3. Sistema normativo de proteção ambiental no plano regional interamericano: Amazônia em foco
Existem três importantes sistemas jurídicos de proteção de direitos humanos de caráter regional: o europeu, o americano e o africano. Cada qual tem por competência central, entre outras, zelar pelo respeito e efetividade das Convenções de direitos humanos firmadas em cada continente.
O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIPDH) é formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comissão ou CIDH) e pela Corte Americana de Direitos Humanos (Corte), órgãos especializados da Organização dos Estados Americanos, com atribuições fixadas pela Parte II da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Neste viés de proteção, respeito e efetividade das Convenções, a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) estabelece como propósito a consolidação de um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais, reconhecendo que os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana.
De mesma sorte, a Convenção Americana em seu capitulo terceiro orienta aos Estados Partes a comprometerem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos.
Impossível se deparar com o desenvolvimento econômico sem que se esbarre nas questões afetas ao meio ambiente, pois, assim reconhecido na Declaração de Joanesburgo como um dos desafios a serem enfrentados, qual seja: “reconhecermos que a erradicação da pobreza, a mudança dos padrões de consumo e produção e a proteção e manejo da base de recursos naturais para o desenvolvimento econômico e social são objetivos fundamentais e requisitos essenciais do desenvolvimento sustentável.”19. É necessário que se recorra ao conceito de desenvolvimento sustentável que orienta uma harmonização das ações que possuem por finalidade atender as necessidades e aspirações humanas.
Para tanto, ao tratar do desenvolvimento sustentável, os olhares do mundo estão atentos a região tropical amazônica, de magnitude continental, possuindo uma extraordinária riqueza e diversidade de recursos naturais como a flora, a fauna, clima, suas águas e o solo rico em minério que não deixam de ser um importante fornecedor de insumos que interessam a toda a sorte de empresas e industrias de todo o tipo que necessitam da exploração dos recursos presentes naquele ambiente, muitos dos quais se quer ainda conhecidos ou explorados.
A bacia amazônica é a mais extensa do mundo, com um rio mais largo e mais profundo, áreas de planícies tropicais que atingem aproximadamente 8 milhões de Km2, distribuídos entre 8 países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Perú, Guiana, Suriname e Venezuela, sendo que de toda sua área, 61% se encontra em território brasileiro.
Neste contexto, esclarece Hugo Torrejón20 que em nível regional, o posicionamento geográfico da Amazônia leva a um aprofundamento das relações entre os países que a integram e exige maiores esforços de coordenação no cenário de formulação de políticas regionais.
Um passo importante nesta direção pode ser demonstrado com a assinatura do Tratado de Cooperaçao Amazônica (TCA), adotado em Brasília aos 3 de julho de 1978, pelos 8 (oito) Estados independentes da Região – Brasil, Bolívia, Colombia, Equador, Guiana, Perú, Venezuela e Suriname, ação esta que se deu com a criação do Cômite Intergovernamental para a Proteção e o Manejo da Flora e da Fauna Amazônicas instituida em 1975 por cinco dos países que ratificariam o TCA (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Perú e Venezuela).
A construção do TCA pelos países sulamericanos indica o favorecimento do diálogo amazônico que segundo Paulo Nunes21 traz consigo certas questões de ordem global como por exemplo as preocupações manifestadas em tom alarmistas com o meio ambiente difundidas na Conferência de Estocolmo, aliadas ao discurso da necessidade de implementação de medidas de proteção internacional de proteção ao meio ambiente, fato que despertou o temor de governos da região em reação ao discurso ambientalista, a inquietação a respeito da soberania sobre os recursos naturais e o interesse em garantir a continuidade dos projetos econômicos na Amazônia e, para maior parte dos membros que à época assinaram o projeto regional, buscarem a afirmação de sua identidade na política regional.
Dentre as questões de ordem global, conclui Paulo Nunes que as razões fundamentais para a assinatura do TCA foram as seguintes:
o anseio de afirmação de soberania sobre o território e os recursos naturais, a afim de garantir a continuidade de projetos econômicos na região e afastar o fantasma da internacionalização; o desejo de apresentar à sociedade internacional um documento que resguardasse a exclusividade da gestão dos problemas amazônicos em sintonia com a proteção ambiental; e, finalmente, a preocupação brasileira com um possível isolamento em virtude da construção da barragem de itaipu.22
Sobre a intenção de afirmação da soberania dos países que compõe o TCA, em seu inciso XXVII deixa claro que este é restrito aos países negociadores, não se permitindo assim adesões de outros países, porém, necessário dizer que a noção de Pan-amazônia é substituída pela de “Amazônia pactual”, afinal se trata de um tratado puramente americano visto que a Guiana Francesa também possui espaços amazônicos23.
