1 - INTRODUÇÃO
Desde sua redemocratização, o Brasil vem, paulatinamente, aderindo instrumentos de proteção de direitos humanos, quer na esfera universal da Organização das Nações Unidas, quer na esfera regional da Organização dos Estados Americanos. Em 1992 passou a ser signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e a partir de 1998 passou a aceitar a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos[1].[2]
Sobre a organização do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), Elisa Mara Coimbra assinala que:
“O SIDH é composto pela CIDH e pela Corte IDH, órgãos especializados e, de alguma forma, vinculados à Organização dos Estados Americanos (OEA). Trata-se de um sistema regional que obedece à lógica interestatal. A CIDH originou-se de uma resolução, não de um tratado: a resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, aprovada em Santiago, em 1959, apesar de posteriormente adquirir status convencional. A Corte IDH, por sua vez, surgiu com a assinatura de um tratado internacional, em 1969 – Convenção Americana dos Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica –, que entrou em vigor em 1978, quando o 11° instrumento de ratificação foi depositado”.[3]
A relação do Estado brasileiro com tal sistema não se deu de maneira espontânea e efetiva desde o início. Com pouco conhecimento a respeito do tema pela sociedade civil e descaso das autoridades competentes, na última década do século XX, o Estado brasileiro respondia de maneira insatisfatória às solicitações Comissão Interamericana de Direitos Humanos[4] (CIDH).[5][6] Flávia Piovesan, membro da Comissão, destaca o que considera fundamental na CIDH com as seguintes palavras:
“A principal função da CIDH é promover a observância e a proteção dos direitos humanos nas Américas. Entre outras funções, deve examinar as comunicações encaminhadas por indivíduo ou grupos de indivíduos, ou ainda entidade não governamental, que contenham denúncia de violação a direito consagrado pela Convenção, por Estado que dela seja parte; ou denúncia sobre violação de direitos humanos consagrados na Declaração Americana, em relação aos Estados membros da OEA que não sejam partes da Convenção”.[7]
No início do século XXI, pode-se notar maior engajamento da sociedade civil (muitas vezes na forma de ONGs), um dos fatores que fomentou o Estado brasileiro a adotar uma postura mais ativa em relação ao SIDH, não mais apenas reagindo às recomendações da Comissão, como também criando condições para que se arquivem casos em curso, fazendo com que objetos de ações se perdessem.[8] [9]
É possível analisar a existência de dois grandes perfis de demandas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos: uma de situações extremas em que se fere a dignidade humana em estabelecimentos prisionais – que não será objeto de estudos deste trabalho – e outra em que há “ameaças de eliminação de defensores de direitos humanos (sobretudo envolvidos em conflitos de terra e denúncias de tortura em presídios), de testemunhas de crimes praticados por policiais, grupos de extermínio e crime organizado, e de indígenas envolvidos em processos de demarcação de terra”.[10]
Desta feita o presente trabalho irá analisar a postura do Estado brasileiro frente as recomendações de medidas cautelares da CIDH nos anos de 2009, pois a proatividade não aparece distribuída linearmente ao longo dos anos. Se por um lado, no mesmo período, quando casos de direitos humanos envolvem o conflito de terras como no caso “Escher e outros”[11] e no caso “Garibaldi vs Brasil”[12] foi necessário que a Corte Interamericana de direitos humanos condenasse o Brasil para que os envolvidos fossem respeitados, não é diverso o que ocorre no caso Belo Monte[13], em que os direitos humanos e o direito a terra de populações nativas colidem com interesses desenvolvimentistas do setor privado. Nessas ocasiões Estado brasileiro adota uma postura de negação às recomendações da CIDH.[14]
3 – Caminhos para compreender a postura do Brasil face ao SIDH no caso Belo Monte
No afã de uma política europeia e colonizadora - que dividia o mundo até então entre civilizados e não civilizados - o Direito Internacional (no sentido de International law) originou-se na segunda metade do século XIX, sob um viés político civilizador, como forma de legitimar os ideais colonizadores do processo de expansão europeu.[15]
Esse modelo de dominação explícito esgotou com o fim da segunda guerra mundial e a ascensão de independência política de antigas colônias e sua consequente entrada na sociedade das nações. Assim a terminologia colonialismo cedeu lugar ao termo desenvolvimento. Todavia alteração terminológica foi apenas uma maneira de camuflar uma nova forma de dominação que seria utilizada pelos países hegemônicos, que a partir de então dividiria o mundo da seguinte forma: desenvolvidos e subdesenvolvidos, Primeiro e Terceiro Mundo.[16]
Reflexo da hegemonia dos países desenvolvidos, o conceito de Terceiro Mundo emergiu como realidade política contra hegemônica de um grupo de países recém independentes e subdesenvolvidos que rejeitavam a bipolarização política e consequentemente jurídica, presentes na realidade internacional da época, mas tal projeto não foi capaz de pôr fim à dominação exercida pelos países desenvolvidos. [17]
Sob a perspectiva colonizadora/desenvolvimentista europeia, os Estados Nacionais latinoamericanos constituídos no início do século XIX carregam consigo um paradoxo: de um lado são organizados sobre uma lógica da modernidade europeia e estadunidense[18] – que tem sob fundamento um monismo legislativo simplificador[19] [20] - e de outro têm em seu território uma pluralidade de povos[21] - mormente indígenas[22] - que formam um diversificado complexo de direitos paralelos ao espectro jurídico do direito oficial do colonizador, que escapam da tutela jurídica não oficial.[23]
O resultado desse paradoxo são conflitos e populações tradicionais e/ou povos indígenas e agentes políticos e agentes de mercado, responsáveis pelas decisões de efetivação de projetos econômicos em nome de um desenvolvimento[24].
