V. Os efeitos do reconhecimento, pelo STF, da mora em realizar a revisão geral das remunerações e o direito à indenização pelos prejuízos
Ora, se o STF não pode ordenar ao Executivo, em respeito à separação e autonomia dos poderes, o imediato cumprimento do mandamento constitucional, ao menos, o reconhecimento formal da mora deve ter algum efeito jurídico, como ocorre quando o judiciário (por qualquer de seus membros que seja) reconhece em alguém o estado de mora no cumprimento de alguma obrigação.
Há conseqüências jurídicas mínimas a serem extraídas dessa mora, quais sejam, a de gerar para os prejudicados por esta o direito à reparação de todo e qualquer dano dela decorrente e a incidência dos juros moratórios.
Ainda que se argumente, utilizando a clássica classificação de Silva (1998), ser o supracitado dispositivo constitucional norma de eficácia limitada, na medida em assegurou a revisão geral anual da remuneração aos servidores públicos, através de lei específica de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, quer dizer, o dispositivo consagra o princípio da periodicidade, mas é norma de eficácia limitada, pois depende de normatização infraconstitucional para gerar todos os seus efeitos,
entendemos que a obrigação de dar início ao processo legislativo, deflagrando as medidas tendentes à concretização da revisão, está nítida e indiscutivelmente traçada.
A Constituição pode não ter estabelecido os índices para a revisão, ou os critérios a serem utilizados para alcançá-los, remetendo tais questões à legislação infra-constitucional, cuja iniciativa atribuiu ao Chefe do Executivo, porém, deixou inequívoca a obrigação de realizar, anualmente, a revisão.
Aliás, entendemos que andou bem, nesse aspecto, o Constituinte Derivado, pois a EC 19/98 não deveria realmente ter corrido o risco de estabelecer índices sem parâmetro objetivo, pró-futuro, ou mesmo de engessar critérios que poderiam se revelar inadequados diante da conjuntura econômico-social que se desenharia, a cada ano. O legislador, por impossibilidade fática, não pode ser obrigado a prever todas as possibilidades e desdobramentos sociológicos das situações que está, genericamente, normatizando. É papel do aplicador adequar e bem seguir os comando, atendendo, inclusive, a seu conteúdo teleológico.
Ora, se a finalidade dessa norma foi preservar o valor real das remunerações e subsídios, o que deve ser feito, por óbvio, examinando as oscilações inflacionárias em cada período a ser recomposto, revisado, cabe ao Chefe do Executivo adotar as providencias para bem cumprir o mandamento constitucional.
Nesse sentido, ou se reconhece eficácia ao dispositivo constitucional, através do Judiciário, ou se terá uma situação em que a omissão do legislador ordinário (poder constituído), ou pior do Chefe do Executivo, como no caso em tela, vale mais do que a afirmação clara do poder constituinte; permitindo a espoliação do poder de compra e da qualidade de vida dos servidores, com todos os nocivos efeitos sócio-econômicos.
Segundo Eros Grau (2000, p. 172), a interpretação normativa é um processo dialético de compreensão e não deixa de ser um ato político e ideológico, pois o intérprete é condicionado pela sua cultura jurídica, seus credos filosóficos, políticos e religiosos, suas condições sócio-econômicas e psico-sociais.
Bem, o fato é que não há justificativa plausível para a omissão em que se manteve o então presidente FHC, desde 1999, doze meses após a EC 19/98, que foi de 04 de junho de 1998, até janeiro de 2002, quando, pela lei 10.331/2001, procedeu-se a primeira revisão geral.
Parece-nos evidente que, em decorrência de sua omissão, o poder público deu causa à perda do poder aquisitivo das remunerações e subsídios percebidos pelos servidores públicos e agentes políticos, causando-lhes prejuízos econômicos – danos materiais evidentes. Há, inclusive, clara configuração do ato omissivo, pela direta interpretação da norma em questão, bem como pelo julgamento do STF; clara configuração do dano, pela perda do valor das remunerações e subsídios, a cada anos, e claríssimo nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o advento dos prejuízos.
