas na sociedade do tipo da sociedade do "oriente" (Rússia), e a "guerra de posição", um avanço progressivo sobre a enorme quantidade de trincheiras e casamatas que compõem a sociedade civil das sociedades do "ocidente" (Europa), antes de chegar ao Estado.

Para o Louis ALTHUSSER, numa construção teórica desenvolvida a partir do trabalho de GRAMSCI, a hegemonia é garantida através da ação de uma série de aparelhos cujo a função é reproduzir a ideologia dominante: os aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Segundo o mestre do "estruturalismo" francês, o Estado cumpre duas funções primordiais, uma repressiva, e outra de natureza ideológica, e eu acrescento também a econômica.

ALTHUSSER divide a estrutura estatal entre os aparelhos ideológicos e aparelhos repressivos. Os primeiros teriam por "função" primordial a reprodução da ideologia, e os segundos atuariam no momento em que a coesão ideológica falhasse, através da repressão. É importante destacar que as críticas que apontam o pensamento de ALTHUSSER como funcionalista estabelecem um reducionismo sobre o papel que é desempenhado pelas estruturas sociais no processo de reprodução do modo de produção dominante. Por outro lado, é inegável que ALTHUSSER prega uma interpretação mecanicista da relação entre estrutura e infra-estrutura. Para ele a ação da superestrutura não é determinada em "última instância" pela base econômica, mas sim pela eficácia da base. Partindo desta lógica, a relação dialética entre infra-estrutura e super-estrutura, tão bem demonstrada pelo trabalho dos "mestres do materialismo histórico" fica limitado à uma ação mecânica. A própria idéia de "determinação em última instância" fica reduzido a um "determinismo economicista", e não como resultado da alienação e divisão social do trabalho, do aprisionamento do trabalho humano pela propriedade privada dos meios de produção e reprodução da vida real.

O ponto da abordagem de ALTHUSSER mais interessante encontra-se no campo de análise da ideologia, onde é inegável a sua originalidade. Para o professor francês, a ideologia não se forma a partir das relações que os indivíduos travam com as suas condições reais de existência, não é uma representação das relações reais de produção, e sim as representações que os indivíduos fazem a partir das relações que travam com as relações de produção. Portanto, a ideologia tem uma existência material, enquanto na outra forma de interpretação a ideologia teria existência meramente ideal. ALTHUSSER retira um extrato de a "A Ideologia Alemã" onde MARX e ENGELS afirmam que a ideologia não tem história. Segundo ALTHUSSER, esta assertiva deve ser interpretada não como se a ideologia não tivesse história por ser uma simples representação das relações travadas na reprodução que os homens fazem historicamente da vida real, portanto, carecendo de uma história própria. Para o mestre estruturalista, a ideologia não tem história por que ela existe materialmente enquanto ideologia independentemente da história real dos indivíduos. Para concluir, como exemplo, ele afirma que a ideologia cria os sujeito, e os sujeitos existem antes dos indivíduos. É somente através da ideologia, que sujeitos interpelam os indivíduos e os indivíduos se transformam sujeitos, assim, exemplificando, como o direito (um exemplo de materialização da ideologia) prevê a existência do nascituro antes mesmo dele existir como indivíduo, ou seja, o nascituro é sujeito antes mesmo de ser indivíduo real.

Se por um lado é inegável a originalidade da interpretação de ALTHUSSER, por outro ele demonstra realmente desconhecer a importância que a alienação do trabalho têm no processo de formação da ideologia como falsa consciência. Com a divisão social do trabalho, como já foi dito diversas vezes aqui, temos a separação entre o trabalho intelectual e o trabalho material. Logo, como a classe dominante domina não só os meios de produção materiais, mas também intelectual e espiritual, as idéias dominantes nada mais são dos que a expressão das relações sociais materialmente dominantes, são as idéias da classe dominante, que detém o monopólio dos meios de produção enquanto classe. Sendo assim, quando o trabalhador pensa estar livremente vendendo a sua força de trabalho para o capitalista, ele está iludido em relação à sua liberdade. Ele vende a sua força de trabalho por imposição das relações de produção materialmente dominantes, ação que não realizando pode significar a não subsistência do próprio trabalhador, assim como da sua família. Quando o trabalhador furta 1 metro de tecido da fábrica em que trabalha, produzido por ele mesmo, ele só pode ser considerado ladrão porque o direito burguês dominante considera o produto de seu trabalho, e a sua própria força de trabalho, como pertencentes ao industrial, e não o verdadeiro roubo denunciado por Proudhon, o direito de propriedade.

