II – O CDC e a relação de consumo
2.1 O sistema do CDC
Com a Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra, durante o século XVIII, os produtos passaram a ser produzidos em série, por máquinas, e em grandes quantidades, causando uma mudança drástica no cenário econômico mundial.
Via de conseqüência ocorreu o fenômeno da massificação, que, conforme os dizeres de Rizzato Nunes [38], consiste na "fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, no intuito de diminuição de custo da produção, atingimento de maiores parcelas de população com o aumento da oferta".
Diante de tal conjuntura ocorreram conseqüências em todos os campos da atividade humana, principalmente no tangente à concorrência econômica e à competitividade. Desse modo, as relações de consumo passaram a ser impessoais e indiretas, sob o prisma de contratos "standardizados", sendo que muitas vezes o consumidor não tinha conhecimento de quem estava adquirindo o produto ou o serviço [39].
Não se pode esquecer, que essa "produção em massa" contribuiu de forma salientar para a evolução nos campos científico e tecnológico; e, do mesmo modo, também contribuiu para o surgimento de vários problemas, dentre eles, os danos causados pelos produtos ou pela prestação de serviços aos consumidores.
Esses problemas se agravaram principalmente nos tempos de pós-guerra, carreando, conseqüentemente, um desequilíbrio em desfavor dos consumidores [40].
Ante tal situação, o Estado não poderia ficar inerte, devendo, para tanto, intervir de modo a satisfazer o interesse coletivo, evitando abusos e garantindo uma efetiva e real proteção aos seus cidadãos consumidores. Nesse contexto importante é a lição do saudoso Hely Lopes Meirelles [41]:
Modernamente, o Estado de Direito aprimorou-se no Estado de Bem-Estar ("Welfare State"), em busca da melhoria das condições sociais da comunidade. Não é o Estado Liberal, que se omite ante a conduta individual, nem o Estado Socialista, que suprime a iniciativa particular. É o Estado orientador e incentivador da conduta individual no sentido do bem-estar social. Para atingir esse objetivo o Estado de bem–estar intervém na propriedade e no domínio econômico quando utilizados contra o bem comum da coletividade.
Essa necessidade ainda tinha razão forte a vulnerabilidade do consumidor face ao fornecedor que acabava ditando regras. Além do que, o Código Civil já não mais se encontrava em sintonia com as situações tipicamente de massas.
E foi com a promulgação da Constituição da República em 1988, que surgiu a intenção do legislador constituinte originário de intervir nas relações de consumo em prol do consumidor [42]. Assim, proclama o inciso XXXII, art. 5º da Carta Magna: "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor."
Corroborando o enunciado "supra", o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) dispôs que "o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor."
E não foi só. Pela importância que o tema apresenta, a defesa do consumidor também foi erigido a princípio constitucional da atividade econômica (art. 170, inciso V da Constituição), conjuntamente com outros que também visam a realização de uma justiça social, assegurando a todos uma existência digna.
Mesmo após um lapso temporal bem superior àquele estipulado no art. 48 da ADCT, em 11 de setembro de 1990 foi sancionada a Lei nº 8.078, o tão esperado Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Trata-se de um subsistema autônomo ou um microssistema jurídico [43] dentro do sistema constitucional brasileiro, possuindo princípios e procedimentos próprios, normas de direito material e campo de incidência, visando dar proteção integral, dinâmica e sistemática ao consumidor. É ainda considerada a pioneira sob a forma codificada [44] e por alguns como a lei mais moderna do mundo em proteção ao consumidor [45].
Por ser considerado um microssistema jurídico, as normas dos Códigos Comercial, Civil e Processual Civil só terão aplicabilidade quando o CDC for omisso e, mesmo assim, quando as normas ou princípios desses outros "Codex" não forem incompatíveis com os princípios reguladores das relações de consumo que se encontram expressamente tratados no CDC [46].
Com efeito, logo em seu art. 1º, o CDC já estabelece que as normas lá contidas visam a proteção e defesa do consumidor e que seus preceitos são de ordem pública e interesse social. Mas o que se pode entender por ordem pública e interesse social?
Primeiramente é abstruso vislumbrar uma norma jurídica que não contenha uma regra de ordem pública [47]. Nesse caso, as normas são de ordem pública porquanto há um interesse muito forte por parte do Estado em tutelar as relações de consumo, mesmo as normas sendo de direito privado, já que se deve preservar os valores básicos e fundamentais de nossa ordem jurídica; "daí serem indisponíveis e inafastáveis através de contratos." [48]
E qual o efeito prático disso? Por ser norma de ordem pública, o juiz deve apreciar "ex officio" qualquer questão relativa às relações de consumo; sobre elas não se opera a preclusão e as questões, que dela surgem, podem ser decididas e revistas a qualquer tempo e grau de jurisdição [50].
Quanto ao interesse social, não se pode olvidar que se trata de norma cujo interesse maior é a proteção imposta por uma necessidade coletiva. Nesse ínterim cabe a lição de José Geraldo Brito Filomeno [51] ao mencionar que o CDC visa "resgatar a imensa coletividade de consumidores da marginalização não apenas em face do poder econômico, como também dotá-la de instrumentos adequados para o acesso à justiça do ponto de vista individual e, sobretudo, coletivo".
O CDC também traz em seu bojo, como mencionado alhures, uma série de princípios próprios, muitos deles relacionados à atividade econômica e à aquisição de produtos e/ou serviços, tendo sempre em vista a proteção do consumidor, parte vulnerável na relação de consumo.
Além disso, não deixou de relacionar alguns direitos básicos do consumidor, os quais, muitas vezes, acabam se confundindo com os próprios princípios. Traz ainda os elementos necessários para a formação de uma relação de consumo, os quais serão estudados oportunamente, não sem antes adentrar ao estudo dos princípios e direitos básicos dos consumidores.
2.2 Dos princípios
A melhor maneira de se analisar, entender um corpo normativo de um sistema jurídico é a compreensão de seus princípios; eles servem de base, de alicerce de qualquer ordenamento jurídico; são pontos básicos que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito [52].
Com efeito, cabe aqui a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Oscar Ivan Prux [53]: "violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos."
Pois bem, o art. 4º do Código de Defesa do Consumidor, o qual trata da Política Nacional das Relações de Consumo [54], traz, em seu bojo, uma série de princípios norteadores de todo o Código, visando principalmente o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus direitos econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.
Desse modo, cabe agora analisar os princípios que, de certa forma, guardam alguma ligação com o tema do presente trabalho. Deixa-se, pois, de examinar algum deles que pouca ou nenhuma utilidade trazem, embora alguns se irradiam em direitos básicos dos consumidores que serão tratados em seguida.
Por fim, como o presente tópico tratará dos princípios norteadores do CDC, também se trará à tona aqueles que possuem uma ligação direta com a seara contratual, deixando assim, de tratá-los em capítulo específico.
