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A distorcida responsabilização de servidores.

Quando a espada da justiça corta a cabeça dos fracos

Agenda 14/08/2020 às 12:22

Servidores carregam o estereótipo de culpados com o mesmo peso de discriminação que recai sobre pretos e pobres, vistos como naturalmente suspeitos. Os instrumentos de controle se concentram em funcionários e deixam autoridades à solta para desmandos.

Ocupar cargo público é uma temeridade. Se o agente for do quadro de servidores e estiver sob a chefia de narcisistas destrutivos ou débeis de caráter o risco é espantoso, seja pela perseguição, seja pelo poder manipulador de indivíduos de perfil perverso. As duas situações costumam empurrar funcionários dignos para a beira do abismo. Para isso contribui o estereótipo que se assemelha, no ambiente administrativo, àquilo que em criminologia se convencionou rotular de cara de prontuário. Se na sociedade em geral, marcada por preconcepções, o preto e o pobre carregam o estigma de suspeitos em potencial, nos ambientes oficiais a lâmina do controle é dirigida aos agentes públicos de menor escalão, vistos naturalmente como os responsáveis pelas mazelas do desgoverno.

Os órgãos controladores, em que pese a modernidade dos recursos tecnológicos, mostram dificuldade para organizar políticas preventivas, o que significa desenhar com clareza as atribuições de cada agente e a efetiva segurança contra ordens ilegais. O funcionário que for insurgente contra o abuso vê selada a sentença de morte funcional; aquele que opera com iniciativa, proficiência, zelo pelo patrimônio e apego aos regulamentos é visto como estranho ou inconveniente; é percebido como alguém que destoa do comodismo da burocracia inútil ou é obstáculo para a satisfação de pretensões inconfessas.

Aqui entram os narcisistas destrutivos, vorazes com o assédio moral, os psicopatas institucionais, ardilosos e manipuladores, e os débeis de caráter com várias silhuetas, hábeis em transferir responsabilidades a terceiros ou prontos para golpear quem se põe no caminho das suas ilicitudes. Contam com o inconsciente compadrio de corregedorias, controle interno, controle externo e Ministério Público que, sob o credo de que a priori o servidor escolhido tem a efígie de prontuário, sobre ele despejam o peso de acusações forjadas ou distorcidas na origem. Esses órgãos ou instituições se apresentam com singular volúpia para o ataque, em desigualdade de reação de quando se deparam com a corrupção e desmandos de larápios de alto coturno.

Quem conhece os corredores sombrios da administração sabe que servidores encarregados de pagamento de contratos recebem, por vezes, determinações palacianas para frustrarem a ordem de exigibilidade e atenderem com preferência a algum afiliado do governo. Também é corrente que licitações são desenhadas por empresários com escassez de escrúpulos e repassadas por gestores de alta hierarquia, em cujos gabinetes as artimanhas ganham o timbre da oficialidade e a presunção do interesse público para serem operacionalizadas por funcionários na ponta do sistema. Quantos operários do Estado são expostos na linha de tiro para absorverem as responsabilidades dos verdadeiros autores?  Quantos param em autos de processos por recebimento de objetos comprados sem precisão, adquiridos sem observância de normas técnicas ou estocados em locais impróprios, até que sejam reduzidos à inutilidade?

Os foros especiais estão abarrotados de ações civis públicas e ações de improbidade administrativa, com prévia indisponibilidade de bens de servidores usados em situações com esse formato; crimes contra a administração pública são atribuídos em linha de produção àqueles que podem ser comparados a hipossuficientes dentro de uma escala de grandeza nas escadarias do poder; processos disciplinares são instaurados, instruídos e julgados com a metodologia de tribunais de exceção. E magistrados, em todos os níveis, provocados ao controle judicial, agregam a tendência ao clichê e olham para os servidores como se, necessariamente, ali estivessem meliantes por natureza.

É certo que indivíduos de índole perversa também ocupam postos de baixo escalão, são desidiosos, desobedientes, imorais e corruptos. No corpo social pode ser feita a prospecção entre honestos e malandros e o mapa mostrará que a honestidade prevalece. Não é diferente dentro das organizações públicas e privadas, pois estas são operacionalmente nutridas por pessoas que provêm da substância da sociedade. O que estremece o raciocínio lógico é o desequilíbrio do controle, que mistura na mesma caçarola os bons e os ruins, desde que estejam ao pé da subordinação; por outro turno refresca na sombra de regalias os trapaceiros de colarinho engomado.

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A se compor uma equação que leve em conta a proporcionalidade entre funcionários e governantes, ou servidores e altos cargos comissionados, será perceptível que não há simetria no grau de responsabilização. A balança pesa do lado da parte fraca; a espada corta proporcionalmente o maior número de pescoços das vítimas do sistema. A serem afastados os agentes verdadeiramente ímprobos, sobra uma lista de inocentes atropelados pelo rolo compressor de um modelo de justiça que prestigia a gravata e desvaloriza o caráter. Nessa conjuntura, é de se provocar a estatística para que faça o cotejo entre o número de processos que envolvem servidores e mandatários; e, no desdobramento, verifique proporcionalmente as condenações dos primeiros e a impunidade dos segundos. Saltarão números a causar repugnância, tal a oscilação no tratamento jurídico.

O que se propõe? Propõe-se a vigência da ordem republicana de que todos sejam iguais perante a lei, aqui considerando a inadmissibilidade de favores no trato: agente político ou equivalente, do alto do foro privilegiado e do gozo das benesses de recursos e prioridades de tutela jurisdicional, arrasta causas até a prescrição; funcionários inocentes ou envolvidos em tramas sem maior lesão à ordem jurídica são despersonalizados nos tribunais. Traz-se à colação a equidade proposta por Rui Barbosa, no sentido de que a justiça consiste em tratar desigualmente os desiguais, o que significa considerar a fortaleza do mando e a fragilidade da obediência.  

Ao advogado compete se rebelar contra essa assimetria; a defesa impõe no bojo das suas obrigações a coragem para enfrentar os arroubos do arbítrio. A Carta Constitucional apresenta os contornos da cidadania, da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana, além se ser a reafirmação de um Estado republicano. Logo, enquanto houver uma corda vocal, que ela tenha a sonoridade da insurgência; enquanto houver espaço para escrever um parágrafo, que ele seja nutrido com os princípios gerais do direito, uma vez que são eles que dão à advocacia o lustre da ciência.

Léo da Silva Alves é autor de 50 livros e conferencista sobre responsabilidade de agentes públicos no Brasil e exterior. É advogado em Brasília.

Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados. O autor presta consultoria às mais importantes estruturas da Administração Pública do país desde os anos 1990. Conhece os riscos da gestão e as formas de prevenir responsabilidades, o que o tornou conferencista internacional sobre matérias relacionadas ao serviço público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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A elaboração do texto tem o sentido de alertar os aperadores do direito para o ambiente de desigualdade na responsabilização de agentes públicos. O tratamento jurídico é assombrosamente desproporcional, na medida em que para as autoridades de elevada hierarquia vale a presunção de inocência; para servidores subordinados prevalece o estigma da desídia.

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