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O acesso à justiça na comarca de Leopoldina (MG)

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Agenda 08/07/2006 às 00:00

1.Por que estudar e conhecer Leopoldina?

Um escorreito trabalho acadêmico hodierno segue permeado por historizações críticas e observações contextuais de localidades, sem a pretensão de esgotar todas as possibilidades de debate de cada estudo. As metanarrativas e os sonhos totalizantes da Modernidade devem ser substituídos em nome de metodologias epistemológicas mais modestas, mas também mais dialéticas e sinceras.

Se esta perspectiva rodeia todo o trabalho, um contributo valioso para esta narrativa é dissertar sobre o acesso à Justiça em um espaço regionalizado específico. Sem os rigores sociológicos e os brilhantismo de Boaventura ao fazer um estudo da administração da Justiça em uma favela do Rio de Janeiro nos anos 70, ainda assim crê-se que é possível, em um espaço reduzido, pesquisar como as tendências gerais do acesso à Justiça se inserem e se modificam de acordo com as peculiaridades de uma cidade do interior de Minas Gerais.

O alvo do estudo de acesso à Justiça é Leopoldina- MG. A escolha não se deu ao acaso. Adotando o pessoalismo moderado como marca nesta escrita, é nesta cidade que, há três anos, lecionamos em uma Faculdade de Direito. Retratar um pouco do apreendido nesta enriquecedora convivência é também uma homenagem a um espaço geográfico que, apesar de seus problemas (e qual cidade, Estado ou país que não os tem?), sabe acolher com afeto e ternura cidadãos egressos de outras cidades.

Para descrever o acesso à Justiça em Leopoldina, é fundamental conhecer um pouco da cidade, sua estória, seu povo, sua economia, seus contrastes, suas crises, suas virtudes.

Antiga aldeia dos índios Puris, as terras do atual Município de Leopoldina foram desbravadas por tropeiros no século XIX em busca de terras férteis. Fixaram-se às margens do córrego Feijão Cru, surgindo, assim, um povoado, denominado de São Sebastião do Feijão Cru, por volta de 1830. O povoado cresceu inicialmente com o cultivo da cafeicultura e em 1854 foi criando o Município de Leopoldina, desmembrando-se de Mar de Espanha. Em 1861, sua sede foi elevada à cidade.

Um relato importante sobre o povoamento de Leopoldina vem dos seguintes estudos de Oiliam José:

" As terras do Município de Leopoldina desconheceram as tropelias do ciclo das minas. Foram desbravadas a partir do século XIX, e colonizadas por agricultores e à agricultura continuariam dedicadas até o inicial da atual centúria, quando, com a queda sofrida pelo café, a pecuária passou a preponderar nelas". [01]

Outro relato curioso, porém infeliz, diz respeito à escravidão. Em 1876, Leopoldina abrigava a maior população escrava da Província de Minas Gerais. Servidos por tão numerosos escravos e apoiados pela força econômica do café, os fazendeiros leopoldinenses levavam um padrão de vida de absoluto fausto, com tom aristocrático bem próximo aos usos e costumes da Corte. Com tal força econômica, tais fazendeiros se empenhavam bravamente contra as tentativas de abolição da escravatura, exercendo robusta pressão sobre os deputados mineiros na Assembléia Geral do Império. Com efeito, as "boas" ligações dos fazendeiros leopoldinenses com a Corte eram mais impactantes do que as da antes prestigiada Ouro Preto.

Logo, não é de se estranhar que a notícia da promulgação da Lei Áurea, em 1888, tenha provocado forte comoção entre os agricultores, motivando violentos protestos dos proprietários de escravos. Eles se consideravam verdadeiramente espoliados pelo Império e chegaram a exigir indenização em favor dos que perderam a propriedade escrava.