Todavia, ALTHUSSER não deixa de ter razão quando afirma que a ideologia tem uma existência material, muito embora a existência material da ideologia não seja a existência da ideologia enquanto materialidade metafísica, mas sim como uma estrutura social realmente existente, os próprios aparelhos ideológicos e repressivos de ALTHUSSER.

O direito não existe nos livros, nos papéis e códigos jurídicos, estes são apenas fontes para a constatação do direito. Não existe como um "dever ser" abstrato contido numa norma igualmente abstrata como pregam os teóricos do formalismo, mas sim no mundo do ser, como uma estrutura social que somente tem razão de existir no mundo real, como uma estrutura material inter-relacionada com o Estado e suas estruturas repressivas, mas, diferentemente do que pregava LASSALE, não se resume a eles. A escola não é o prédio, livros, cadeiras e mesas, mas sim uma estrutura materialmente constituída que incluí suas regras, suas instalações, professores, alunos, e os próprios rituais de professores e alunos. Assim como GRAMSCI afirma que o proletariado alemão é o herdeiro da filosofia clássica alemã, e que as realizações de hegemonia de LENIN são um grande acontecimento metafísico, a escola, o direito, o Estado, a sociedade civil, ao mesmo tempo em que são expressões ideológicas, são estruturas sociais realmente existentes.

Todavia, este mundo objetivo não é estático, ele se inter-relaciona com a subjetividade humana, que por sua vez não se resume ao universo individual, é também coletiva. É somente por causa destas trocas, entre objetividade e subjetividade, que o devir histórico é real e dinâmico.

O inter-relacionamento entre o pensamento coletivo e individual promove as alterações na concepção de mundo dominante. Nos escritos de GRAMSCI no período em que esteve preso no cárcere de Mussolini, o marxista italiano cita o exemplo da escola onde o professor e o aluno estabelecem relações recíprocas e não meramente "escolásticas" de simples transferência de conhecimentos, de experiências de gerações passadas, como forma de amadurecimento das gerações mais jovens.

"Este problema pode e deve ser relacionado com a colocação moderna da doutrina e da prática pedagógicas, segundo as quais a relações entre professor e aluno é uma relação ativa, de vinculações recíprocas, e que, portanto, todo professor é sempre aluno e todo aluno professor. Mas a relação pedagógica não pode ser limitada às relações especificamente "escolásticas", através das quais as novas gerações entram em contato com as antigas e absorvem as suas experiências e os seus valores historicamente necessários, "amadurecendo" e desenvolvendo uma personalidade própria, histórica e culturalmente superior. Esta relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército. Toda relação de "hegemonia" é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais." (GRAMSCI, 1995:37)

Cada Estado, assim como todas as instituições da sociedade civil, possui uma função educativa e formativa, ou seja, de adequar as massas populares aos conceitos de civilização necessários ao desenvolvimento continuado do aparelho econômico, social e político, nas palavras de GRAMSCI, de "elaborar também fisicamente novos tipos de humanidade".

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Sobre o autor
Sandro Ari Andrade de Miranda

Advogado no Rio Grande do Sul, Doutorando em Sociologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Sandro Ari Andrade. Notas sobre a alienação do trabalho intelectual e o novo dilema de Promoteu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1034, 1 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8332. Acesso em: 26 abr. 2024.

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