Analisar-se-ão então os seguintes princípios: princípio da vulnerabilidade, princípio da transparência e o princípio da boa-fé e equilíbrio.
2.2.1 Princípio da vulnerabilidade
É cediço que os consumidores encontram-se em situação desfavorável em relação ao fornecedor, sendo submetidos aos poderes deste por não deterem o controle de produção; e quem não detêm o controle de produção, por conseqüência, também não terá o controle do mercado, ou seja, não poderá interferir no tocante ao que produzir, como produzir, para quem produzir e na margem de lucro daqueles que produzem [55]. E é dessa situação que inicia a manifesta fraqueza do consumidor.
Desse modo, procurando encurtar a distância que separa consumidor e fornecedor, o CDC disponibilizou àquele uma série de direitos e vantagens (arts. 6º e 51, v.g.); assim também o fez por obediência ao princípio da isonomia (art. 5º da CF), pois devem os desiguais ser tratados desigualmente na exata medida de suas desigualdades (isonomia real).
Com efeito, toda essa fraqueza, desvantagem do consumidor frente ao consumidor veio estampada no art. 4º, I do CDC que reconheceu a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.
Grande estudiosa no assunto, Cláudia Lima Marques [56] afirmar ser a vulnerabilidade
[...] um estado da pessoa, um estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva de interesses identificado no mercado, é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação.
A vulnerabilidade, embora possa parecer com a hipossuficiência, com ela não se confunde. O simples fato de ser consumidor já o caracteriza como vulnerável, é, pois, uma característica universal de todos os consumidores; por outro lado, a hipossuficiência é marca pessoal, limitada a alguns, mas nunca a todos consumidores.
Há, ainda, aqueles cuja vulnerabilidade é superior a média. É o caso das crianças, das pessoas idosas, dos que possuem a saúde debilitada e daqueles, cuja posição social, impedem lhes de avaliar com adequação o produto ou serviço que estão adquirindo [57].
Pois bem, conforme entende Cláudia Lima Marques [58], há de se dividir a vulnerabilidade em três tipos: técnica, jurídica e fática ou sócio-econômica.
A primeira delas, vulnerabilidade técnica, é presumida, já que o consumidor não possui conhecimentos específicos sobre o produto ou serviço que está adquirindo, podendo ser facilmente enganado [59], já que ficará à mercê das informações passadas pelo fornecedor, grande interessado na realização do negócio.
A outra, vulnerabilidade jurídica, consiste tanto na dificuldade do consumidor defender seus direitos na esfera administrativa e judicial [60] quanto na falta de conhecimentos jurídicos, de contabilidade e de economia [61].
Por fim, a vulnerabilidade fática ou sócio-econômica [62], é a imposição de superioridade do fornecedor a todos aqueles que com ele contratam. Assim, de acordo com Paulo Valério Dal Pai Moraes [63], a vulnerabilidade
[...] decorre diretamente da disparidade de forças existente entre os consumidores e os agentes econômicos, relevado que eles possuem maiores condições de impor sua vontade àqueles, por intermédio da utilização dos mecanismos técnicos mais avançados que o poderio monetário pode conseguir.
Destarte, procurou a legislação consumerista nivelar ao máximo a relação de consumo, fazendo diminuir as desigualdades já que não se mostra possível, ainda, encontrar consumidor e fornecedor num mesmo patamar.
2.2.2 Princípio da transparência
O princípio da transparência (art. 4º, "caput" [64]) é um reflexo do princípio da boa-fé que deve prevalecer em todas relações de consumo. Busca-se passar ao consumidor todas as informações possíveis, ou seja, aquelas inafastáveis, essenciais para que ele possa realizar sua escolha.
Com efeito, a transparência está intimamente ligada ao direito à informação, previsto no art. 6º, III do CDC, sendo esse o principal instrumento para sua efetivação. E é através da informação que o consumidor irá nortear suas decisões no mercado de consumo [65]. Deveras, a transparência consiste na obrigação do fornecedor dar ao consumidor a oportunidade de conhecer os produtos e serviços que são oferecidos e, também de dar-lhe prévio conhecimento do conteúdo do contrato [66].
Sem embargos, ao analisar a transparência, Cláudia Lima Marques [67], assevera que esse princípio
[...] significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo.
Assim, no tocante aos contratos, o princípio da transparência já se manifesta no art. 46 do CDC, garantindo a exoneração dos consumidores em relação às cláusulas contratuais que não forem prévia e adequadamente apresentadas ao seu conhecimento ou formuladas por redação que dificulte a sua compreensão. Evita que o consumidor assuma encargos que não possa assumir ou que não deseja. Em suma, implica assegurar ao consumidor a plena ciência da exata extensão das obrigações assumidas perante o fornecedor [68].
Ainda em um momento pré-contratual, deve o fornecedor ater-se ao princípio da transparência desde a oferta do produto ou serviço no mercado de consumo (art. 31 do CDC) [69]. Nesse caso, segundo a doutrina estrangeira – ao que tudo indica a alemã –, observa-se um dos tipos do direito à informação (ou dever de informação), que consiste no dever de esclarecimento simples, devendo o fornecedor, antes mesmo de celebrar o contrato, passar informações básicas ao consumidor como, v.g., forma de utilização e qualidade dos serviços [70].
O outro tipo de direito à informação que consta no direito alienígena, conforme magistério de Cláudia Lima Marques [71], é a existência de um dever de conselho ou aconselhamento. Conforme consta, esse dever só existe nas relações entre um profissional, especialista e um não especialista. Visa passar ao consumidor a possibilidade de escolha entre vários caminhos, que terão a mesma conseqüência e que serão escolhidos conforme sua necessidade e possibilidade.
Cita-se o exemplo de um médico que receita determinado medicamento, que aconselha o paciente a se submeter a determinada cirurgia ou tratamento, a utilizar determinado hospital, deixando de informar as outras possibilidades ou outros possíveis caminhos, que, em tese, deveriam conhecer e informar [72].
Desse modo, o princípio da transparência busca garantir um maior equilíbrio contratual, mormente por ser o consumidor a parte mais fraca e vulnerável dessa relação. Busca evitar que o fornecedor se utilize de métodos que iludam os consumidores, devendo passar a eles informações reais sobre as qualidades e características dos produtos e serviços, bem como a extensão das obrigações que, porventura, estarão assumindo.
2.2.3 Princípio da boa-fé objetiva e do equilíbrio contratual
Primeiramente, há de se consignar que a boa-fé é ínsita às relações humanas, é atributo natural do ser humano, ou seja, ela se presume em qualquer relação jurídica, sendo a má-fé o resultado de um desvio de personalidade [73]. Deve ser buscada pelos dois protagonistas da relação de consumo, o consumidor e o fornecedor.
Mas o que significa boa-fé? No plano psicológico "é o estado de espírito de quem acredita estar se comportando de acordo com as regras de boa conduta" [74]; no plano ético e moral significa "lealdade, franqueza, honestidade, ou seja, conformidade entre o pensar, o dizer e o fazer" [75].