Tal como em outros campos de agricultura, Leopoldina, antes até da abolição, começou gradativamente a substituir escravos por imigrantes. Os pioneiros foram encontrados na cidade antes de 1859 e exerciam atividades ligadas ao comércio, daí serem vulgarmente conhecidos à época como os "turcos". As salas de suas casas eram as lojas e as demais dependências se destinavam à moradia. A segunda leva de imigrantes, entre 1860 e 1888, surgindo da abertura de estrada destinada a escoar a produção agrícola da região de Barbacena e Juiz de Fora. Para construí-la, foi fundada a Companhia União e Indústria. O declínio da Companhia ocorreu no período da implantação da estrada de ferro Dom Pedro II, cujo traçado era o mesmo da rodovia. Muitos colonos alemães, bem como imigrantes de outras nacionalidades passaram a trabalhar na ferrovia.

Contudo, é com a Lei Áurea que um fluxo mais sólido de imigrantes chegou a Leopoldina. Até antes disto os imigrantes eram profissionais das mais diversas categorias e alguns até com certa pujança financeira foram responsáveis pelos rudimentos de atividade industrial na região. Já os novos imigrantes eram exclusivamente agricultores, basicamente espanhóis e italianos. Assolados pela fome de seus locais de origem, eles aceitaram vir trabalhar no Brasil em condições de trabalho bem parecidas com as dos seus antecessores escravos. Diferentemente dos grupos de imigrantes anteriores, nestes o índice de analfabetismo era bastante elevado, os que os tornava bastante submissos aos fazendeiros leopoldinenses.

Leopoldina é uma cidade de paradoxos. Se de um lado conviveu com exclusão social e altas taxas de analfabetismo nos seus primórdios, também foi palco de fausto e luxo provindo da pujança de sua atividade agrária até a metade do século XX. Recebeu até o título de "Atenas Mineira", uma vez que concentrava vários colégios particulares e um conservatório de música. Um destes colégios chegou a ter como diretor o poeta Augusto dos Anjos, o qual teve tanta identificação com a cidade que acabou sendo enterrado em Leopoldina.

O bom momento econômico, contudo, passou. A prosperidade financeira ficou para trás com o decréscimo do prestígio da atividade agrária da cidade. Ao mesmo tempo, o histórico de opressão a escravos e imigrantes pobres minou a capacidade de o município pensar outras alternativas para seu desenvolvimento. Nos dias de hoje Leopoldina, bem como a região da Zona da Mata mineira, estão vivendo um pesado período de depressão econômica. Há bem pouca atividade industrial [02] e Leopoldina vive basicamente do comércio e da atividade rural concentrada no gado leiteiro, cujo preço vem tendo queda vertiginosa. Leopoldina não acompanha a crescente industrialização do setor e a produtividade e competitividade apresentam um quadro lastimável.

Uma pesquisa do Sebrae em 1997 comprova tal assertiva. Percebe-se uma lamentável situação de encolhimento econômico de Leopoldina. Entre os anos de 1985 e 1995, o PIB da cidade encolheu 1, 30%, ao passo que o Estado de Minas Gerais, neste período, teve crescimento de 1%. [03]

Mesmo a atividade agrária da cidade reflete esta queda. Em 1993, Leopoldina possuía 56.4000 bovinos, ao passo que em 1996 houve um recuo para 52.330 cabeças de gado. Em 1980, o comércio de aves era de 481.596 cabeças. Em 1993, a produção foi zerada.

O cenário precário da cidade não pode só ser creditado à ausência de empreendorismo nos produtores rurais e no empresariado local. O Poder Público local, tem demonstrado extrema letargia na tomada de medidas que signifiquem o crescimento econômico da cidade. Não há projetos consistentes para fomentar emprego e renda e as Secretarias de Indústria e Comércio, bem como a de Agropecuária tem se limitado a gerenciar burocraticamente suas atividades, sem perspectivas mais ousadas de gestão administrativa.