Ao tratar sobre os elementos fundamentais do TCA Paulo Nunes24 ressalta que: “A soberania aparece em destaque, pois um dos propósitos dos signatários era refutar, expressamente, quaisquer discursos referentes a uma possível internacionalização da Amazônia.”. Esta afirmativa a considerar o presente embate entre os Presidentes do Brasil e França demonstram a preocupação do governo brasileiro com o fantasma da internacionalização da Amazônia e das ameaças com a soberania do Estado no presente cenário.
Para alcançar uma maior robustez ao Tratado de Cooperação Amazônica, aos 14 de dezembro de 1998, a estrutura formal de cooperação amazônica sofreu uma alteração substancial, tendo sido adotado nesse dia, na cidade venezuelana de Caracas, o Protocolo de Emenda ao TCA que criou a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), entidade dotada de personalidade jurídica e competente para celebrar tratados com Estados e organismos intergovernamentais.
Sobre a criação da OTCA e da presente divergência entre o governo brasileiro e o francês, é importante a opinião de Costa e Sola25 quanto a não participação da Guiana Francesa que também possui floresta amazônica:
Observa-se, portanto, a exclusão da França, cujo departamento de ultramar, conhecido como Guiana Francesa, possibilitaria a inclusão no sistema criado. Decerto, é possível atribuir a intenção de evitar o ingresso de um pais industrializado ou desenvolvido no sistema, até porque, do ponto de vista do Direito Internacional, este mantinha posições pouco permeáveis à noção de soberania permanente sobre recursos naturais.
A opinião que é colocada por Costa e Sola, a considerar o comportamento do Presidente Francês Emmnauel Macron que utilizando de sua rede social em perfil do Twitter26, após o aumento dos índices de focos de incêndio no espaço brasileiro, se referiu como “nossa casa” e de que o problema era “uma crise internacional”, convocou os membros do G-7 para se reunirem e discutirem a emergência em tempo recorde de 2 dias.
A manifestação serviu como estopim para provocar o que aqui já foi colocado conforme a doutrina de Paulo Nunes como fundamento da criação do TCA, ou seja, tentativa de refutar de toda maneira qualquer ameaça à soberania nacional dois países detentores da floresta amazônica.
Também compartilha do entendimento de Paulo Nunes os pesquisadores Cristina Freire, Carla Torquato e José Costa27 que acrescentam:
O grande mérito da OTCA é o de tentar quebrar o paradigma da Amazônia Intocável, contribuindo para a criação de oportunidades econômicas para a região promovendo novos meios de administrar os recursos naturais e o meio ambiente com a participação de atores regionais e locais.
Demonstra-se assim que no plano internacional regional americano de proteção ambiental, o Tratado de Cooperação Amazônica ou Pacto Amazônico, apesar das críticas de ser tal instrumento um tratado-quadro ou guarda-chuva28 por ser um documento formal celebrado por Estados soberanos que depende da assinatura de acordos futuros – bilaterais e/ou multilaterais para se tornar realidade, e ainda, a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA, estes são instrumentos de proteção ao meio ambiente amazônico que integram todo um arcabouço normativo e proteção ambiental no plano internacional seja global ou regional.
Instrumentos estes que visam não apenas a proteção do meio ambiente em si, em especial a Amazônia, mas instrumentos que possuem um pano de fundo de proteção à soberania dos Estados sul-americanos e de afastamento do discurso de internacionalização da Amazônia. Um pacto em que dentre suas características, a impossibilidade de novas adesões é prova irrefutável do porquê do afastamento do Estado Francês, que possuindo a Guiana Francesa floresta amazônica, poderia utilizar de argumentos, como o atual, de desprezar a soberania dos demais países e seu desejo de internacionalização do bioma em foco.
4. A constitucionalização da proteção ambiental no Estado brasileiro: Amazônia no plano local.
Antes de abordar o tratamento do legislador constituinte brasileiro com a temática meio ambiente é importante que se conheça o conceito que é dado tanto pela doutrina quanto pelo próprio legislador brasileiro, para então iniciar as discussões sobre sua constitucionalização.
