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O controle judicial dos atos administrativos discricionários à luz da jurisprudência do STF e do STJ

Agenda 14/06/2006 às 00:00

1. Introdução.

Diante do atual modelo de Estado de Direito brasileiro, não há quem duvide da sujeição dos atos administrativos ao crivo do Poder Judiciário. A grande pergunta é: até que ponto poderá ir esse crivo?

De acordo com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, vertido no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, não serão excluídos da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. Por conseqüência, se alguém alega em juízo que um ato administrativo supostamente inválido violou-lhe ou ameaça violar-lhe um direito, não poderá o órgão jurisdicional furtar-se de analisar a consonância do referido ato com o ordenamento jurídico. O ponto nodal que se coloca é a profundidade dessa análise.

Tornou-se lugar comum na doutrina e na jurisprudência a afirmativa de que ao Poder Judiciário compete unicamente realizar o controle da legalidade dos atos administrativos, sendo-lhe vedado exercer qualquer juízo meritório, sob pena de afronta à separação e independência dos poderes (art. 2º da Constituição Federal).

Nos últimos anos, porém, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça, na esteira da doutrina vanguardista, vêm admitindo que o controle jurisdicional dos atos emanados da Administração Pública não se restringe à verificação dos pressupostos objetivos de legalidade e legitimidade: passou-se a reconhecer a possibilidade de projeção das lentes judiciais sobre o âmago dos atos administrativos.

O presente trabalho se presta a analisar os limites desse controle jurisdicional, mediante uma perspectiva comparativa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.


2. Discricionariedade Administrativa e Motivação: os Parâmetros do Controle Jurisdicional.

Em determinadas situações, "a disciplina legal faz remanescer em proveito e a cargo do administrador uma certa esfera de liberdade, perante o que caber-lhe-á preencher com seu juízo subjetivo, pessoal, o campo de indeterminação normativa, a fim de satisfazer no caso concreto a finalidade da lei." [01] Fala-se, pois, em discricionariedade administrativa.

Durante muito tempo, afirmou-se que o Judiciário não poderia efetuar qualquer controle de mérito sobre os atos administrativos discricionários, vez que competiria exclusivamente à Administração Publica a formulação de juízos de conveniência e oportunidade dentro da esfera liberdade a ela conferida pela lei. Nesse sentido, ponderava o Superior Tribunal de Justiça:

"ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONCESSÃO DE HORÁRIO ESPECIAL. ATO DISCRICIONÁRIO. ILEGALIDADE OU ABUSO. INEXISTÊNCIA.

- Foge ao limite do controle jurisdicional o juízo de valoração sobre a oportunidade e conveniência do ato administrativo, porque ao Judiciário cabe unicamente analisar a legalidade do ato, sendo-lhe vedado substituir o Administrador Público.

- Recurso ordinário desprovido." (STJ, SEXTA TURMA, RMS 14967/SP, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 22.04.2003 p. 272)

Todavia, qual o alcance da expressão "legalidade"? Seria legal um ato administrativo cujo juízo de conveniência contraria os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade? E se a "oportunidade" alegada guardar nuances de imoralidade?

Exatamente por decorrerem de uma margem de liberdade, os atos administrativos discricionários devem trazer claros seus motivos. Afinal, "quanto menos intensamente regrado o ato, mais a motivação faz-se necessária ao seu controle e, pois, à sua validade" [02]. Tais motivos precisam atender aos princípios basilares do Direito Administrativo, dentre os quais a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a razoabilidade e a proporcionalidade. Não caberia ao Judiciário, quando provocado, verificar a correspondência do ato administrativo com ditos princípios?

Para a perquirição da motivação, da causa e mesmo da finalidade do ato administrativo atacado em juízo, o magistrado precisa adentrar no seu mérito. Isso não significa afirmar que o Poder Judiciário usurpará da Administração Pública a análise sobre a conveniência e oportunidade da medida. Não. Mas essa conveniência e oportunidade devem se sujeitar à legalidade (em sentido amplo), competindo ao Judiciário, detentor do monopólio da jurisdição, verificar in concreto essa sujeição. Daí concluir-se com CELSO MELLO [03]:

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"Nada há de surpreendente, então, em que o controle jurisdicional dos atos administrativos, ainda que praticados em nome de alguma discrição, se estenda necessária e insuperavelmente à investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato. Nenhum empeço existe a tal proceder, pois é meio – e, de resto, fundamental – pelo qual se pode garantir o atendimento da lei, a afirmação do direito."