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A debilidade financeira da cidade toma ares alarmantes à luz de uma simples comparação da população entre o censo de 1890 e os dias atuais. Em 1890, Leopoldina tinha 35.531 habitantes (29.302 deles eram analfabetos, ou seja, 82, 5% da população) e o Brasil tinha 14.333.915 habitantes. Nos dias de hoje, Leopoldina não passa de 50.000 habitantes e o Brasil possui mais de 160 milhões de habitantes....

Apesar de tal momento desolador, ventos de mudança sobrepairam Leopoldina. Nos últimos anos, duas Faculdades foram instaladas na cidade, gerando proveitosa reflexão sobre as mazelas sócio-econômicas do município. Ao mesmo tempo, movimentos populares desvencilhados do braço estatal têm lutado para que sejam geradas novas perspectivas para a cidade.

Para melhor compreensão do contexto leopoldinense, desenvolvemos, com certa flexibilidade em relação a rigores metodológicos tradicionais, uma pesquisa especial que implicou na confecção de questionários respondidos por atores da vida sócio-jurídica da cidade. Além disto, dentro desta linha de estudo, em que se privilegia um enfoque metajurídico, foram ouvidas não apenas personalidades do mundo do direito oficial, mas também líderes de movimentos sociais e grupos comunitários extra-estatais. Nos itens subseqüentes, abordamos os resultados desta pesquisa, à luz da meta principal que é a de indicar alternativas para a melhoria do acesso à Justiça em Leopoldina. Cabe expor que o material usado nestas pesquisas e outras interessantes impressões coletadas no estudo do acesso à Justiça em Leopoldina constam de anexo à presente monografia.


2.Análise crítica da Jurisdição estatal em Leopoldina- MG

Morosidade e ineficiência... Estes termos, que são marcas indeléveis em todas as descrições do exercício da jurisdição estatal, infelizmente, também são aplicáveis à Leopoldina.

Cumpre destacar que um dos grandes responsáveis pelo volume absurdo de processos, um dos grandes responsáveis pela morosidade, é o próprio Estado. As campeãs do número de ações ajuizadas são as execuções fiscais, que se arrastam por vários anos até porque seu objetivo maior, qual seja, a satisfação de um débito em prol do Estado quase nunca chega a se concretizar. Em uma cidade pobre como Leopoldina, a grande maioria das execuções fiscais termina sendo suspensa pela falta de bens penhoráveis.

Mencione-se ainda que o próprio comportamento da Fazenda Pública nos processos executivos também se revela grave fator responsável pela morosidade. A Fazenda não toma providências para dar célere andamento ao processo. Notabiliza-se por juntar aos autos petições padronizadas, com os mesmos dizeres, muitas descontextualizadas com o estágio de andamento do processo. Os endereços dos executados são fornecidos de forma equivocada e a Fazenda não se preocupa em corrigir equívocos desta ordem. Na falta do encontro de bens penhoráveis, agrava a situação a ausência de diligências estatais na indicação de qualquer bem do devedor que garanta a constrição. Ademais, quando o devedor indica bens para penhora, a Fazenda oscila entre não aceitar o bem indicado (e, como sói ocorrer, não indica qualquer outro bem em substituição) ou não aceitar o papel de depositária do bem indicado. Com tanta letargia por parte da Fazenda Pública, é obvio que as execuções fiscais se acumulam sem quase nunca chegar a um bom termo.

Outro contributo para o avolumado número de processos de Leopoldina são as empresas, recorrentes no uso do Judiciário na tentativa de recuperação de créditos. Novamente é preciso dizer que a maioria destes processos não chega a cumprir seu intento, qual seja, a satisfação do crédito. Relembre-se que a cidade de Leopoldina é pobre e não possui economia que consiga corresponder à volúpia financista de bancos, financeiras e fornecedores.

A divulgação de tais dados demonstra também que a jurisdição em Leopoldina padece dos terríveis males advindos da elitização do acesso e da dificuldade de o cidadão comum defender em juízo direitos que sejam diferentes das querelas familiares e litígios de vizinhança. O número de ações ajuizadas pelo Estado e por empresas é infinitamente superior àquele da seara consumerista ou da tutela do patrimônio histórico, paisagístico e ambiental da cidade.

