Gostaria de fixar meu foco apenas na quitação antecipada com o FMI. Não me parece relevante ser tal decisão fruto de uma estratégia individual do governo brasileiro ou combinada com outros governos, porquanto isto não arreda o fato em si mesmo de se haver decidido a quitação antecipada. A questão que se coloca, para mim, é outra: a de se haver colocado, ao cabo de tudo, no que tange à administração dos recursos escassos para atenderem às necessidades da população brasileira, como prioridade, o pagamento da dívida com o FMI. Exatamente o oposto da tese que o chanceler argentino Luís Maria Drago defendeu no início do século XX, no sentido de que, se as dívidas tinham de ser honradas, a primeira obrigação de qualquer governo seria para com a satisfação das necessidades coletivas, das quais não se poderia desvencilhar.
A tese do chanceler argentino – combatida por Ruy Barbosa em Haia – foi retomada quando do debate judicial da renegociação das dívidas dos estados do Rio Grande do Sul e Minas Gerais com a União, perante o Supremo Tribunal Federal (Ação Cível Originária 545 e Petição 1.665, respectivamente). Considerando a denominada ruptura com o FMI ocorrida em 1959, quando JK decidiu não dar ouvidos a seu ministro Lucas Lopes, recebendo, por isto, mais tarde, críticas ferozes de Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos (reproduzidas e subscritas por Ricardo Valladares no artigo "O Pelé dos presidentes" na revista Veja, v. 38, n. 1.937, p. 192, 28 dez 2005), e também a não renovação do empréstimo junto ao FMI, ainda no início do ano de 2005, a pergunta que deve ser colocada é perante quem se pode dizer que a antecipação da quitação da dívida seria um ato de coragem. É um ato relevante, sem sombra de dúvida, mas não é, nem de longe, passível de aceitação unânime.
Ruy considerou que o acolhimento da tese de Drago, segundo a qual a força não poderia ser empregada para a cobrança de dívidas implicaria a criação de uma situação apta a afugentar os capitais estrangeiros, porquanto os investidores não teriam nenhuma segurança de que não sofreriam o confisco de seus direitos (A Segunda Conferência de Paz. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1966, p. 79). Isto valeria por dizer que os capitais estrangeiros, na percepção do Barão do Rio Branco, que instruíra Ruy, no particular, de acordo com a observação de Celso Duvivier Albuquerque Mello (Direito Internacional Econômico. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 204), somente estariam seguros diante da informação de que, na escala de prioridades, estariam os lucros privados e depois a vida dos súditos. A tese de Luís Maria Drago era no sentido de que as dívidas tinham de ser atendidas, mas a prioridade se haveria de colocar no atendimento das necessidades da população, sob pena de negar a própria razão de ser do Estado (Cobro coercitivo de deudás públicas. Buenos Aires: Coni Hermanos, 1906, p. 56-58). Outra, aliás, não foi a inspiração do artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988, no sentido de se determinar a realização da auditoria acerca dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro, para o fim de se verificar quanto dela, efetivamente, radicaria em título jurídico válido.
Quando eu cursava o doutorado em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, ouvi em aula de Relações Internacionais ministrada em setembro do ano de 1989 pelo Professor Artur José de Almeida Diniz, que, após a II Grande Guerra, o Brasil terminara com a dívida externa zerada, estando em posição de credor dos EUA, que a pagaram com os famosos "ioiôs". Hoje, um dado que deveria ser considerado como da mais alta relevância para quantos colocam as teses do monetarismo como as mais adequadas - e, desde já, adianto, não sou simpático ao monetarismo, mas sei que tem sido a filosofia da política econômica adotada desde 1964 até hoje, independentemente dos partidos que guindaram os presidentes, consoante se pode aprender no que observado por António José Avelãs Nunes na sua tese de doutoramento apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra -, qual seja, a antecipação do pagamento da dívida com o Fundo Monetário Internacional, veiculado o anúncio de tal fato inclusive no sítio do Ministério da Fazenda, com a presunção de veracidade assegurada aos atos oficiais pelo inciso II do artigo 19 da Constituição Federal e pelo artigo 364 do Código de Processo Civil, não foi objeto, à época jornalisticamente oportuna, de nenhuma linha em alguns meios de comunicação que se gabam de serem os principais formadores de opinião no país. O sítio do Ministério da Fazenda noticia, desde 12 de dezembro de 2005, a antecipação do pagamento da dívida com o FMI, algo que chama a atenção num contexto como o narrado por Washington Peluso Albino de Souza: "na medida em que se ‘globalizam’ as negociações monetárias, aprimoram-se os expedientes especulativos pelos quais investidores buscam juros mais competitivos, especialmente aqueles dos títulos emitidos por países que contraem empréstimos, aceitando esse tipo de aplicações. Nos últimos anos, testemunha-se esse fenômeno, com os ‘jogos’ na Bolsa de Valores, arrastando nações devedoras e firmas à situação de insolvência, ou levando os devedores a aumentar os juros pagos, na tentativa de controlar a saída de capitais ou de adiar os efeitos de sua cobrança" [Primeiras linhas de Direito Econômico. 