De fato, "a ser de outra sorte, não haveria como garantir-se a legitimidade dos atos administrativos" [04]. Ademais, como lembra DI PIETRO, "não há invasão do mérito quando o Judiciário aprecia os motivos, ou seja, os fatos que precedem a elaboração do ato; a ausência ou falsidade do motivo caracteriza ilegalidade, suscetível de invalidação pelo Poder Judiciário" [05]

Atento à tendência doutrinária moderna, o STJ tem redesenhado o entendimento da matéria:

"ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.

1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.

2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.

3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.

4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.

5. Recurso especial provido." (STJ, SEGUNDA TURMA, REsp 429570 / GO ; Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219) - grifamos

O julgado acima referido elucida o rompimento de paradigmas ocorrido nos últimos anos, valendo a transcrição de parte do voto da brilhante relatora do recurso, Min. Eliana Calmon:

"Ao longo de vários anos, a jurisprudência havia firmado o entendimento de que os atos discricionários eram insusceptíveis de apreciação e controle pelo Poder Judiciário.

Tratava-se de aceitar a intangibilidade do mérito do ato administrativo, em que se afirmava, pelo fato de ser a discricionariedade competência tipicamente administrativa, que o controle jurisdicional implicaria ofensa ao princípio da Separação dos Poderes.

Não obstante, a necessidade de motivação e controle de todos os atos administrativos, de forma indiscriminada, principalmente, os em que a Administração dispõe da faculdade de avaliação de critérios de conveniência e oportunidade para praticá-los, isto é, os atos classificados como discricionários, é matéria que se encontra, atualmente, pacificada pela imensa maioria da doutrina e, fortuitamente, aos poucos acolhida na jurisprudência de maior vanguarda.

O controle dos atos administrativos, mormente os discricionários, onde a Administração dispõe de certa margem de liberdade para praticá-los, é obrigação cujo cumprimento não pode se abster o Judiciário, sob a alegação de respeito ao princípio da Separação dos Poderes, sob pena de denegação da prestação jurisdicional devida ao jurisdicionado.

Como cediço, a separação das funções estatais, prevista, inicialmente, por Rousseau e aprimorada por Montesquieu, desde que se concebeu o sistema de freios e contrapesos, no Estado Democrático de Direito, tem se entendido como uma operação dinâmica e concertada.

Explico: As funções estatais, Executivo, Legislativo e Judiciário não podem ser concebidas de forma estanque. São independentes, sim, mas, até o limite em que a Constituição Federal impõe o controle de uma sobre as outras, de modo que o poder estatal, que, de fato, é uno, funcione em permanente auto-controle, fiscalização e equilíbrio.

Assim, quando o Judiciário exerce o controle "a posteriori" de determinado ato administrativo não se pode olvidar que é o Estado controlando o próprio Estado. Não se pode, ao menos, alegar que a competência jurisdicional de controle dos atos administrativos incide, tão somente, sobre a legalidade, ou melhor, sobre a conformidade destes com a lei, pois, como se sabe, discricionariedade não é liberdade plena, mas, sim, liberdade de ação para a Administração Pública, dentro dos limites previstos em lei, pelo legislador. E é a própria lei que impõe ao administrador público o dever de motivação." (art. 13, § 2º, da Constituição do Estado de Minas Gerais, e art. 2º, VII, Lei nº 9.784/99). - grifamos

A motivação, portanto, é parâmetro para o controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. A ausência da necessária motivação, tanto quanto o vício de finalidade ou causa determinante, configura ilegalidade, passível de controle jurisdicional:

"ADMINISTRATIVO - SERVIDOR PÚBLICO - REMOÇÃO - ATO NÃO MOTIVADO - NULIDADE - ART. 8º, INCISO I DA LEI ESTADUAL Nº 5.360/91 - PRERROGATIVA DE INAMOVIBILIDADE - INEXISTÊNCIA - PRECEDENTES – RECURSO PROVIDO.