No ano de 1981 ainda no período do governo militar, e dezessete anos anos antes da criação da OTCA no plano internacional regional americano de proteção ao meio ambiente, o legislador infraconstitucional brasileiro, por meio da Lei 6.938/81, ainda vigente no País, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e Cria o Sistema Nacional de Meio Ambiente, em seu art. 3º, inciso I, buscou conceituar meio ambiente dizendo ser este “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química, biológica, que permite , abriga e rege a vida em todas as suas formas.”
Sobre o conceito adotado, afirmou Antônio Herman Benjamim29 que foi o primeiro passo em direção a um paradigma jurídico econômico que holisticamente tratasse e não maltratasse a terra, seus arvoredos e os processos ecológicos essenciais a ela associados.
Para Ney Maranhão30 a expressão meio ambiente deve ser tomada em sentido amplo, completamente integrada aos componentes naturais (biosfera) e humanos (sociosfera), e, partindo desta premissa, após profunda pesquisa, e considerando o tratamento constitucional que lhe foi dado concluiu que:
nossa Constituição Federal abraçou, inequivocamente, uma concepção ampla de meio ambiente, englobando elementos não apenas ecológicos, mas também sociais e culturais. Essa formulação produziu relevante impacto no conceito de meio ambiente havido em nosso ordenamento jurídico, quando em cotejo com a delimitação conceitual textualmente gravada na Lei nº 6.938/81. Alteração essa, diga-se de passagem, não apenas quantitativa, em face do reconhecimento de outros elementos ambientais além dos da biosfera, mas, acima de tudo, qualitativa, porque abona tônica ambiental de cariz mais social, vicejando uma retratação mais profunda e, por isso, mais adequada de toda a complexidade socioeconômica que permeia a discussão ambiental.
É a partir desta conclusão de Ney Maranhão que se poderá compreender a inserção do termo meio ambiente no conteúdo constitucional, bem como, a complexidade de sua abordagem.
A Constituição Brasileira de 88 reserva ao termo meio ambiente espaço no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, precisamente em seu art. 5º, inciso LXXII, mencionando em síntese que qualquer cidadão é parte legítima a manejar ação popular que vise anular ato lesivo ao meio ambiente.
Reserva ao Poder Executivo em todas a suas instâncias o dever de proteger o meio ambiente e combater a Poluição (art. 23, inciso VI), e à União e aos Estados, a oportunidade de concorrentemente legislarem sobre a proteção ao meio ambiente e a responsabilidade por possíveis danos causados (art. 24, incisos VI e VII);
Ainda sobre o prisma da proteção, além de imputar a qualquer cidadão e aos entes federativos a responsabilidade de proteção, insere nas funções institucionais do Ministério Público o poder/dever de promover o Inquérito Civil e a Ação Civil Pública para a proteção do Meio ambiente. (art. 129)
No título em que é abordada a Ordem Econômica e Financeira, em que o legislador constituinte diz se a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por finalidade assegurar a todos existência digna, elege como princípio a ser observado a defesa do meio ambiente (art. 170, VI), acrescentando ainda obrigatoriedade de se colocar em prática as funções de fiscalização, incentivo e planejamento estando atento as situações de garimpo e seu risco para o meio ambiente. (174, § 3º).
Inserido no art. 186. da CF/88 que aborda os requisitos para declaração do cumprimento da função social da propriedade rural têm-se a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente (art. 186, inciso II) e, neste ponto específico, a considerar as queimadas que vem sendo realizadas na Amazônia legal, a possibilidade da implementação da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária de imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, ação não menos importante e que traz reflexos imediatos a minorias étnicas, a considerar sua reclamação pelo direito a propriedade,
A terminologia meio ambiente esta presente também no art. 220. da CF/88 que trata da comunicação social, reservando ao legislador infraconstitucional (art. 220, §3º, II) o dever de ofertar instrumentos que possibilitem à pessoa e à família se defenderem de propaganda de produtos, práticas e serviços nocivos ao meio ambiente.