Com efeito, a segunda onda dos estudos de Cappelletti, qual seja, a representação processual de interesses difusos e coletivos não "chegou" com grande impacto em Leopoldina. O número de ações populares e ações civis públicas é irrisório. Assim sendo, é inevitável constatar a inércia dos legitimados em lutar por direitos metaindivinduais.

Um bom exemplo desta inação pode advir de uma análise mais prudente das reclamações de que o Ministério Público pouco se movimenta para tutelar em juízo os interesses coletivos e difusos. Há freqüentes reclamações de que os Promotores não se empenham em levar a juízo as constantes queixas de ofensas ao erário público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico-cultural do Município. De fato, o Ministério Público não tem ajuizado ações civis públicas na extensão que o art. 129 da CF/88 exige. Contudo, também é bem difícil compreender os motivos pelos quais os munícipes não se organizam por intermédio de entidades civis não governamentais para pleitear judicialmente direitos da coletividade...

Desalentadora é a constatação de que os grandes protagonistas da cena jurídica estatal em Leopoldina não têm mostrado interesse em apresentar dinâmicas novas de mitigação da morosidade, potencialização da eficiência da jurisdição e melhoramento do acesso aos excluídos. Há um inegável distanciamento entre juízes e os jurisdicionados. Sobre isto, cabe salientar o seguinte posicionamento de Volnei Ivo Carlim:

" Sem dúvida, a população sempre viu os magistrados de forma mística, uma figura quase divina, a ser adorada. Por certo, com o desenvolvimento da sociedade, houve um abrandamento dessa adoração, mas para a opinião pública, notadamente a interiorana, o juiz pode constituir-se ainda num personagem quase místico, e pertencente mesmo a um outro mundo. [04]

Se, de um lado, deve ser visto pesar o desinteresse da sociedade civil em dinamizar a tutela de seus direitos, por outro giro o afastamento entre integrantes da jurisdição estatal e o povo também inibe a conscientização do cidadão comum de iniciativas para proteger seus interesses. Não existem canais institucionais de diálogo entre o povo e o Judiciário e isto não ocorre só em Leopoldina. Atestando esta cruel realidade, Lédio Rosa de Andrade assim se posicionou:

" Não são poucos os cartazes afixados nos fóruns, informando não atenderem, os juízes de direito e até mesmo os funcionários de cartório, as partes envolvidas, devendo, elas, procurarem o respectivo advogado. O Poder Judiciário, agindo desta forma, nega-se ao diálogo com o povo, considerando as pessoas simples como um incômodo, só pelo fato de desejarem saber e discutir seus direitos. (...) Como resultado de tudo isso, temos uma Justiça lerda, fraca, injusta, sonegadora dos direitos dos cidadãos. Vê-se a burocracia judicial consolidando a miséria na sociedade. Mas a vulgarização dos procedimentos nos faz aceitá-los, suportá-los e até aplicá-los, mesmo sendo injustos e cruéis. Acostuma-se com as injustiças, pois o tanto vê-las e conviver com elas, não mais revoltam, acabam trivializando-as. A morosidade e a ineficiência do Poder Judiciário já foram absorvidas pelos juristas e até mesmo pela população, e sequer causam mal-estar".

[05]

Dentre outros fatores que justificam a morosidade e a ausência de eficácia da prestação jurisdicional estatal em Leopoldina, merece nota a falta de infra-estrutura tanto da Justiça Comum, quanto do Juizado Especial. O Fórum da cidade é alojado em um prédio velho, com espaços reduzidos, sem possibilidade de reformas para expansão, incapaz de comportar a ampla carga de procura ao Judiciário na contemporaneidade. O Juizado Especial também ocupa um espaço diminuto diante da crescente procura desta instância na Comarca. Além da falta de espaço físico, há a carência de material apropriado de trabalho. Por vezes, até material básico de trabalho (folhas, carimbos, tinta de impressora) passam por instantes de escassez. Nem todos os servidores dispõem de computadores e muitas movimentações processuais ficam na dependência da liberação de algum terminal em uso por outro servidor.