Assim, pelo aspecto subjetivo da boa-fé, o agente pensa estar agindo em conformidade com o direito, protegido pelos preceitos legais. Vincula-se a uma noção de erro, pela equivocada avaliação da realidade, por uma falsa concepção acerca de um fato ou de uma coisa.
Com o advento do CDC (art. 4º, III), passou a se adotar a boa-fé objetiva, consistente em determinar um agir de acordo com os padrões de honestidade; trata-se, pois, de uma necessidade, "um princípio que traduz a certeza de agir sem ofender a lei, ou seja, de acordo com as condutas sociais, não causando prejuízos a outrem." [76]
Por seu turno, Rizzato Nunes [77] define a boa-fé objetiva como "sendo uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo." Nesses termos, também é clara a lição de Cláudio Bonatto e Paulo Valério Dal Pai Moraes, citados por Geórgia Ribar [78]:
A boa-fé objetiva traduz a necessidade de que as condutas sociais estejam adequadas a padrões aceitáveis de procedimento que não induzam a qualquer resultado danoso para o indivíduo, não sendo perquirido da existência de culpa ou de dolo, pois o relevante na abordagem do tema é a absoluta ausência de artifícios, atitudes comissivas ou omissivas, que possam alterar a justa e perfeita manifestação de vontade dos envolvidos em um negócio jurídico ou dos que sofram reflexos advindos de uma relação de consumo.
Corroborando a lição retro, Paulo Khouri, lembrado por Rui Stoco [79], preleciona que "pela boa-fé objetiva, tem se um padrão objetivo de conduta, de lealdade, de transparência e, ao contrário da subjetiva, o estado de ânimo, a intenção dos contratantes não tem qualquer relevância".
Não menos importante é o escólio de Cláudia Lima Marques [80], o qual, sem dúvida, merece transcrição "ipsis litteris et verbis":
Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação "refletida", uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.
Outra relevante exposição da boa-fé objetiva no CDC está no art. 51, IV. Prevê o mencionado inciso a nulidade de cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé ou equidade.
Desse modo, o princípio da boa-fé objetiva possui também uma função limitadora nos contratos. Isso quer dizer que se reduziu a liberdade de atuação dos contratantes ao definir as cláusulas contratuais; restringiu-se o princípio da autonomia da vontade.
Ressalta-se ainda que a boa-fé objetiva deve também ser aplicada tanto nos momentos que antecedem a contratação ("in contrahendo") como naqueles após a extinção do contrato ("post factum finitum"). Desse modo, aqueles riscos descobertos após à prestação principal nos produtos e serviços, devem ser anunciados, feito um alerta à massa de consumidores.
Doutrina, nesse sentido, Paulo Luiz Neto Lobo [81]:
[...] para fins do princípio da boa-fé objetiva são alcançados os comportamentos do contratante antes, durante e após o contrato. O CDC avançou mais decisivamente nessa direção, ao incluir na oferta toda informação ou publicidade suficiente precisa (art. 30), ao impor o dever ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e compreensibilidade prévias do conteúdo do contrato (art. 46), ao tornar vinculantes os escritos particulares, recibos e pré-contratos (art. 48) e ao exigir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição, após o contrato de aquisição do produto.
Com efeito, deverá o profissional liberal atuar sempre com lealdade na prestação de seus serviços, realizando as expectativas que, porventura, vier a criar no consumidor, bem como não se utilizar da vulnerabilidade deste para auferir vantagens excessivas.
Por fim, e como conseqüência lógica do princípio da boa-fé objetiva, surge o princípio do equilíbrio contratual.
O princípio do equilíbrio contratual visa evitar que uma das partes da relação de consumo (de fato, o fornecedor) obtenha vantagem manifestamente excessiva em detrimento da outra. Assim, se a parte age nos limites boa-fé, por derradeiro haverá um equilíbrio contratual.
Nesse diapasão, as cláusulas abusivas que estiverem incompatíveis com a boa-fé e com o equilíbrio contratual, encontrar-se-ão eivadas de nulidade (art. 51, IV do CDC).
Em relação a essas cláusulas, Fábio Ulhoa Coelho [82] as divide em dois grupos: as absolutamente inválidas (a lista negra no direito alemão), em que as cláusulas estipuladas são totalmente nulas, não podendo ser convalidadas e que englobam as disposições dos incisos I, II, III, VI, VII, VIII, XIV, XV e XVI do art. 51 do CDC; e as relativamente inválidas (a lista cinza no direito alemão), em que as cláusulas estabelecem apenas prestações desproporcionais, podendo estas serem consideradas inválidas ou passíveis de modificações segundo critérios da equidade (incisos IV, IX, X, XI, XII, XIII do art. 5l).
Assim, é absolutamente inválida cláusula que exonere o profissional liberal da responsabilidade por vícios de qualquer natureza na prestação de seus serviços (art. 51, I). Por outro lado, encontra-se uma invalidade relativa quando, no contrato, estiver previsto que somente o fornecedor poderá rescindi-lo, devendo o consumidor cumpri-lo integralmente (art. 51, IX). Nesse último caso, poderá o consumidor requerer em juízo a possibilidade de, também, rescindir o contrato.
A diferença, pois, entre elas é que as cláusulas absolutamente inválidas não possuem validade nem mesmo com o consentimento do consumidor, ao passo que as relativamente inválidas poderão ser aceitas pelo consumidor, embora haja disposição expressa que essas poderão ser modificadas ou até mesmo tornadas sem eficácia.
Urge lembrar também que a nulidade de uma cláusula contratual não invalidará o contrato, salvo se, na sua falta, ocorrer algum ônus excessivo a qualquer das partes [83].
Ocorreu assim uma mitigação do clássico princípio do "pacta sunt servanda", já que os contratos obrigam as partes nos limites do equilíbrio e da boa-fé, delimitados em grande parte pelo art. 51 do CDC.
Outrossim, há também como instrumento para garantia da equidade contratual, a interpretação pró-consumidor, prevista no art. 47 do CDC. Assim, toda vez que as cláusulas possuírem interpretações dúbias ou forem estipuladas em desacordo com a real intenção do contratante, admitir-se-á sua interpretação em favor do consumidor.
Conclui-se então que o que interessa não é mais a exigência cega do cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. [84]
2.3 Direitos básicos do consumidor
O Código de Defesa do Consumidor, no Capítulo III, "Dos Direitos do Consumidor", mormente em seu art. 6º, trouxe uma série de direitos ínsitos a qualquer consumidor, os quais, pela sua importância, foram tidos como básicos; básicos porque são fundamentais, essenciais à formação de qualquer relação jurídica de consumo.
Sendo assim, esses direitos não podem, de forma alguma, serem revogados ou mitigados, mesmo existindo cláusulas dispondo o contrário.