Portanto, surge a obrigação de indenizar, como decorrência direta e inafastável do reconhecimento da mora. Ou seja, os índices inflacionários medidos nos períodos de doze meses, contados de junho de 1998 a junho de 1999, junho de 1999 a junho de 2000, junho de 2000 a junho de 2001, e o período de seis meses entre junho de 2001 a dezembro de 2001, data de inicio da vigência da Lei 10.331/01, trouxeram claros danos materiais, que devem ser recompostos aos titulares do direito às revisões anuais que inocorreram.
VI. A não incidência da Súmula 339 – STF
Não é obstáculo ao reconhecimento do direito à indenização dos prejuízos, em favor de que os suportou, a circunstância de ter o Pretório Excelso Sumulado o verbete 339, segundo o qual não cabe ao judiciário promover reajuste de vencimentos, pois, no caso, não se estará determinando reajuste vencimental, mas, reconhecendo direito a indenização pelos danos materiais decorrentes de mora legislativa, que causou prejuízos materiais, mês a mês, aos titulares do direito à revisão. Resta aquilatar os danos, e determinar sua recomposição por quem os causou, por conduta ativa ou omissiva.
O INPC parece ser o índice adequado para sanar tal defasagem, por ser o indexador que melhor reflete a inflação, a perda do poder aquisitivo da moeda para a classe prejudicada pela omissão em questão. Isso porque, além de elaborado por instituição reconhecidamente seria e independente, é calculado, basicamente, medindo variação de preços de produtos direcionados à classe média. O importante é que se precisa estabelecer algum parâmetro, seja o INPC, seja o IPC, o IPC-r, a variação do salário mínimo, as remunerações da poupança, o que não se admite é que o judiciário deixe de apreciar lesão a direito, e condenar o responsável a uma reparação, assentindo com verdadeiro enriquecimento sem causa.
Repita-se, a aplicação do referido índice visa exclusivamente à indenização dos prejuízos efetivamente sofridos pela parte autora, não se confundindo com concessão de reajuste de qualquer espécie, situação que importaria na atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, o que por certo também afrontaria o princípio constitucional da separação dos Poderes consagrado no art. 2º da Constituição da República.
Em sentido contrário, os frágeis argumentos alinhavados pela União, que procura subverter e deslocar o cerne da controvérsia, focando a discussão sob o prisma da iniciativa da lei de concessão de reajuste, bem como sob o suposto ferimento ao principio da separação dos poderes e até a suposta impossibilidade de atribuir um índice que espelhe os prejuízos (danos materiais) suportados pelos servidores, com o que estaria o judiciário substituindo a função do executivo.
Ou seja, quando questionada em juízo, a União tem alegado sempre, em síntese, que: a) a regulamentação da revisão geral só pode ser feita por lei específica, estando a matéria submetida ao princípio da reserva legal absoluta; b) é vedado ao Judiciário conceder aumento de vencimentais aos servidores públicos, sob pena de ofensa ao Princípio da independência dos poderes; c) incabível a adoção do INPC como índices inflacionários e as correspondentes metodologias de cálculo, bem como releva-se o mesmo incompatível com a política de estabilização econômica e redução inflacionária adotada a partir do Plano Real.Mas não aponta nenhum índice como adequado (ou seja, não pode ser o INPC, portanto, que os servidores fiquem com seu prejuízo!)...
Não se pode aceitar que pedir indenização por omissão que entendem ilícita, e já declarada pelo STF como inconstitucional, caracterize-se como pretensão de substituir a iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo, para enviar ao Congresso Nacional Anteprojeto de Lei fixando reajuste para funcionalismo, não se está pedindo uma legislação, mas, sim, alcançar indenização devida, pelos prejuízos decorrentes da mora, já reconhecidamente inconstitucional do poder público. Assim, reforce-se, não tem aplicação a Súmula 339 do STF.
Basta lembrarmos o art. 37, § 6º, da própria Constituição da República, onde está clara a responsabilidade da união pelos danos causados por seus agentes:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."
É exatamente o caso. Estamos diante de conduta omissiva do Chefe do Executivo, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como inconstitucional. Mora configurada. Dessa omissão decorreram danos materiais diretos, com nexo de causalidade evidente, como negar-se, nesse quadro, o direito dos prejudicados à indenização?
