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Quem são os sujeitos dos direitos humanos?

Agenda 16/07/2006 às 00:00

I.CONSIDERAÇÕES INICIAS

Os direitos humanos passaram por um longo processo de evolução, desde uma fase embrionária, em que tutelavam o homem em seu aspecto individual (a sua vida e liberdade), atingindo uma segunda fase em que protegiam o homem como um ser social e político, alcançando, depois, um campo de proteção mais amplo, abrangendo, além dos outros aspectos, também o homem como um ser coletivo, em meio a um mundo globalizado e internacionalizado.

Muitos documentos, acordos, convenções e tratados internacionais importantes foram firmados ao longo desse tempo, várias conquistas formam obtidas. Entretanto, apesar de tanto esforço e luta em defesa dos direitos humanos, tem-se a sensação de que muito ainda falta a fazer. Os atentados constantes à dignidade humana, as extremas desigualdades sociais, o desrespeito ao cidadão (idoso, homossexual, preso, negro, pobre, índio...) ainda se fazem presentes no cotidiano de boa parte dos países em todo o mundo.

Deparamo-nos, agora, somados aos problemas antigos ainda existentes, com novos questionamentos que urgem por respostas consistentes dos aplicadores e estudiosos do direito, frutos dos avanços tecnológicos, da internet, da biogenética, da internacionalização cultural e do desenvolvimento globalizado das nações.

Afinal de contas, desejamos descobrir, realmente, quem é, diante desses novos parâmetros, o homem dos direitos humanos, quem pode ser sujeito desses direitos, bem como quais as principais repercussões dos direcionamentos e teorias adotadas na defesa dos direitos humanos e em assuntos de tamanha relevância, como os direitos do nascituro e a questão do aborto, encarados sob os pontos de vista filosófico e político.


II. OS DIREITOS HUMANOS E A DIGNIDADE HUMANA

Segundo Piovesan (1997, p.132), intensa é polêmica sobre o fundamento e a natureza dos direitos humanos _ se são direitos naturais e inatos, ou direitos positivos e históricos ou, ainda, direitos que derivam de determinado sistema moral.

Mostra Morais que tanto o desenvolvimento quanto a fragilidade dos direitos humanos estão intimamente ligados com a ação estatal em suas diversas expressões. Ele resume, então, os direitos humanos como sendo:

(...) conjunto de valores históricos básicos e fundamentais, que dizem respeito à vida digna jurídico-político-psíquico-econômico-física e afetiva dos seres e de seu habitat, tanto daqueles do presente quanto daqueles do porvir, surgem sempre como condições fundantes da vida." (MORAIS, 2002, p. 60)

Segundo Morais, citando Noberto Bobbio em seu "A Era dos Direitos", defende-se o caráter histórico dos direitos humanos, mostrando que: "eles se formulam quando e como as circunstâncias sócio-histórico-político-econômicas são propícias ou referem a inexorabilidade do reconhecimento de novos conteúdos, podendo-se falar, assim, em gerações de direitos humanos". (MORAIS, 2002, p. 60)

Para Júlio Marino de Carvalho, "a expressão ‘direitos humanos’ tem como conteúdo o reconhecimento do valor do homem, como ser vivo, íntegro, pensante, respeitável, e que é credor da mais nobre destinação". (CARVALHO, 1998, p. 39)

Há, inclusive, quem, a exemplo de Lochman (1979, p. 18-20 apud CARVALHO, 1998, p. 44), divida o conceito de direitos humanos, atrelando-o a três mundos: um mundo capitalista do ocidente, que ensejaria um conceito relacionado à liberdade individual, protegendo o homem como um cidadão livre, salvaguardado dos abusos do Estado; um mundo socialista do oriente, onde a idéia de dignidade humana seria considerada com maior realismo, pela criação de um ambiente social que a propicie a todos coletivamente considerados; e, finalmente, um terceiro mundo das nações em desenvolvimento, onde a questão dos direitos humanos se posicionaria nas necessidades elementares de sobrevivência, diante das misérias existentes. Divisão esta, ressalte-se, já decadente, tendo em vista o mundo cada vez mais globalizado em que vivemos.