De qualquer modo, não há que se dizer que o legislador tentou enumerar todos direitos básicos inerentes a uma relação de consumo, já que não o fez de forma taxativa, sendo que o art. 6º "não tem o condão de encerrar todos os direitos dos consumidores, talvez nem mesmo os básicos, conforme as modificações sociais vêm por demonstrar." [85]
Além do mais, conforme escólio de Ada Pellegrini [86], o art. 6º é uma "síntese do que o intérprete irá encontrar nos dispositivos de Direito Material e Processual, já a partir do artigo 8º."
Antes mesmo de estar positivado a necessidade de realização da defesa do consumidor, a ONU promulgou em 10.04.85 a Resolução nº 38/248 que, em seu item 3, faz uma síntese das normas de proteção ao consumidor, muito semelhantes àquelas contidas atualmente no CDC, a saber:
3. As normas servirão para atingir as seguintes necessidades:
a) proteger o consumidor quanto ao prejuízos à saúde e segurança;
b) fomentar e proteger os interesses econômicos dos consumidores;
c) fornecer aos consumidores informações adequadas para capacitá-los a fazer escolhas acertadas de acordo com as necessidades e desejos individuais;
d) educar o consumidor;
e) criar possibilidade real de ressarcimento ao consumidor;
f) garantir a liberdade para formar grupos de consumidores e outros grupos ou organizações de relevância e oportunidades para que estas organizações possam apresentar seus enfoques nos processos decisórios a ela referentes [87]
Cabe agora, porém de forma sucinta, trazer à baila algumas considerações sobre os direitos básicos dos consumidores, disciplinados em dez incisos [88], sem, contudo, se desviar do desiderato do presente trabalho que é a responsabilidade civil do profissional liberal.
a) inciso I – é direito de qualquer pessoa, consumidor ou não, de não ser exposta a qualquer perigo que possa atingir sua incolumidade física. Por isso, o legislador buscou resguardar o consumidor do fornecimento de produtos ou serviços que sejam perigosos ou nocivos, ou que ofereçam riscos além dos normais [89], obrigando o fornecedor a prestar toda e qualquer informação sobre os riscos que, porventura, possam surgir [90].
Assim, de acordo com Antônio H. Benjamin [91], "ao fornecedor a lei impõe um dever de qualidade dos produtos e serviços que prestam, chamada de Teoria da Qualidade."
Todavia, há de se convir que em determinadas situações há riscos inevitáveis (uma cirurgia, por exemplo). Nesses casos, os riscos devem "ficar restritos a um mínimo necessário e aceitável, de modo a obedecerem a um padrão considerado normal e razoável para obtenção da satisfação da necessidade que é buscado com o produto ou serviço contratado. [92]"
Por fim, caso os produtos ou serviços apresentem riscos à incolumidade, deve o fornecedor retirá-los do mercado, bem como comunicar as autoridades competentes sobre tal fato [93].
b) inciso II – toda escolha de produto ou serviço deve ser feita de forma livre e consciente (não baseada no impulso grosseiramente estimulado pela oferta e pela publicidade [94]).
Desse modo, sempre que o fornecedor vier a expor seus produtos e serviços à venda, deverá procurar bem informar o consumidor sobre suas características, de tal sorte que o consumidor saiba dos perigos que determinado produto ou serviço possa acarretar à sua saúde ou segurança.
Deve também o fornecedor garantir uma liberdade de escolha e igualdade de contratação. Para que se efetive essa liberdade de escolha, é mister que o Estado atue na intervenção econômica, impedindo a concentração de empresas, a formação de monopólios, oligopólios, formação de cartéis (art. 173, § 4º da Constituição da República).
Já em relação à igualdade de contratação, não pode o fornecedor fazer qualquer distinção entre consumidores; nada mais é do que decorrência do princípio da igualdade (art. 5º, "caput", da Constituição da República).
Apenas exemplificando, a Lei nº 7.716 de 05 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, estabelece em seu art. 5º que é crime recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador.
c) inciso III – esse inciso, nada mais é que um detalhamento do inciso II [95]. Primeiramente refere-se a um momento pré-contratual, já que deve o fornecedor prestar, de modo inteligível, todas as informações acerca do produto e do serviço, como especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, preço, riscos; isso, de maneira clara e precisa, sem falhas e omissões [96].
Assim, deve o advogado, informar seu cliente sobre os custos dos serviços (custas processuais, honorários advocatícios), o que será feito; como será feito; seus riscos; alertar sobre a demora na prestação jurisdicional. Trata-se do princípio da transparência.
Há também o dever de informar, que não se dá somente no momento da celebração contratual, mas durante todo o período da performance ou execução contratual (relaciona-se com a honestidade e boa-fé nas contratações).
d) Inciso IV – a primeira parte desse inciso refere-se às publicidades enganosas e abusivas, definidas respectivamente nos §§ 1º e 2º do art. 37, e aos métodos comerciais coercitivos ou desleais. Um dos motivos que impôs essa proteção foi, segundo Quadros de Carvalho [97], "a existência de um sistema industrial que se volta para a persuasão do consumidor, gerando necessidades e estimulando a demanda."
O outro visa respeitar os princípios básicos da transparência e boa-fé nas relações de consumo, já que a atividade publicitária é o meio mais efetivo de se levar à população o conhecimento sobre o produto ou serviço. Cabe, nesse sentido transcrever a lição de José Geraldo Brito Filomeno [98]:
Tal proteção é conferida ao consumidor a partir do art. 30 do Código, quando trata a oferta como um dos aspectos mais relevantes do mercado de consumo, atribuindo-lhe o caráter vinculativo, ou seja, tudo o que se diga a respeito de um determinado produto ou serviço deverá corresponder exatamente à expectativa despertada no público consumidor, com as conseqüências elencadas na Seção II do Capítulo V (Das Práticas Comerciais).
Já a segunda parte do inciso em comento garante a proteção contra práticas e cláusulas abusivas. Essas, impostas pelos fornecedores com base no poder econômico, "resultantes do exercício irregular do direito de contratar. [99]"
O CDC, no art. 5l, estabeleceu um rol exemplificativo de cláusulas abusivas, sendo sua estipulação eivada de nulidade absoluta ou relativa (vide item 2.3); costumam ser encontradas principalmente nos contratos de adesão. Em relação às práticas comerciais o CDC, nos artigos 39 a 41 trouxe um rol exemplificativo de práticas consideradas abusivas pelo legislador e, portanto, vedadas. Busca-se, com isso, restabelecer um equilíbrio, compensando a vulnerabilidade do consumidor [100].
Prux [101] traz alguns exemplos: advogados que em propagandas prometem verdadeiros milagres; dentistas que só colocam aparelhos ortodônticos se a manutenção for contratada com eles; médicos que só mantêm tratamentos se o paciente fizer os exames em determinado laboratório ou venha adquirir os remédios elaborados por ele e muitos outros.
e) Inciso V - visa o presente inciso amparar o consumidor em relação aos contratos [102], mormente aqueles de adesão.