Os próprios funcionários merecem um registro negativo à parte. Há um triste consenso entre advogados, estagiários e outros atores da comunidade jurídica local acerca do despreparo técnico e disciplicência laboral da maioria dos serventuários do Judiciário. Infelizmente, não é possível encontrar eufemismos para abrandar tal constatação.

Similarmente às observações expendidas quando da análise sobre a crise da Justiça em Portugal e no Brasil, note-se que as razões para esta ausência de qualificação dos servidores são várias. Entre outras, vale realçar que a maioria dos servidores atuais não foi selecionada por concurso público. Trata-se de contratados a título precário que, ilegalmente, têm seus contratos prolongados por prazos que superam até mais de uma década. Os critérios de contratação destes servidores "precários" nem sempre são os mais transparentes, nem tampouco os mais benéficos ao interesse público.

O aludido despreparo destes serventuários não se restringe à seara processual. Abrange também a falta de habilidade para criação de mecanismos organizacionais para otimizar o trabalho. Há, em algumas Secretarias Judiciais, uma divisão de trabalho excessivamente compartimentada, de forma que os servidores só são alocados para um tipo de função. Servidores que fazem as movimentações processuais não se misturam com servidores que confeccionam mandados e intimações e estes não se relacionam com servidores que fazem carga dos processos que saem para a Defensoria Pública, o Ministério Público, advogados e o juiz. Não que a especialização de tarefas seja ruim, mas o excesso de especialização nos serviços forenses faz com que as atividades fiquem muito separadas umas das outras, sem que os servidores tenham uma visão global dos andamentos processuais. O servidor mal sabe sua atividade e pouco está interessado no trabalho alheio. A falta de coesão e interligação entre as tarefas gera informações processuais desencontradas, um jogo obtuso de transferência de culpas quando ocorre qualquer problema e, por conseguinte, morosidade...

Para que a descrição em tela não atribua aos serventuários judiciais exagerada responsabilização no que concerne aos males da ineficiência da jurisdição estatal e morosidade, há que se dizer que muitos destes vícios poderiam ser sanados se o Tribunal do Justiça do Estado de Minas Gerais oferecesse, com razoável periodicidade, cursos de capacitação e aprimoramento dos servidores. As raras visitas de juízes corregedores às Comarcas interioranas e as correições anuais determinadas pelo juiz diretor de foro são providências muito tímidas para correção dos defeitos administrativos na prestação dos serviços jurisdicionais.

A morosidade em Leopoldina também pode ser aferida com base em análise de dados sobre ações judiciais ainda em curso. Para ilustrar com mais riqueza este aspecto, foi realizada uma pesquisa em três processos judiciais em curso na Comarca de Leopoldina. Os três processos dizem respeito às ações de indenização por danos morais, ligadas ao rito ordinário (dois são na Justiça Comum e um no Juizado Especial Cível). [06] O rito ordinário não é dos mais céleres, mas por si só não justifica que os processos em comento se arrastem por anos sem qualquer solução.

Os autos de nº 038403022822-3, em curso na Justiça Comum, está "suspenso sine die". A ação foi distribuída em 05 de setembro de 2003. O processo ficou parado mais de 30 dias aguardando expedição e remessa de mandado de citação para o Oficial de Justiça, dos quais aguardou mais de 20 dias para que a escrivã de Justiça inserisse sua assinatura no mandado. No início de fevereiro de 2004, o processo foi concluso ao juiz para despacho e só retornou para a Secretaria no início de março do mesmo ano. Em setembro de 2004, o processo ficou na Secretaria para novamente ser remetido para despacho judicial. Os autos só foram conclusos para despacho em 31 de janeiro de 2005. A audiência de conciliação só foi realizada em agosto de 2005, quase dois anos após o ajuizamento da ação. A audiência de instrução e julgamento foi designada para outubro de 2005, mas uma série extensa de adiamentos, pedidos de vista, temporadas de paralisação na Secretaria aguardando a expedição de mandados e, por fim, um acordo entre as partes para a suspensão temporária do processo a fim de que se estude uma possibilidade de composição, evitaram o desfecho do feito.