6ª ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 564]. Dado importante para quem temia que, com a vitória de Lula, houvesse o "calote oficial" da dívida. O documento é acessível pelo elo: http://www.fazenda.gov.br/portugues/fmi/pre-pagamento_fmi_13052005.pdf. Nenhum comentário na versão em meio físico, nem que seja criticando ou desmentindo, até março de 2006, quando já não tinha o interesse jornalístico que o fato presente desperta. Não é uma questão de simpatia ou antipatia pelo Governo Lula, mas sim de um ponto que sempre foi considerado de honra, isto é, "não dar o calote". Se, efetivamente, fez o que sempre sustentaram que era certo, motivo há para se elogiar a atitude, a despeito de ser o Demônio. Se, pelo fato de ser o Demônio, isto deve ser considerado um erro, chega-se à conclusão de que não há lugar para qualquer consideração de cunho ético – a questão se cinge, unicamente, ao imponderável dos afetos. Ora, não se pode falar em política econômica oficial sem que se fale, necessariamente, nas pessoas que a formulam e a executam, isto é, se algum mérito existe na política econômica oficial, este há de ser atribuído aos respectivos autores e executores, assim como os deméritos. Como os pontos considerados como "pedra de toque" do monetarismo estão sendo, em linhas gerais, observados – a questão da estabilidade monetária, da antecipação do pagamento de várias das parcelas da dívida, o aumento da confiança de investidores estrangeiros pela queda do denominado "risco-país" -, mas é pecado, entretanto, elogiar o Governo que está a levar a cabo tais desideratos, elogia-se o milagre e, embora se conheça o Santo, finge-se que ele não existe ou, ao contrário, que é o Demônio e, apesar de tudo, está a fazer milagre.
Até mesmo sob o ponto de vista teológico fica complicado. Mas devo dizer que, no que tange a inexistir relação de continuidade entre a política econômica adotada pelo Governo do PT e a adotada pelos dois Governos do PSDB, como sugere Luciano Martins Costa no seu artigo Sem espaço para sutilezas. Observatório da Imprensa. n. 361. 27 dez 2005, disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/index.asp, acessado em 27 dez 2005, na maior das boas fés, estou obrigado à discordância. E isto porque a ênfase da política econômica continua, efetivamente, na supervalorização da inflação como o único personagem a ser considerado. Claro que, no que diz respeito a alguns aspectos acessórios - como as privatizações e os planos de demissão voluntária, por exemplo, que foram a marca dos Governos de Collor (PRN) e FHC (duas vezes PSDB) - há distinções, mas no que diz respeito à continuidade da política econômica de viés monetarista, inaugurada em 1964 e, desde então, jamais abandonada, não resta dúvida que os Governos, no atacado, estão se mostrando rigorosamente iguais. Mas este debate mais sério, menos apaixonado, a mídia está nos devendo.
A questão que se coloca é apenas a polarização das opiniões, sem o exame das circunstâncias e fatos que nos permitam formar uma convicção razoável acerca do que vem acontecendo desde 2003, o que é novo e o que não o é, o que particulariza este Governo e o que nele é comum a todos os outros, como se o papel dos meios de comunicação fosse o das platéias romanas nos circos, excitando os gladiadores a se entrematarem nos jogos que deleitavam as respeitáveis famílias da época.
Não estou aqui defendendo o governo federal – até porque isto implicaria sair da postura que tenho adotado, sem interrupção, em toda minha produção intelectual -, quero deixar isto muito claro: mas, existindo a divulgação deste fato, o mínimo que se esperava dos aludidos meios de comunicação era que se debruçasse sobre ela, nem que fosse para um desmentido ou uma crítica, o que, entretanto, não ocorreu. No sítio do "Terra", por exemplo, tal fato foi veiculado concomitantemente à divulgação pelo Ministério da Fazenda. Daí, pergunta-se: como alguém se poderia surpreender diante do desprestígio do meio impresso, quando os que o gerem pensam ainda, desconhecendo a existência do meio eletrônico, que basta que deixem de mencionar um fato para que sua existência não seja passível de reconstituição? Não é preciso sair gritando "morte aos petistas" para não ser petista. Não é obrigatório demonizá-los para não os apoiar. Não é pecado, caso haja algo de positivo – eventualmente, até um bandido pode salvar uma vida, hipótese explorada na película "Herói por acidente", de Stephen Frears – e importante, sob o ponto de vista histórico, registrar o fato. Positivo ou negativo, uma coisa é certa. Uma vez que houve a aludida antecipação, pode-se dizer que o Governo brasileiro se converteu à doutrina de Ruy, qual seja, a posição do Estado perante os credores externos coloca-se em superior patamar em relação à sua posição perante os que estão sujeitos à sua soberania.