Baseando-se nos princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual, abriu-se a possibilidade do consumidor ter revista as cláusulas contratuais quando estas estabelecerem prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (art. 39, V), independentemente de elas terem sido ou não previsíveis (Teoria da Imprevisão). Há, pois, uma mitigação do princípio "pacta sunt servanda".
Uma vez deduzida a pretensão em juízo para modificação de cláusula contratual, deverá o magistrado tentar uma conciliação entre as partes, fazendo com que elas encontrem um ponto comum. No entanto, caso não seja possível, deverá então prolatar sentença, não sem antes saber a real intenção das partes ao celebrarem o contrato [103].
f) Inciso VI – é direito do consumidor a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.
Além do mais, a reparação dos danos, além de efetiva deve ser integral ("restitutio in integrum") e plena, não podendo o fornecedor estabelecer cláusulas que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade por vícios de qualquer natureza dos produtos ou serviços (art. 51, I). Por esse inciso estar largamente conectado com o objetivo desse trabalho, far-se-á uma melhor explanação no Capítulo V – Da Responsabilidade Civil.
g) Inciso VII – tem por interesse proteger a sociedade como um todo. Primeiramente, devem todos os fornecedores atuar de modo a não causar prejuízos a outrem, prevenindo os consumidores de qualquer incidente (o dentista que chama novamente o cliente para refazer o serviço, por exemplo).
O Estado também não pode ficar inerte. Por isso, deve o Poder Público adotar medidas que impeçam que produtos ou serviços, que eventualmente possam causar danos, sejam veiculados.
Entre as medidas já criadas pelo Estado para prevenção, podemos citar a criação do INMETRO [104] (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial) e da ANVISA [105] (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Deve também o Estado, seja pelas Defensorias Públicas ou pelas Procuradorias Estaduais prestar assistência efetiva aos necessitados.
h) Inciso VIII – trata-se da faculdade dada ao juiz de inverter o ônus da prova, sendo que essa inversão, segundo Sandra aparecida de Sá Santos [106], "surgiu da necessidade de superação das desigualdades, uma vez que, de um modo geral, à evidência, consumidores e fornecedores estão em patamares diversos", ao passo que, para Rizzato Nunes [107], o que justifica sua criação é a vulnerabilidade do consumidor reconhecida no art. 4º, I do CDC.
Antes mesmo de analisar os requisitos que possibilitam a inversão do "onus probandi", é de bom grado trazer à tona as palavras de Prux [108]:
[...] como a atividade do profissional liberal é eminentemente técnica e específica, a prova nessa área costuma requisitar demonstração pericial, que será sempre realizada por colega de profissão do fornecedor que está sendo acionado para efetuar a reparação. Se provar já é difícil (e muitas vezes por demais oneroso), provar tendo de superar até eventuais tendências coorporativas pode se tornar algo quase impraticável, impossibilitando a própria demonstração do direito.
Pois bem, da leitura do inciso em comento depreende-se a necessidade de apenas um dos requisitos estabelecidos em lei para inverter o ônus da prova [109]. São eles: a verossimilhança da alegação ou a hipossuficiência do consumidor.
De acordo com De Plácido e Silva [110] a verossimilhança "resulta das circunstâncias que apontam certo fato, ou certa coisa, como possível, ou com real, mesmo que não se tenham delas provas diretas". Assim, basta a probabilidade de ser verdade o que é alegado pelo consumidor.
Ainda, conforme de Plácido e Silva, a verossimilhança, por ser uma questão de fato, deve ser submetida ao prudente arbítrio do juiz, que resolverá, segundo as circunstâncias que cercam cada caso, se está presente ou não a verossimilhança [111]. Por isso, e com razão, Rizzato Nunes [112] sustenta que deve o juiz aguardar a peça de defesa para verificar o grau de verossimilhança na relação com os elementos trazidos pela contestação.
A hipossuficiência deve ser compreendida em um sentido técnico, não econômico [113]. Ou seja,
[...] tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício etc. [114]
Deveras, vislumbra-se que nem todos os consumidores podem ser considerados hipossuficiente, já que esta é marca pessoal de cada cidadão, limitada, pois, a alguns.
Vistos os requisitos, conclui-se, portanto, que a inversão do ônus da prova não é automática, devendo o juiz manifestar-se acerca da existência de um dos requisitos, segundo as regras ordinárias de experiência [115].
Há, todavia, de acordo com o ensinamento de Paulo Luiz Netto Lôbo [116], hipóteses em que a inversão da prova será automática [117], "ope legis", e, uma delas, ocorrerá quando resultar de responsabilidade por culpa presumida. Nesse caso, estará o juiz obrigado a inverter o ônus da prova não precisando convencer-se da verossimilhança ou da hipossuficiência do consumidor.
Fato bastante discutido na doutrina é o momento da inversão do ônus da prova. Para parte da doutrina, dentre eles Kazuo Watanabe [118], Jorge Alberto Q. de Carvalho Silva [119] e Nelson Nery Junior [120], a inversão do ônus da prova deve ser feita na sentença, não se havendo falar em prejuízo ao direito de defesa. É, pois, regra de julgamento.
Contudo, vem se entendendo – e cujo entendimento se adota – que o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova é o situado entre o despacho inicial e o saneador [121], mesmo não havendo qualquer disposição nesse sentido no CDC.
Fábio Tabosa [122], ao tecer comentários ao art. 333 do CPC, ressalta que a única solução aceitável é que a decisão acerca da inversão do ônus probatório deve ser realizada no curso do processo e não na decisão da causa (regra de julgamento). Sustenta o mencionado autor que se for invertido o ônus da prova o magistrado estará estabelecendo uma regra procedimental nova, que "há de se pautar pelo respeito a cânones constitucionais como o devido processo legal e o da ampla defesa". Assim, a criação, ao final, de uma regra processual com força retroativa, além de causar surpresa [123] a uma das partes, seria inconstitucional.
Nesse sentido [124] também é a decisão da 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo: "o deferimento da inversão do ônus da prova deverá ocorrer entre o ajuizamento da demanda e o despacho saneador, sob pena de se configurar prejuízo para a defesa do réu." [125]
Desse modo, decretando a inversão do ônus da prova, seja no despacho inicial e o saneador, o juiz estará se manifestando acerca da existência ou não da verossimilhança e/ou hipossuficiência do consumidor e impedindo, por vezes, alegação de ofensa ao princípio do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Por fim, sendo a responsabilidade apurada mediante a verificação de culpa (responsabilidade subjetiva) ou não (responsabilidade objetiva), dúvidas não há quanto a aplicação da inversão do ônus da prova no caso dos profissionais liberais.
i) Inciso X – o último inciso do art. 6º dispôs que é direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
Visa, pois, atribuir ao Poder Público os mesmos deveres que são impostos aos fornecedores em geral; portanto, deve seus órgãos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, fornecerem serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos (art. 22 do CDC).