Os autos de nº 038403023715-8 foram distribuídos em 21 de outubro de 2003. Tal qual o processo anteriormente analisado, a primeira demora do processo consistiu na singela expedição e entrega de mandado de citação ao Oficial de Justiça, só concluída em janeiro de 2004. A intimação sobre contestação ofertada pelo réu demorou quase 02 meses. Em 25 de maio de 2004 o andamento processual indicava um inusitado título: "aguarda providência"... Pois bem, o processo, de fato, aguardou providências por um mês, só sendo concluso para o juiz em junho de 2004. Novamente o processo ficou paralisado um mês (de maio a junho de 2004) aguardando publicação de intimação das partes. De agosto de 2004 até 31 de janeiro de 2005 o processo ficou paralisado na Secretaria aguardando conclusão para o juiz. A audiência de conciliação foi designada para maio de 2005, quase 02 anos após a distribuição do processo. Não obtido acordo, a audiência de instrução e julgamento foi designada para agosto de 2005. Novos adiamentos ocorreram e a audiência só foi realizada em outubro de 2005. Desde novembro de 2005 o processo está paralisado na Secretaria e o andamento processual indica que o processo "aguarda providências..."

Mesmo o Juizado Especial Cível em Leopoldina também padece da morosidade. Os autos nº 038405036227-4 foram distribuídos em 10 de maio de 2005. Audiência de conciliação foi designada ainda para maio de 2005. Sem êxito na conciliação, a audiência de instrução e julgamento foi marcada para julho de 2005, mas adiamentos ocorreram e a audiência só foi terminada em janeiro de 2006. Terminada a audiência, foi determinada a conclusão dos autos para o juiz. A conclusão dos autos para o juiz depende da aposição de um simples carimbo da Secretaria. Passados mais de 20 dias da realização da audiência é que os autos foram conclusos para o magistrado que preside o feito.

O descumprimento dos prazos processuais é ostensivo, se se tiver em conta que a movimentação processual em uma Secretaria não deve ultrapassar 48 horas e que os prazos de despachos do juiz são de dois dias e de decisões são de 10 dias.

Para que uma análise sobre a jurisdição estatal em Leopoldina não fique restrita ao apontamento de defeitos, urge evocar como uma das recentes virtudes a instalação na Comarca de Centrais de Conciliação para causas ligadas ao Direito de Família. A iniciativa do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais é uma experiência adotada com sucesso na grande maioria das Comarcas mineiras e com Leopoldina o êxito não foi diferente. Processos tais quais ações de separação judicial, divórcio, alimentos, investigação de paternidade e disputa de guarda de menores podem ser resolvidos através dos trabalhos dos conciliadores, recrutados entre acadêmicos de Direito da Faculdade local. Os conciliadores são supervisionadas por uma Assistente Social e os índices animadores de composição simbolizam o acerto desta opção de resolução de litígios. Em média, 75% dos processos resultam em acordos, os quais, homologados posteriormente por um juiz, evitam que a morosidade e os custos processuais incidam nas ações ligadas ao Direito de Família.

Outro panorama positivo da jurisdição estatal em Leopoldina diz respeito aos Juizados Especiais. Embora padeçam de certas vicissitudes (a análise de um processo em andamento no Juizado Cível demonstrou que a morosidade também atingiu tal microssistema), o Juizado Especial ainda é uma das alternativas mais razoáveis para o bom acesso à Justiça.