Além dos direitos constitucionais já mencionados, a Constituição Federal reservou um capítulo único em que a abordagem ao tema meio ambiente é trabalhada de forma específica, demonstrando sua abrangência, pontuando ser o meio ambiente ecologicamente equilibrado um direito de todos, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. (art. 225. da CF/88), ressaltando ainda que a Floresta Amazônica brasileira é patrimônio nacional, em clara afirmação do fundamento da soberania do Estado democrático de direito brasileiro.
Todo arcabouço jurídico de proteção ambiental no plano internacional e, especialmente no plano regional interamericano, são instrumentos de orientação ao legislador constituinte o qual reconhecendo ser a Amazônia, presente no território brasileiro, patrimônio nacional, apenas evidência as pretensões já firmadas no Tratado de Cooperação Amazônia, qual seja, de que além da preocupação com a defesa do meio ambiente, a internacionalização do bioma em detrimento à soberania nacional é assunto que não se cogita.
A constitucionalização da proteção à Amazônia firmada pelo estado brasileiro é refletida nas legislações de ordem interna que buscam a todo momento atender aos anseios de proteção não apenas da Amazônia, mas também de outros biomas brasileiros não menos importantes como a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira, em uma clara demonstração de que o estado brasileiro compreende sua parcela de responsabilidade para com a proteção ambiental no cenário mundial.
Como exemplo destas legislações infraconstitucionais estão a Lei n°. 4.771/65 conhecida como Código Florestal, Lei n° 5.197/67 que dispõe sobre a proteção à fauna que também é conhecida por “Lei da Caça, a já mencionada Lei n° 6.938/81 que dispõe sobre as bases da Política Nacional do Meio Ambiente, a Lei n° 11.105/05 conhecida como “Lei da Biossegurança”, Lei nº 9.279/96 mais conhecida como Lei de Propriedade Intelectual ou Lei de Patentes, dentre tantas outras que poderiam ser mencionadas a considerar sua abordagem de proteção ambiental.
Todas estas manifestações jurídicas de proteção ambiental corroboram com a existência de instrumentos legais que visam a proteção do meio ambiente, externalizando um direito da natureza que afirma a necessidade de mudança comportamental do ser humano, conclamando que o uso dos diversos potenciais ambientais que colaboram com a necessidade humana de desenvolvimento seja feita de forma ética e equilibrada.
Todavia é necessário que se reconheça que a proteção do meio ambiente deve ser realizada em uma mesa de diálogo que vise a contrapartida de todos os lados, em que as fontes de proteção aos direitos humanos e ao meio ambiente sejam colocados como instrumentos de alcance do bem comum, não como instrumentos de revanchismos políticos ou de submissão de países em desenvolvimento aos desenvolvidos, reconhecendo assim que os objetivos de proteção ambiental no plano global, regional ou local somente serão alcançados com a postura de seres humanos equilibrados.
Nesta premissa da necessidade de uma administração dialógica, considerando inclusive afirmações como a do então Ministro do Meio Ambiente quando em reunião com governadores dos nove estados que integram a Amazônia Legal de que “o ambientalismo de resultados pressupõe incluir para preservar”31, demonstra dissonância com as ações implementadas pelo próprio Chefe do poder executivo federal ao excluir da composição do Conselho de Nacional da Amazônia Legal os governadores do estados em que o bioma Amazônia em solo brasileiro esta inserido.
A revogação do Decreto 1.541/95 pelo Decreto 10.239/20 é mostra clara que o revanchismo político, a histeria vigente pela manutenção de poder presente na política brasileira, as argumentações de defesa do solo brasileiro de invasões externas, ou qualquer outra que se possa apresentar se demonstram insustentáveis quando a política de proteção ambiental gravada nos legislações aqui comentadas orientam a integração.
Esta pequena mostra do tensionamento entre a vida real e as intenções formais gravadas no texto constitucional e nas demais legislações vigentes devem ser suficientes para levar os homens e mulheres, representantes do povo na execução do poder público, a relembrar preocupações levantas por Ferdinad Lassale32, pois se o poder ativo capaz de modificar as normas constitucionais são aqueles que visam interesses privados, estaríamos diante não de uma Constituição, mas sim de um pedaço de papel. E sobre isto, necessário ainda indicar como leitura os ensinamento de Konrad Hesse33 ao afirmar que apesar desta tensão imanente que não se deixa eliminar, ou seja, o constante conflito entre o real e o formal, a Constituição contém ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado, que passa a ser descrita como uma força normativa da Constituição.