Esse direito nada mais é do que decorrência do princípio da eficiência, prevista no "caput" do art. 37 da Constituição da República. Para melhor entender o conteúdo desse princípio traz-se a lume as palavras do já consagrado Hely Lopes Meirelles [126]:
O princípio da eficiência exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e seus membros.
Pois bem, analisados os princípios e os direitos básicos dos consumidores, cabe agora examinar a relação de consumo e, posteriormente, seus elementos.
2.4 A relação de consumo
Concomitantemente com a sociedade capitalista, emergiu também a busca constante de produtos e serviços, tanto pela necessidade destes (contratação impositiva), quanto pela simples satisfação pessoal (contratação compulsiva), embora não fossem necessários. Como exemplo deste cita-se a contratação de um médico para a realização de cirurgia estética; daquele, a contratação de um advogado para defender interesses em juízo.
Tanto numa hipótese, quanto na outra, defronta-se com uma típica relação de consumo. No entanto, há autores, como Thierry Bourgoignie [127], que entendem se tratar de um ato de consumo. Para Thierry
[...] ato de consumo é definido como sendo o ato jurídico ou material que, realizando a destinação final do bem – que constitui seu objeto – nele esgota total ou parcialmente o valor econômico, provocando geralmente a retração, definitiva ou temporária, no mercado.
Não se pode afirmar que a definição não está correta. Pelo contrário, figura-se adequada [128], embora também deveria referir-se aos serviços; todavia não é dessa maneira que a doutrina vem entendendo, pois, conforme lição de Oscar Ivan Prux [129] "ato de consumo é uma expressão mais restrita do que relação de consumo." E continua:
O ato de consumo tem a ver com a efetiva fruição do bem, a retirada de sua utilidade final. Já a relação de consumo é expressão mais ampla, que abarca não só o ato de consumo em si considerado, como também todos aqueles atos adjacentes que ensejam ou contribuem para a contratação, mesmo que ainda em nível potencial. Inclui, então, o ato de consumo "strictu sensu" e, ainda, atos como a oferta e publicidade, quando essas também vêm compor a relação contratual.
Pois bem, ante a diferenciação realizada entre ato e relação de consumo, nada mais certo do que definir o que seja uma relação de consumo. Nesse ínterim cabe invocar a lição de Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva [130], que define relação de consumo como sendo "aquela que envolve, como sujeito ativo, o fornecedor; como sujeito passivo, o consumidor; como objeto, os produtos ou serviços; e, como finalidade, a aquisição destes pelo consumidor, ultimo destinatário".
Por seu turno, Fernando Antônio de Vasconcelos [131] entende como relação de consumo "o elo entre a pessoa física ou jurídica que fornece, em caráter profissional, produtos ou serviços a uma outra pessoa, também física ou jurídica, esta como destinatária final do bem ou do serviço prestado."
Com efeito, como o presente trabalho tem como escopo apurar a responsabilidade do profissional liberal na prestação de serviços, deixa-se de analisar o "produto", nada impedindo sua análise, mesmo que breve, em momento oportuno e conveniente.
Posto isto, cabe agora analisar cada um dos elementos necessários para a efetivação de uma relação de consumo, quais sejam: fornecedor, consumidor, serviço.
2.4.1 Consumidor
De um dos lados da relação de consumo, encontra-se um de seus protagonistas, qual seja, o consumidor. Embora não seja praxe do legislador utilizar-se de conceitos legais, o CDC o conceituou em seu art. 2º: "Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final."
Inicialmente, o conceito de consumidor aparenta estar totalmente esclarecido, não necessitando assim de qualquer interpretação ("in claris cessat interpretatio"). Porém, do mesmo modo, não se pode esquecer da lição de Ulpiano [132]: "quamvis sit manifestissimum edictum proetoris, attamen non est negligenda interpretatio ejus" (embora claríssimo o edito do pretor, contudo não se deve descurar da interpretação respectiva).
Pois bem, quanto a capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações, o art. 2º do CDC mencionou apenas as pessoas físicas e jurídicas, diferentemente do art. 3º do mesmo "Codex" que inclui entre os fornecedores os entes despersonalizados.
Então os entes despersonalizados, não poderão ser considerados consumidores? Embora o Código não o tenha elecando no conceito de consumidor, assim como o fez no de fornecedor, é perfeitamente possível estender-lhes a tutela do CDC através de uma interpretação analógica [133].
Pode-se firmar também que sua inclusão como consumidor nada mais é do que aplicação do princípio da igualdade. Imagine um advogado contratado, por intermédio do síndico, para defender os interesses da massa falida (ente despersonalizado) em juízo. Agora, o mesmo advogado é contratado por uma pessoa física qualquer, também para defender seus interesses em juízo. Ora, alegar que no primeiro caso a relação entre advogado e massa falida é regida pela legislação civil e no segundo pela do consumidor, é flagrante ofensa ao caput do art. 5º da Constituição da República.
Além do mais, não se pode olvidar que, mesmo sendo entes despersonalizados, possuem eles capacidade de titularizar direitos e obrigações, bem como demandarem e serem demandados em juízo [134].
E o que se deve entender por destinatário final? Antes mesmo de responder a indagação, é necessário consignar que, nessas duas palavras, está a grande celeuma no tangente a conceituação de consumidor, o que, conseqüentemente, influenciará no campo de aplicação do CDC. Para a solução desta controvérsia surgiram duas correntes interpretativas: a finalista e a maximalista.
A primeira, denominada de finalista, preconizada por grandes doutrinadores, como Ada Pellegrini Grinover [135] e Antonio Herman Benjamin [136], foi a pioneira na definição de consumidor. Segundo seus precursores, a interpretação finalista restringe a figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família; consumidor seria o não profissional. Destarte, o conceito de consumidor estaria em perfeita sintonia com os princípios básicos, expostos nos artigos 4º e 6º do CDC [137].
Sem embargos, Antônio H. Benjamin [138] leciona que
[...] destinatário final é o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (Endverbraucher), aquele que coloca um fim na cadeia de produção e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir na cadeia de serviço.
Com efeito, José Geraldo B. Filomeno [139], também em claríssima lição, afirma:
O conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial.
Assim, pois, para os que adotam a interpretação finalista, somente deve ser considerado consumidor aquele que adquire e utiliza, o bem ou serviço, em proveito próprio, satisfazendo uma necessidade pessoal, sendo vedado sua revenda ou uso profissional, "pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu." [140]
A outra corrente, denominada maximalista, adotada pelo grande jurista Luiz Antônio Rizzato Nunes [141], entre outros, entende ser o CDC um Código para a sociedade de consumo, devendo, o art. 2º desse "Codex", ser interpretado o mais extensivamente possível. Assim ocorrerá que, cada vez mais, um maior número de relações de mercado estarão abrangidas pela Lei nº 8.078/90.