Esse procedimento implicaria, além de negativa de vigência a dispositivo da Constituição Federal, esvaziamento completo da eficácia da decisão do STF em ADI por omissão, desconsideração dos efeitos da mora em que permaneceu o poder público, e ainda, desrespeito ao princípio que veda o enriquecimento sem causa do Estado, que decorreria do pagamento de remuneração com poder aquisitivo completamente defasado, corroído pela inflação e ausência de correção. Pertinente, nesse particular, a lição de Orlando Gomes (1985, p. 306):
"Há empobrecimento ilícito quando alguém, a expensas de outrem, obtém vantagem patrimonial sem causa, isto é, sem que tal vantagem se funda em dispositivo de lei ou em negócio jurídico anterior. São necessários os seguintes elementos: a) o enriquecimento de alguém; b) o empobrecimento de outrem; c) o nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento; d) a falta de causa ou a causa injusta".
Como ensina Bandeira de Mello (1981, p. 236):
A Constituição não é simples ideário. Não é apenas expressão de anseios, de aspirações, de propósitos. É a transformação de um ideário, e a conversão de anseios e aspirações em regras impositivas. Em comandos. Em preceitos obrigatórios para todos: órgãos do Poder e cidadãos.
Aliás, o dever de indenizar os danos está assentado em premissas basilares de nosso direito privado, ex vi do art. 186 do novo código civil, CC/2002, antigo art. 169 do CC/1916, com ligeiras alterações.
III. Conclusão
De todo o exposto, percebe-se que, quanto á atribuição de efeitos às decisões de procedência nas ADI por omissão, nossa Suprema Corte tem sufragado entendimento preconizado pela linha não concretista.
Porém, apesar de tal posição, ou seja, a despeito de entender não ser possível ao judiciário o estabelecimento de prazo para o legislador legislar, ou a elaboração de norma, em lugar deste, para sanar a omissão, o STF já tem proclamado que a omissão legislativa, especialmente após formalmente reconhecida pelo judiciário, pode efetivamente causar danos, e que tais danos são indenizáveis.
Por outro lado, vimos que a norma constitucional estatuída no art. 37, inc. X, com as alterações introduzidas pela EC 19/98, foi desrespeitada pela mora do poder público em dar cumprimento a seu comando normativo, especialmente o Chefe do Executivo, a quem compete a iniciativa da lei que realizaria o comando constitucional. Tal mora, de tão inequívoca, inclusive, já foi reconhecida pela mais alta Corte do país, em votação unânime entre os ministros do Pretório Excelso.
Nesse diapasão, fácil notarmos a grande corrosão nos valores das remunerações dos servidores públicos, pela ausência da revisão geral anual, por longo lapso temporal, a despeito permanência do fenômeno inflacionário (se mais mitigado que no passado, ainda assim não pode ser desconsiderado, quando temos em conta um período de mais de três anos).Pode-se mesmo perceber que a necessidade da realização de uma revisão geral da remuneração, estabelecida, com periodicidade anual, pela constituição, é um mecanismo de concretização da irredutibilidade remuneratória e, de resto, de preservação da dignidade da pessoa humana por trás de cada servidor e agente político destinatário da proteção constitucional em questão.
Assim, uma vez reconhecida a mora, e percebidos os danos materiais aqui identificados (o que se pode realizar tomando por base qualquer dos índices oficiais de inflação em cada período, notadamente o INPC, que mede variação dos custos de produtos de consumo típicos de classe média) estabelecido está o nexo de causalidade entre a omissão, juridicamente relevante, e os danos que dela decorreram. Portanto, surge, inexoravelmente, para o poder público, o dever de indenizar todos os que suportaram os prejuízos.
Referências
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra : Livraria Almedina, 1998.
GOMES, Orlando. Obrigações. 5. ed. Rio : Forense, 1985.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Fabris, 1981.
LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. 3. ed. Rio: Liber Juris, 1995.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público, n. 57/58, jan./jul. 1981.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
————.Comentário contextual à constituição. 2. ed. São Paulo : Malheiros Editores, 2006.
————. Curso de direito constitucional positivo. 18. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1997.
TEIXEIRA, Sávio de Figueiredo e outros. As garantias do cidadão na Justiça. São Paulo : Saraiva, 1993.