I - O princípio da motivação possui natureza garantidora quando os atos levados a efeito pela Administração Pública atingem a seara individual dos servidores. Assim, a remoção só pode ser efetuada se motivada em razão de interesse do serviço. Precedentes.

II - O art. 8º, inciso I da Lei Estadual nº 5.360/91 não impede que o servidor por ela regido seja removido. Não se cogita de inconstitucionalidade da expressão "fundamentada em razão do interesse do serviço" nele contida.

III - No caso dos autos, o ato que ordenou as remoções encontra-se desacompanhado do seu motivo justificador. Conseqüentemente, trata-se de ato eivado de nulidade por ausência de motivação, que desatende àquela regra específica que rege os Agentes Fiscais da Fazenda Estadual.

IV - Recurso provido." (STJ, QUINTA TURMA, RMS 12856/PB, Rel. Min. Gilson Dipp, J. 08.06.2004, DJ 01.07.2004, p. 214) - grifamos

RECURSO ESPECIAL - MANDADO DE SEGURANÇA - TRANSFERÊNCIA DE SERVIDOR PÚBLICO - ATO DISCRICIONÁRIO - NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO – RECURSO PROVIDO.

1. Independentemente da alegação que se faz acerca de que a transferência do servidor público para localidade mais afastada teve cunho de perseguição, o cerne da questão a ser apreciada nos autos diz respeito ao fato de o ato ter sido praticado sem a devida motivação.

2. Consoante a jurisprudência de vanguarda e a doutrina, praticamente, uníssona, nesse sentido, todos os atos administrativos, mormente os classificados como discricionários, dependem de motivação, como requisito indispensável de validade.

3. O Recorrente não só possui direito líquido e certo de saber o porquê da sua transferência "ex officio", para outra localidade, como a motivação, neste caso, também é matéria de ordem pública, relacionada à própria submissão a controle do ato administrativo pelo Poder Judiciário.

4. Recurso provido." (STJ, SEXTA TURMA, RMS 15459/MG, Rel. Min. PAULO MEDINA DJ 16.05.2005 p. 417) - grifamos

Esboça-se, assim, a superação do entendimento jurisprudencial que costumava ser tradicionalmente seguido por aquela Corte, em caminho diametralmente oposto:

"RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. CESSÃO. REVOGAÇÃO. ATO DISCRICIONÁRIO. MOTIVAÇÃO. DESNECESSIDADE.

- A cessão de servidor público, sendo ato precário, confere à Administração, a qualquer momento, por motivos de conveniência e oportunidade, a sua revogação, sem necessidade de motivação, cujo controle escapa ao Poder Judiciário, adstrito unicamente a questões de ilegalidade.

- Precedente.

- Recurso ordinário desprovido." (STJ, SEXTA TURMA, RMS 12312 / RJ, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 09.12.2002 p. 390)

No Supremo Tribunal Federal, a motivação dos atos administrativos é também tomada como critério para a aferição de sua legalidade:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO - PRESSUPOSTO ESPECÍFICO DE RECORRIBILIDADE. A parte sequiosa de ver o recurso extraordinário admitido e conhecido deve atentar não só para a observância aos pressupostos gerais de recorribilidade como também para um dos específicos do permissivo constitucional. Longe fica de vulnerar o artigo 6º, parágrafo único, da Constituição de 1969, acórdão em que afastado ato administrativo praticado com abuso de poder, no que revelou remoção de funcionário sem a indicação dos motivos que estariam a respaldá-la. Na dicção sempre oportuna de Celso Antonio Bandeira de Mello, mesmo nos atos discricionários não há margem para que a administração atue com excessos ou desvios ao decidir, competindo ao Judiciário a glosa cabível" (Discricionariedade e Controle judicial). (STF, Segunda Turma, RE 131661 / ES, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Publicação: DJ 17-11-1995 PP-39209 EMENT VOL-01809-06 PP-01393) - grifamos

"ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MAGISTRADO. PROMOÇÃO POR ANTIGUIDADE. RECUSA. INDISPENSABILIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 93, X, DA CF. Nulidade irremediável do ato, por não haver sido indicada, nem mesmo na ata do julgamento, a razão pela qual o recorrente teve o seu nome preterido no concurso para promoção por antiguidade. Recurso provido." (STF, Primeira Turma, RE 235487 / RO, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, Publicação: DJ 21-06-2002 PP-00099 EMENT VOL-02074-04 PP-00685)

Oportuna a transcrição do voto do Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do RE 235487, em que se discutiu a legalidade de ato administrativo emanado de tribunal:

"Sr. Presidente, mostrou o eminente Relator que, no caso, recusou-se "o juiz mais antigo", e, se houve motivação, qual acentuou o Tribunal a quo no acórdão recorrido, ela não se materializou: o que equivale à inexistência de motivação.

Entendo que à semelhança do que decidimos a respeito do veto imotivado a candidatos à magistratura, no RE l25.55, 27/03/92, de que V.Exa. foi Relator (RTJ 141/2/99), também, e com mais razão, a recusa do juiz mais antigo há de ser motivada: já o antecipara no MD 21.269, de que relator o eminente Ministro Francisco Rezek, já recordado em votos anteriores.

Alguns dos votos que me precederam afirmaram que o ato não é discricionário. Ao contrário, penso que o ato é discricionário. Mas precisamente porque discricionário é que a recusa reclama motivação. O ato vinculado não a reclama, na normalidade dos casos, porque, ou o motivo legal necessário à sua validade existe ou não. E, de regra, não é preciso que ele seja explicitado, porque o prejudicado pode demonstrar que não existe o único motivo que validaria o ato. Já o ato discricionário, sim, deve ser motivado para submeter-se, não apenas ao controle de legalidade estrita, mas também ao do abuso de poder. De tal modo que a mim me parece evidente a necessidade da motivação."

Ora, é cediço que dentro da margem de discricionariedade da Administração Pública podem ocorrer atos praticados com abuso de poder ou desvio de finalidade. Nessa perspectiva, é a análise dos motivos, em cada caso concreto, que poderá permitir a verificação da correspondência do ato atacado com os princípios que regem a atividade administrativa.

A oportunidade, a conveniência e o próprio mérito do ato administrativo discricionário não poderão ser apurados de modo afastado desses princípios, que funcionam como critérios objetivos da legalidade do ato administrativo e devem estar presentes na liberdade de escolha do administrador público. O poder discricionário encontra limites não apenas na finalidade legal da norma que o instituiu, mas também, e primordialmente, nas normas constitucionais [06].

Por fim, insta colacionar aquele que parece ser o julgado mais esclarecedor a respeito do tema em exame, da lauda do Supremo Tribunal Federal:

"RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. Processo ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. PODER DISCIPLINAR. LIMITES DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ATO DE IMPROBIDADE. 1. Servidor do DNER demitido por ato de improbidade administrativa e por se valer do cargo para obter proveito pessoal de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, com base no art. 11, caput, e inciso I, da Lei n. 8.429/92 e art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90. 2. A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração. 3. Processo disciplinar, no qual se discutiu a ocorrência de desídia --- art. 117, inciso XV da Lei n. 8.112/90. Aplicação da penalidade, com fundamento em preceito diverso do indicado pela comissão de inquérito. A capitulação do ilícito administrativo não pode ser aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa. De outra parte, o motivo apresentado afigurou-se inválido em face das provas coligidas aos autos. 4. Ato de improbidade: a aplicação das penalidades previstas na Lei n. 8.429/92 não incumbe à Administração, eis que privativa do Poder Judiciário. Verificada a prática de atos de improbidade no âmbito administrativo, caberia representação ao Ministério Público para ajuizamento da competente ação, não a aplicação da pena de demissão. Recurso ordinário provido." (STF, Primeira Turma, RMS 24699 / DF, Rel. Min. EROS GRAU, DJ 01-07-2005 PP-00056, EMENT VOL-02198-02 PP-00222 RDDP n. 31, 2005, p. 237-238 LEXSTF v. 27, n. 322, 2005, p. 167-183)

O relator do recurso acima apontado, Min. Eros Roberto Grau, pontua preciosas lições doutrinárias no seu voto:

"3. Cumpre deitarmos atenção, neste passo, sobre o tema dos limites de atuação do Judiciário nos casos que envolvem o exercício do poder disciplinar por parte da Administração. Impõe-se para tanto apartarmos a pura discricionariedade, em cuja seara não caberia ao Judiciário interferir, e o domínio da legalidade.