Desse modo, para os adeptos da interpretação maximalista, o CDC regula também as situações em que, pessoas físicas ou jurídicas, adquirem produtos ou serviços com finalidade de produção de outros (produtos ou serviços); outrossim, estes, uma vez adquiridos, devem ser oferecidos regularmente no mercado de consumo, independentemente do uso e destino que o adquirente lhes vai dar [142].
Para melhor visualização das duas correntes, traz-se à tona o seguinte exemplo: imagine-se um escritório que adquire uma copiadora para auxiliar nos seus serviços. Para a primeira corrente, esse escritório não seria considerado consumidor, logo não estaria amparado pelo Código consumerista. Já para os adeptos da interpretação maximalista, aquele escritório estaria amparado pelo CDC, pelo simples fato de ter retirado o produto do mercado e por tê-lo utilizado (destinatário fático do produto).
E qual interpretação adotar? As duas interpretações mostram-se por demais antagônicas. Uma, muito restrita, a outra, ampla demais. Não há ainda uma posição pacífica entre os doutrinadores, nem mesmo entre a jurisprudência [143].
Para uma justa definição de consumidor, melhor seria um meio termo entre as duas interpretações analisadas.
Primeiramente, caso fosse adotada a interpretação maximalista, grande parte das relações jurídicas existentes seriam regidas pelo CDC, enquanto os Códigos Civil, principalmente no tangente às obrigações (Livro I da Parte Especial), e Comercial (na parte em que não foi revogado pelo novo Código Civil – art. 2.045), não teriam, praticamente, nenhuma aplicabilidade [144].
Por outro lado, adotando-se a interpretação finalista estar-se-ia, de certo modo, ofuscando o principal desiderato que o CDC busca, ou seja, a proteção da parte mais vulnerável, tendo em vista que situações iguais podem ser tratadas de maneiras diferentes [145], transgredindo, via de conseqüência, o princípio da igualdade.
Em razão das duas teorias já analisadas trazerem pontos positivos e negativos, necessário se faz selecionar o que de melhor há em cada uma e criar uma terceira, a Teoria Eclética.
Posto isto, no presente trabalho, dever-se-á considerar consumidor qualquer pessoa física ou jurídica, bem como o ente despersonalizado, que adquira produtos ou serviços, ou que deles se utilizam, desde que esses não sejam adquiridos para revenda, nem utilizados para a produção de outros produtos ou serviços, podendo, outrossim, serem utilizados na atividade meio do consumidor, mas não em sua atividade fim.
Exemplificando: no caso do advogado que adquire um computador não há dúvidas que ele esteja amparado pelo CDC, pois o computador é apenas um meio para aquele profissional realizar sua atividade, que é tipicamente intelectual; do mesmo modo, uma empresa que contrata serviços para fornecimentos de alimentação aos seus funcionários; de um escritório de contabilidade que, pela grande quantidade de cópias que necessita diariamente, adquire uma copiadora.
Do lado oposto, não haverá relação de consumo quando, por exemplo, uma agência de veículos adquire vários modelos da montadora para revenda; quando uma indústria têxtil adquire matéria-prima (tecidos, linhas) e máquinas para confecção de roupas; quando um cirurgião dentista adquire utensílios para a realização de seu mister; quando um "web designer" adquire um computador, já que sem ele não poderá realizar a confecção de "sites".
Sendo assim, sempre que o produto ou serviço for indispensável, de forma que, sem ele, não se poderá realizar o objetivo almejado pela atividade fim, não se estará diante de uma relação de consumo (será sempre necessário analisar onde o serviço ou produto será utilizado).
O consumidor tratado até o presente momento é aquele previsto no "caput" do art. 2º, também denominado "stricto sensu". Mas não é somente esse consumidor que o CDC busca resguardar. É o que se verá no tópico seguinte.
2.4.1.1 Consumidores "lato sensu"
Além de proteger os efetivos consumidores, previstos no "caput" do art. 2º, o CDC também buscou resguardar todos aqueles estranhos às relações de consumo, ou seja, aqueles que não participaram efetivamente da relação de consumo, mas que de alguma maneira acabaram, por ela, atingidos ou prejudicados.
Primeiramente, logo no parágrafo único do art. 2º do CDC, o legislador já garantiu proteção à coletividade de pessoas que, de alguma forma, possam ser afetadas pela relação de consumo [146] ao dispor que: "Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo."
Buscou-se assim, a proteção daqueles que efetivamente não adquiriram produtos ou serviços, mas que provavelmente poderão adquiri-los (consumidor potencial).
Analisando o referido parágrafo único, Waldirio Bulgarelli [147], em importante lição ressalta que esse tipo de consumidor
[...] é aquele que se encontra numa situação de usar ou consumir, estabelecendo-se, por isso, uma relação atual ou potencial, fática sem dúvida, porém a que se deve dar uma valoração jurídica, a fim de protegê-lo, quer evitando, quer reparando os danos sofridos.
Logo em seguida, o art. 17 [148], que também estende o campo de aplicação do CDC, tem por escopo assegurar o ressarcimento àquelas "pessoas estranhas à relação de consumo, mas que sofreram prejuízo em razão dos defeitos intrínsecos ou extrínsecos do produto ou serviço [149]."
Com efeito, quis o legislador ao equiparar todas as vítimas do evento ao consumidor [150].
Por fim, em relação ao conceito "lato sensu" de consumidor, tem se o art. 29, que para Rizzato Nunes [151] "é o mais abrangente, amplo e abstrato da Lei nº 8.078/90, já que a uma só mão contempla o consumidor real, existente de fato, atingido pela prática comercial, e qualquer outro determinável."
Visa o presente artigo proteger os consumidores potenciais no tocante às matérias disciplinadas no Capítulo V do CDC que se referem às práticas comerciais (oferta, publicidade, práticas abusivas).
Desse modo, basta qualquer prática comercial para que todos sejam expostos a ela, e conseqüentemente equiparados ao consumidor; além do mais, essas práticas abrangem uma coletividade de pessoas (determinadas ou não), não havendo, outrossim, necessidade de aquisição do produto ou serviço objeto dessa prática.
Para concluir, brilhante é a lição que nos traz Cláudia Lima Marques [152]:
Mesmo que essas pessoas não sejam consumidores "stricto sensu", elas poderão usar as normas especiais do Código de Defesa do Consumidor, conjuntamente com seus princípios, sua ética de responsabilidade social no mercado e sua nova ordem pública, buscando combater as práticas comerciais abusivas.
Posto isto, cabe agora analisar o outro protagonista da relação de consumo, qual seja, o fornecedor.
2.4.2 Fornecedor
Do lado oposto da relação de consumo encontra-se o fornecedor. Do mesmo modo que o consumidor, também foi conceituado pelo legislador, contudo no "caput" do art. 3º, cuja transcrição segue "in verbis":
Art. 3.º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Nessa conceituação, o legislador procurou englobar o maior número possível de relações que pudessem existir, ou seja, procurou promover ao máximo a proteção do consumidor.