De qualquer forma, adotando-se qualquer teoria, natureza ou conceito para os direitos humanos, é inconteste que sua tutela encontra razão de ser na própria defesa da dignidade humana, sob suas mais diversas manifestações.

O vocábulo humanidade, advindo do latim, tradução do conceito grego paidéia, (Cf. RABENHORST, 2001, p.14), passou, a partir dos modernos, a designar a natureza racional do homem, dotada de um valor intrínseco, que lhe confere um mínimo moral comum. Já o termo dignidade, do latim dignitas, refere-se a tudo o que merece respeito e consideração.

O primeiro questionamento a ser feito quando de fala em dignidade humana, conforme o professor Rabenhorst (2001, p. 40), é o de descobrir se existe uma forma de afirmar que todos os homens possuem o mesmo valor.

É claro que os seres humanos apresentam as mais diversas peculiaridades, que os tornam tão especialmente diferentes uns dos outros, em vários aspectos: morais, éticos, culturais, físicos etc. Explica Rabenhorst:

Do ponto de vista biológico, é obvio que os indivíduos não são completamente iguais. As pessoas diferem não apenas fisicamente, mas também em relação às suas personalidades, habilidades e aptidões. Nos mais, elas se distinguem também pelos seus méritos morais."( RABENHORST, 2001, p. 40)

Para podermos considerar, portanto, que seres tão diferentes sejam membros de uma mesma comunidade e titulares dos mesmos direitos (de uma mesma dignidade), faz-se mister encontrarmos algumas características comuns, que justifiquem essa reunião.

A primeira explicação, de origem teológica, defendida pelo Cristianismo, imputa aos homens a característica comum de serem todos criados à imagem e semelhança de Deus. O que dizer, então, àqueles com crenças distintas?

Entretanto, a teoria cristã do direito natural [01], representada principalmente por São Tomás de Aquino, não defendeu a igualdade em sua integralidade, uma vez que procurou justificar a servidão humana a partir de uma razão natural. Não seria importante, segundo explicavam, ser livre ou escravo.

Apenas com as teorias jusnaturalistas modernas é que idéia de um direito natural (anterior e superior ao advindo dos legisladores humanos) passou a buscar garantir a igualdade entre os homens.

Dentre os mais citados filósofos que contribuíram decisivamente para a consolidação do jusnaturalismo moderno se encontram o holandês Hugo Grócio, que define o direito com uma qualidade moral, e seu contemporâneo alemão Cristian Wolf (Princípios do direito da natureza e das pessoas – 1625), entendendo, a partir daí, que o homem é detentor de um conjunto de direitos próprios, como a liberdade e a igualdade, que são indispensáveis para a realização de sua natureza moral, sendo tais direitos universais, à medida que pertencem a todos os homens.

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Segundo Locke, os homens também possuem direitos de liberdade e de igualdade naturais, imanentes a sua espécie, porém, por meio de um pacto social, transferem-nos ao Estado, para que tais direitos possam ser assegurados e efetivados.

Os humanistas modernos tentam, pois, explicar a noção de dignidade humana não relacionada a uma transcendência ou a algo sobrenatural, mas atrelada à própria idéia de natureza humana, incluindo todos os seres racionais. Os direitos humanos estariam sempre relacionados ao homem, o único ser capaz de pensar e de ser verdadeiramente livre, condições essas indispensáveis para garantir a sua própria dignidade.

CARVALHO (1998, p. 20), nesse sentido, afirma que: "Apesar de seu paralelismo físico com muitos animais, singular é a espécie humana. Ela se distingue pela natureza e grau de sua intelecção."

Segundo o professor Rabenhorst (2001, p.32), Kant foi quem melhor desenvolveu o conceito moderno de autonomia, vinculando-o à dignidade humana, e encarando o homem como um ser livre e racional, capaz de fazer suas próprias escolhas e, como tal, titular de direitos e deveres.

A idéia de um indivíduo sujeito de direitos remete à convicção de que o homem é um ser autônomo e universal, capaz de traçar os seus próprios objetivos e de agir conforme tais objetivos. E, como tal, possui, independentemente de qualquer característica relacionada à raça, sexo, idade ou cultura uma idêntica dignidade e é titular de um mesmo conjunto de direitos.