4. A doutrina moderna tem convergido no entendimento de que é necessária e salutar a ampliação da área de atuação do Judiciário, tanto para coibir arbitrariedades em regra praticadas sob o escudo da assim chamada discricionariedade quanto para conferir-se plena aplicação ao preceito constitucional segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 5º, xxxv, CB/88)

5. O sistema que o direito é compreende princípios e regras. A vigente Constituição do Brasil consagrou, em seu art. 37, princípios que conformam a interpretação/aplicação das regras do sistema e, no campo das práticas encetadas pela Administração, garantem venha a ser efetivamente exercido pelo Poder Judiciário o seu controle.

6. De mais a mais, como tenho observado (Meu "O direito posto e o direito pressuposto", 5a edição, Malheiros Editores, São Paulo, págs. 191 e ss.), a discricionariedade, bem ao contrário do que sustenta a doutrina mais antiga, não é conseqüência da utilização, nos textos normativos, de "conceitos indeterminados". Só há efetivamente discricionariedade quando expressamente atribuída, pela norma jurídica válida, à autoridade administrativa, essa margem de decisão à margem da lei. Em outros termos: a autoridade administrativa está autorizada a atuar discricionariamente apenas, única e exclusivamente, quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Insisto em que a discricionariedade resulta de expressa atribuição normativa à autoridade administrativa, e não da circunstância de serem ambíguos, equívocos ou suscetíveis de receberem especificações diversas os vocábulos usados nos textos normativos, dos quais resultam, por obra da interpretação, as normas jurídicas. Comete erro quem confunde discricionariedade e interpretação do direito.

7. A Administração, ao praticar atos discricionários, formula juízos de oportunidade, escolhe entre indiferentes jurídicos. Aí há decisão à margem da lei, porque à lei é indiferente a escolha que o agente da Administração vier então a fazer. Indiferentes à lei, estranhas à legalidade, não há porque o Poder Judiciário controlar essas decisões. Ao contrário, sempre que a Administração formule juízos de legalidade, interpreta/aplica o direito e, pois, seus atos hão de ser objeto de controle judicial. Esse controle, por óbvio, há de ser empreendido à luz dos princípios, em especial, embora não exclusivamente, os afirmados pelo artigo 37 da Constituição.

8. Daí porque esta Corte tem assiduamente recolocado nos trilhos a Administração, para que exerça o poder disciplinar de modo adequado aos preceitos constitucionais. Os poderes de Comissão Disciplinar cessam quando o ato administrativo hostilizado se distancia do quanto dispõe o art. 37 da Constituição do Brasil. Nesse sentido, excerto da ementa constante do MS 20.999/DF, Celso de Meilo, DJ de 25/5/90:

"O mandado de segurança desempenha, nesse contexto, uma função instrumental do maior relevo. A impugnação judicial de ato disciplinar legitima-se em face de três situações possíveis, decorrentes (1) da incompetência da autoridade, (2) da inobservância das formalidades essenciais e (3) da ilegalidade da sanção disciplinar. A pertinência jurídica do mandado de segurança, em tais hipóteses, justifica a admissibilidade do controle jurisdicional sobre a legalidade dos atos punitivos emanados da Administração Pública no concreto exercício do seu poder disciplinar."

9. É, sim, devida, além de possível, a revisão dos motivos do ato administrativo pelo Poder Judiciário, especialmente nos casos concernentes a demissão de servidor público.

10. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. "Indeterminado" o termo do conceito --- e mesmo e especialmente porque ele é contingente, variando no tempo e no espaço, eis que em verdade não é conceito, mas noção a sua interpretação [interpretação = aplicação] reclama a escolha de uma, entre várias interpretações possíveis, em cada caso, de modo que essa escolha seja apresentada como adequada.