Desse modo não se esqueceu de ninguém; lembrou-se das pessoas físicas, das jurídicas, estas podendo ser pública ou privada, até mesmo estrangeiras; e por fim, não olvidou em elencar os entes despersonalizados, que, por previsão expressa, passaram a assumir obrigações e a serem responsabilizadas por seus atos, atuando sob regime jurídico "sui generis".
Além do mais, conforme José Geraldo Brito Filomeno [153] "a condição de fornecedor está intimamente ligada à atividade de cada um", atividade essa de caráter econômico, sendo que o próprio legislador as enumerou, podendo consistir em produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Dessa maneira, o CDC considera como fornecedor todos aqueles que participam da cadeia de fornecimento de produtos e serviços, não importando sua relação direta ou indireta, contratual ou extracontratual com o consumidor [154].
Assim, verifica-se que atividade pode ser realizada tendo em vista um produto ou serviço, sendo característica intrínseca à relação de consumo que esses sejam efetivamente colocados no mercado [155].
Da mesma sorte, a expressão "atividade", utilizado pelo "caput" do artigo em comento, via de regra, indica a exigência de alguma reiteração ou habitualidade [156], sem prejuízo, contudo, de restringir a aplicação do CDC.
E o profissional liberal quando exerce sua profissão, é considerado fornecedor? Sem dúvidas que sim [157]. E por quê? Para essa resposta, mister se faz a transcrição "ipsis litteris" do magistério de Paulo Luiz Netto Lobô [158]: "é fornecedor porque exerce atividade jurídica, entendida como um complexo de atos teleologicamente orientados, tendo continuidade e duração dirigidas a um fim de produção ou circulação de produtos ou serviços."
Cabe ainda mencionar que, quando o profissional liberal exercer sua profissão como empregado, não será considerado fornecedor; logo, não estará sujeito "imediatamente ao direito do consumidor, porque a atividade é exercida por seu empregador." [159]
Vez realizada a análise desses elementos, passar-se-á agora ao estudo dos serviços, objeto e elemento necessário, juntamente com os produtos, para a formação de uma relação de consumo.
2.4.3 Serviços
Atualmente, é possível imaginar que 70% das demandas judiciais envolvem algum tipo de serviço [160]. Alguns deles pequenos, e geralmente discutidos em juizados especiais (vide Lei n.º 9.099 de 26 de setembro de 1995), tais como, serviços de pintura e conserto de automóveis, de marcenaria, de embelezamento, de telefonia entre outros.
Há também aqueles serviços de maior valor, seja pelo valor monetário, seja pelos bens que são objetos desse serviço, como a vida, a liberdade e a segurança; assim pode-se citar as empreitadas, o transporte de pessoas, os serviços médicos e advocatícios, os planos e seguros de saúde etc.
O Código de Defesa do Consumidor, do mesmo modo que conceituou consumidor (art. 2º) e fornecedor (art. 3º), também trouxe o conceito de serviço (art. 3º, § 2º). Assim, serviço [161] é, "ex vi lege", "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista."
Com efeito, buscou o legislador trazer às garras do CDC o maior número possível de atividades prestadas no campo profissional ou não, incluindo algumas expressamente para que não houvesse controvérsias.
Não obstante a constante discussão pelas entidades bancárias [162] em insistir que não são prestadoras de serviços, em que pese maciça jurisprudência em sentido contrário [163], não há dificuldades nem divergências em atribuir aos profissionais liberais a qualidade de prestador de serviços, mesmo porque o serviço é inerente à sua atividade.
O CDC, ao definir serviço, também estabeleceu que este deve ser realizado mediante remuneração. E o que se deve entender por remuneração? E se o profissional liberal prestar o serviço gratuitamente? Não estará sujeito as disposições do CDC?
Atualmente, no sistema capitalista em que se vive, dificilmente alguém irá prestar um serviço de forma gratuita, ainda mais no mercado de consumo.
A expressão "mediante remuneração" utilizado pelo Código não compreende apenas o pagamento efetuado diretamente pelo consumidor ao prestador/fornecedor de serviços; irá compreender também, conforme lembra Arruda Alvim [164], "o benefício comercial advindo de prestações de serviços aparentemente gratuitos assim como a remuneração embutida em outros custos". É o que ocorre quando um dentista oferece a manutenção gratuita de um aparelho dentário posto por ele; outro exemplo é o caso das amostras grátis, cujo pagamento não é obrigatório (art. 39, parágrafo único do CDC).
Ocorre, por vezes, que o profissional liberal preste algum serviço sem nada cobrar. Pode advir tanto de situações em que este profissional se vê obrigado, como na hipótese do médico que se depara com alguém sofrendo um desmaio, quanto em casos em que o profissional presta seus serviços devido a pobreza de alguns.
De qualquer sorte, nada impedirá que a avaliação da responsabilidade do profissional liberal seja feita de acordo com o CDC. No entanto, caso ele preste o serviço de forma obrigatória (caso dos médicos, para não caracterizar omissão de socorro), sua responsabilidade deverá ser apurada à luz da responsabilidade extracontratual.
Outrossim, até mesmo em razão da equidade, não é justo que o profissional liberal que presta um serviço sem cobrar possa ficar isento das obrigações impostas pelo CDC [165], alegando que a falta de remuneração retirou de seu trabalho a característica de ser considerado serviço.
O STJ [166] já decidiu no sentido de que o fato de uma sociedade civil prestar serviços de assistência médica, hospitalar, odontológica e jurídica, sem fins lucrativos, de caráter beneficente e filantrópico, não a impede de ser considerada fornecedora de serviços e, como tal, ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor.
O Código Civil, diploma que pode ser aplicado subsidiariamente ao CDC naquilo em que não lhe for contrário, disciplinou nos artigos 593 a 609 a prestação de serviços.
Dentre estes, cabe mencionar o disposto no art. 606 que também trata da remuneração. Segundo esse dispositivo legal, se o serviço for prestado por quem não possua título de habilitação, ou não satisfaça requisitos outros estabelecidos em lei, não poderá quem os prestou cobrar a retribuição normalmente correspondente ao trabalho executado [167].
Contudo, caso o serviço traga alguma vantagem à outra parte, o órgão judicante, havendo boa-fé do prestador de serviço, atribuir-lhe-á, apesar de não possuir habilitação técnica para a prestação do serviço, uma compensação razoável, de acordo com o serviço prestado [168]. Essa retribuição só lhe será negada quando a proibição da prestação de serviço resultar de lei de ordem pública (art. 606, parágrafo único); como o exercício da advocacia, da medicina, etc.
De mais a mais, cabe lembrar ainda que os serviços colocados no mercado de consumo, indistintivamente, deverão estar em sintonia com os direitos básicos dos consumidores e com o disposto nos artigos 8º, 9º e 10 do CDC.