Não há como esconder que existem problemas. Os funcionários do Juizado são, em sua maioria, cedidos pela Prefeitura Municipal, por outros órgãos públicos ou estagiários da Faculdade de Direito da cidade. Como se trata de servidores cedidos, há o risco de alta rotatividade, uma vez que as conveniências das instâncias que cedem podem ditar substituições ou reduções. Não há, por conseguinte, tempo hábil para um acurado treinamento dos servidores. Além disto, a infra-estrutura do Juizado não é das mais agradáveis e faltam computadores em número adequado para atividades comezinhas da Secretaria e da Central de Conciliação do Juizado. [07]

Além disso, o Juizado, criado com o escopo de desafogar a Justiça Comum, hoje passa pelos mesmos problemas de excesso de demanda. Em Leopoldina, a questão fica até mais dramática, uma vez que o Juizado recebe mais ações que a Justiça Comum. A explosão da litigiosidade judicial em sociedades capitalistas também atingiu a pobre Leopoldina. Destaque negativo para querelas na seara consumerista, uma vez que concessionárias de serviços de telefonia, luz e água só dão atenção ao consumidor quando acionadas judicialmente. Outra razão para a sobrecarga de serviço é a possibilidade das microempresas acionarem inadimplentes no Juizado. Não que a possibilidade legal de microempresas ajuizarem ação nos Juizados Especiais seja necessariamente negativa, mas o complicado é que os Juizados se transformem em verdadeiro "departamento de cobranças" de empresas, com abarrotamento de pautas de audiência em ações nas quais a recuperação de crédito se dá em função de quantias míseras...

Embora haja previsão na Lei dos Juizados Especiais Estaduais, em Leopoldina não existem os chamados "juízes leigos", figuras que poderiam, no caso de não ocorrência de acordo entre os litigantes, servir como árbitros facultativamente escolhidos pelas partes para decisão do conflito. O fosso que separa as boas intenções do legislador e a prática dos Juizados se torna cada vez mais notável.

Amenizando tais dificuldades, destaquem-se a boa receptividade e a presteza de servidores, estagiários e da magistrada que preside o Juizado. O atendimento aprazível a advogados e jurisdicionados não é uma marca comum de todas as instâncias estatais do acesso (e, lamentavelmente, desta mazela Leopoldina também padece...). O Juizado é um ambiente mais acolhedor para pessoas pobres, parvas de cultura e receosas por travar contatos com o Poder Judiciário tradicional.

Um exemplo claríssimo desta boa vontade do Juizado na prestação jurisdicional foi a recente instituição do Juizado itinerante, o qual, a princípio, atende a cidade de Recreio, pertencente à Comarca de Leopoldina. De 15 em 15 dias, juíza e um grupo de servidores e estagiários se deslocam até a cidade e realizam atendimentos e audiências na sede da Câmara Municipal da cidade. Interessante é que a idéia para realização de tal atividade não careceu de maiores burocracias, ofícios e demorados convênios. Bastou um pedido informal do Procurador do Município de Recreio à juíza e a idéia foi concretizada.

Outro fator que mitiga as carências do Juizado é o voluntarismo dos estagiários. São mais de 30 estagiários, a maioria sem remuneração, se revezando em atividades nas centrais de conciliação e nas Secretarias Judiciais. Os estagiários atuam no Juizado sem acompanhamento da Faculdade de Direito, que, assim como será adiante melhor relatado em outros pontos de análise do acesso em Leopoldina, tem se mostrado pouco presente em tal atividade.

Sobre o autor
João Fernando Vieira da Silva

advogado, professor de Teoria Geral do Processo, Processo Civil, Direito Civil e Prática Jurídica das Faculdades Doctum - Campus Leopoldina, especialista em Direito Civil pela UNIPAC - Ubá (MG), mestrando em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ, pesquisador de grupo sobre Acesso à Justiça da PUC/RJ e do Viva Rio

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, João Fernando Vieira. O acesso à justiça na comarca de Leopoldina (MG). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1102, 8 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8600. Acesso em: 22 dez. 2024.

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