A dignidade do homem está em que, como ente provido de razão, não obedece senão às leis que ele próprio estabeleceu, limitado, porém, por alguns princípios, pelo fato de reconhecer, também, no outro (seu semelhante) uma idêntica humanidade, a que Kant chama de "respeito".

De qualquer forma, para definir a especificidade ontológica do ser humano, sobre a qual fundar a sua dignidade, a atual antropologia filosófica apresenta algumas características próprias do homem, tais como: a liberdade, a autoconsciência, a sociabilidade, a historicidade e a unicidade existencial do ser humano.

Afirma-se, assim, ser o homem o único ser dotado de vontade, isto é, da capacidade de agir livremente, sem ser conduzido pela inelutabilidade dos instintos. É a liberdade que faz do homem um ser dotado de autonomia, de capacidade para ditar suas próprias normas de conduta.

Quanto à autoconsciência humana, pode-se afirmar que, diferentemente dos outros animais, o homem possui a consciência de sua própria subjetividade, no tempo e no espaço; consciência de ser vivente e mortal. O homem é, portanto, essencialmente, um animal reflexivo, capaz de se enxergar como sujeito do mundo, de exercer a sua liberdade e de reconhecer o seu semelhante com a mesma humanidade.

Há ainda a característica da sociabilidade, apontada pelo fato de se reconhecer o homem como um ser que não vive e não desenvolve suas capacidades de pessoa, senão quando inserido em um meio social (o homem tem a necessidade natural de conviver com seus semelhantes).

Quanto à característica da historicidade atribuída à espécie humana, tal significa dizer que o homem é um ser em constante construção e desenvolvimento, que se transforma, deixando sempre rastros de sua trajetória, numa incessante acumulação de invenções culturais de todo gênero. O homem aparece, portanto, como um ente cujo ser não se completa nem se consuma jamais, mas que vai, ao longo da história, modificando-se pela experiência acumulada.

Finalmente, outra característica imputada à condição humana é a unidade existencial, pelo fato da individualidade humana, como um ser único e rigorosamente insubstituível no mundo. Até mesmo a ciência biológica contemporânea veio confirmar o fundamento natural dessa grande verdade _ a combinação de genes que cada um de nós recebe de nossos pais, em razão dos rearranjos complexos e aleatórios de cromossomos, é única, invariável e irreprodutível.

Esse conjunto de características diferenciais do ser humano demonstra, como assinalou Kant, que todo homem tem dignidade, e não um preço, como as coisas. O homem como espécie, e cada homem em sua individualidade, é propriamente único, não podendo ser trocado por coisa alguma. Todos os demais seres valeriam apenas como meios para a plena realização humana. É nisto que reside, em última análise, a dignidade humana.

Os grandes textos normativos, posteriores à 2ª Guerra Mundial, passaram a consagrar o princípio da dignidade da pessoa humana. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, já em seu art. 1.º afirma que: "todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos."

A Constituição da República Italiana, de 27 de dezembro de 1947, declara que: "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social" (art. 3º). A Constituição da República Federal Alemã, de 1949, proclama em seu art. 1º: "A dignidade do homem é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é dever de todos os Poderes do Estado". Analogamente, a Constituição Portuguesa de 1976 abre-se com a proclamação de que "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária". A Constituição Espanhola de 1978 considera que: "a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos alheios são o fundamento da ordem política e da paz social" (art. 10).

A nossa Constituição Federal de 1988, por sua vez, trata a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1.º, III).


III. QUEM SÃO OS SUJEITOS DOS DIREITOS HUMANOS?

Analisadas essas características que muitos doutrinadores consideram essenciais para caracterizar um ser como humano, e, portanto, sujeito de direitos, capaz de contrair direitos e obrigações no meio social em que vive, e diante dos parâmetros que se impõem, como fica a situação jurídica e moral dos seres infra-humanos (óvulos e embriões), que não são detentores das características supra-citadas, e suas repercussões em polêmicas como a do aborto? São, afinal, tais entes sujeitos de direitos?