11. Como a atividade da Administração é infralegal administrar é aplicar a lei de ofício, dizia Seabra Fagundes ---, a autoridade administrativa está vinculada pelo dever de motivar os seus atos. Assim, a análise e ponderação da motivação do ato administrativo informam o controle, pelo Poder Judiciário, da sua correção.

12. O Poder Judiciário verifica, então, se o ato é correto. Não, note-se bem --- e desejo deixar isso bem vincado ---, qual o ato correto.

13. E isso porque, repito-o, sempre, em cada caso, na interpretação, sobretudo de textos normativos que veiculem "conceitos indeterminados" [vale dizer, noções], inexiste uma interpretação verdadeira [única correta]; a única interpretação correta ——- que haveria, então, de ser exata --— é objetivamente incognoscível (é, in concreto, incognoscível). Ademais, é óbvio, o Poder Judiciário não pode substituir-se à Administração, enquanto personificada no Poder Executivo. Logo, o Poder Judiciário verifica se o ato é correto; apenas isso.

14. Nesse sentido, o Poder Judiciário vai à análise do mérito do ato administrativo, inclusive fazendo atuar as pautas da proporcionalidade e da razoabilidade, que não são princípios, mas sim critérios de aplicação do direito, ponderados no momento das normas de decisão. Não voltarei ao tema, até para não maçar demasiadamente esta Corte. O fato porém é que, nesse exame do mérito do ato, entre outros parâmetros de análise de que para tanto se vale, o Judiciário não apenas examina a proporção que marca a relação entre meios e fins do ato, mas também aquela que se manifesta na relação entre o ato e seus motivos, tal e qual declarados na motivação.

15. O motivo, um dos elementos do ato administrativo, contém os pressupostos de fato e de direito que fundamentam sua prática pela Administração. No caso do ato disciplinar punitivo, a conduta reprovável do servidor é o pressuposto de fato, ao passo que a lei que definiu o comportamento como infração funcional configura o pressuposto de direito. Qualquer ato administrativo deve estar necessariamente assentado em motivos capazes de justificar a sua emanação, de modo que a sua falta ou falsidade conduzem à nulidade do ato.

16. Esse exame evidentemente não afronta o princípio da harmonia e interdependência dos poderes entre si [CB, art. 2°]. Juízos de oportunidade não são sindicáveis pelo Poder Judiciário; mas juízos de legalidade, sim. A conveniência e oportunidade da Administração não podem ser substituídas pela conveniência e oportunidade do juiz. Mas é certo que o controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração.

17. Daí porque o controle jurisdicional pode incidir sobre os motivos determinantes do ato administrativo." (grifos no original)


3. Conclusão.

À guisa de conclusão, é de se constatar que, frente aos entendimentos mais recentes da jurisprudência do STJ e do STF, o dogma da intangibilidade do âmago dos atos administrativos discricionários pelo controle do Poder Judiciário jaz rompido.

Em fato, a possibilidade da análise de mérito desses atos, com base nos princípios e regras que regem a atuação da Administração Pública, revela-se atrelada à própria noção de Estado Democrático de Direito.


4. Bibliografia.

4.1. Livros:

ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Motivação e Controle do Ato Administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.

BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. São Paulo: Renovar, 2005.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

_______. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.

4.2.Sítios Eletrônicos:

http://www.stf.gov.br. Acesso em: 28.04.2006.

http://www.stj.gov.br. Acesso em: 28.04.2006.


NOTAS

01 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 821.

02 ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Motivação e Controle do Ato Administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 133.

03 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 836.

04 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

05 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 640.

06 BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. São Paulo: Renovar, 2005. t. 3, p. 367.

Sobre o autor
Matheus Carneiro Assunção

Advogado em Recife (PE). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-graduando em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (IBET).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSUNÇÃO, Matheus Carneiro. O controle judicial dos atos administrativos discricionários à luz da jurisprudência do STF e do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1078, 14 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8508. Acesso em: 21 nov. 2024.

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