Não é diferente o que ocorre no caso conhecido como Belo Monte, em que os povos indígenas que vivem as margens do rio Xingu na floresta amazõnica[25] são considerados empecilhos a um projeto desenvolvimentista que pretende construir ali um complexo de hidrelétricas.[26]
Interesses econômicos cercam o processo de tomada de decisão sobre investimentos públicos relativo a proposta da hidrelétrica de Belo Monte (antigamente Kararaô) e a sua contrapartida rio acima, a hidrelétrica de Altamira (mais conhecida por seu nome anterior: Babaquara) está no centro das controvérsias sobre o processo de tomada de decisão para grandes projetos de infraestrutura na Amazônia.[27]
Desde o regime militar, a região da Amazônia vem sendo alvo dos chamados projetos desenvolvimentistas. O governo federal oferecia incentivos fiscais e as populações nativas lutam por direitos aos territórios que habitavam, defendendo em confrontos físicos – que muitas vezes causaram óbito[28] - mas sob a ditadura, a integração da Amazônia se fez pela negação da diversidade dos povos.[29]
Em 13 de julho de 2005, o Congresso Nacional aprovou em tempo recorde a construção de Belo Monte, mesmo sem um EIA/RIMA aprovado, e logo em seguida várias ONGs entraram com uma representação na Procuradoria Geral da República contestando a decisão. A Procuradoria da República no Estado do Pará pediu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto Legislativo (no. 788), feito sem consulta às populações afetadas, entre outras falhas.[30]
A hidrelétrica de Belo Monte tem sua construção no rio Xingu. Para efetivar seu plano, o governo brasileiro lançou uma campanha sem precedentes para represar afluentes do rio Amazonas, e Belo Monte é a ponta de lança para os seus esforços. O plano de expansão energética 2011-2020 prevê a construção de 48 grandes barragens adicionais no País, das quais 30 estariam na Amazônia Legal.[31]
Isso é reflexo de um projeto de expansão europeu, que desde o início visou a colonização das Américas. A partir deste espectro, o sistema econômico determinaria o comportamento dos principais atores sociais através da lógica econômica da obtenção de lucro. Desta feita, as relações econômicas são privilegiadas em detrimento das relações sociais.[32]
Enquanto a República Federativa do Brasil se nega a cumprir as medidas cautelares indicadas pela CIDH, perpetua-se o projeto colonialista europeu, que sufoca as relações culturais de populações nativas como as que vivem a margem do rio Xingu e as entrega ao capital.
CONCLUSÃO
O presente texto demonstrou algumas manifestações do Estado brasileiro face ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos – principalmente após sua redemocratização – em que o país paulatinamente tentou colocar em prática a diretriz dos direitos humanos.
Nota-se que o Brasil vem tendo uma postura proativa de aplicação dos tratados e convenções, e “ao invés de apenas reagir as solicitações jurídicas e políticas, busca criar condições para aplicação do artigo 48 (b) da CADH, que determina o arquivamento do caso quando os fundamentos da demanda deixarem de existir”.[33]
Todavia, no caso “Belo Monte”, o Brasil substitui essa proatividade referida por inércia ao não adotar as medidas cautelares deferidas pela CIDH[34], ao que tudo indica, em nome de um desenvolvimento. Há pareceres técnicos dos membros do IBAMA e da Fundação Nacional do Índio compreendendo não existir condição de se emitir licença da operação em razão das afetações dos povos indígenas e do meio ambiente.[35] As autoridades brasileiras – quer governo, quer judiciário – vêm sendo reticentes no que tange a aplicação dessas medidas cautelares. Inclusive o Itamaraty informou em nota considerar as solicitações da CIDH “precipitadas e injustificadas”.[36] Anote-se que o Estado brasileiro, até então, não havia respondido com rechaço público a qualquer recomendação da CIDH ou sentença da Corte Interamericana de direitos humanos.[37]
No caso “Escher e outros” e no caso “Garibaldi vs Brasil”, que também envolvem posse de terras – quer direta, quer indiretamente – o Estado brasileiro deixou de responder às medidas cautelares indicadas pela CIDH e apenas após condenação da Corte Interamericana de direitos humanos é que respondeu às vítimas.
É possível notar a relativização do termo desenvolvimento, pois para o governo e o mercado, o termo representa a construção do projeto nacional e desenvolvimento econômico; para as populações tradicionais[38], o termo é sinônimo de restrição de direitos, destruição do local e redução de possibilidades.[39]
Por todo o descrito, é de se questionar a postura do Brasil em um caso em que se envolve interesses econômicos de construtoras e do mercado financeiro em detrimento da população indígena. A postura proativa do país em outros casos de violação de direitos humanos como a violação de sigilo telefônico (casos Escher) e desalojamento de camponeses sem terra (caso Garibaldi)[40] – o Estado brasileiro acatou a decisão Corte Interamericana de Direitos Humanos nesses casos[41] – comparada com a negativa de proteção do meio ambiente e das populações ribeirinhas e indígenas afetadas pela construção da usina de Belo Monte leva a crer que o Brasil tem um respeito seletivo pelas medidas cautelares da CIDH.
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