Todos esses questionamentos, necessitam, inicialmente, de um posicionamento acerca de quem pode realmente ser sujeito de direitos, a fim de verificar até que ponto, de fato, tais sujeitos estão tendo seus direitos tutelados e garantidos, nos mais diversas setores.

Antes, porém, de iniciarmos a discussão, faz-se mister esclarecer que quando se questiona a possibilidade de um feto ou de um animal, por exemplo, serem sujeitos de direito, não se está atribuindo a eles o status de humano, mas, apenas discutindo sua capacidade de possuir direitos e contrair obrigações em um determinado meio social.

O termo pessoa, ordinariamente, é utilizado em seu sentido biológico, referindo-se apenas ao homem, membro da espécie Homo sapiens. Entretanto, em sua acepção mais rigorosa, o termo pessoa abrange todo ente capaz de figurar em uma relação jurídica, sendo passível de titularizar direitos e contrair obrigações.

No mundo antigo, em muitas sociedades, o escravo não era detentor de personalidade era tido como coisa, objeto de propriedade, à livre disposição do senhor. A sua morte por um terceiro era considerada um dano e não um homicídio. Já, outras vezes, animais bem como alguns seres inanimados recebiam o estatuto de pessoa. Conta-nos o professor RABENHORST (2001, p. 58): "Platão e Aristóteles relatam a prática existente no Direito helênico de condenação de pedras, pontas de lanças ou de outros objetos que tivessem causado a morte de um homem nos casos em que o autor do homicídio não pudesse ser identificado".

Já na Bíblia, em várias passagens do Antigo Testamento, pode-se verificar a imputação ao ser humano de ser detentor de direitos, bem como resta demonstrada a sua superioridade em relação aos outros seres:

A vida humana é santificada porque o homem foi feito à imagem de Deus (Gênesis 1:27).

Os seres humanos foram especificamente postos acima de todas as plantas e todos os animais (Gênesis 1:28-29). Podemos matar e comer animais, mas é expressamente proibido cometer homicídio (Gênesis 9:3-6).

De acordo com a Teoria da Vontade, influenciada pela filosofia Kantiana, e defendida principalmente por Windscheid e Savigny, é a partir da vontade ou querer que os direitos subjetivos nascem, modificam-se ou se extinguem. Dessa forma, diminui-se consideravelmente o número de sujeitos de direitos, uma vez que, de acordo com esta teoria, apenas os agentes morais _ os indivíduos autônomos_ seriam considerados sujeitos de direitos, excluindo-se, por exemplo, os animais, os embriões, os deficientes mentais e até mesmo as crianças de menoridade.

Essa teoria voluntarista do direito subjetivo, apesar de ter recebido muitas adesões no século XIX, foi fortemente criticada pela teoria do interesse, defendida principalmente pelo jurista alemão, Rudolf Jhering, para quem o interesse seria o elemento interno do direito subjetivo, resolvendo problemas de alguns entes, a exemplo do nascituro, que mesmo não sendo detentor de vontade, poderia ser titular de algum interesse.

Alguns filósofos (utilitaristas) vêm, inclusive, defendendo que os interesses não são prerrogativas exclusivamente humanas, mas existentes em todos os seres sencientes, conduzindo a uma igualdade formal entre os homens e os animais.

Entretanto, muitos problemas de ordem jurídica, ética e até mesmo prática seriam ocasionados caso se aceitasse essa atribuição de personalidade moral e jurídica aos animais. Por isso, alguns filósofos e juristas preferem enquadrá-los em uma categoria especial, intermediária entre os seres humanos e as coisas, o que lhes confere um certo valor diferenciado.

O nosso Código Civil de 2002, em seu artigo 1.º, confere a toda pessoa personalidade, significando esta a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações, ou seja, a possibilidade de ser sujeito de direitos. Diferente, portanto, da capacidade, que se refere à aptidão oriunda da personalidade para adquirir tais direitos e obrigações.

Em seu artigo 2.º, este mesmo Código prevê como condição para que um ente seja pessoa e adquira personalidade jurídica, que tenha nascido com vida, mesmo que por um segundo apenas. A lei assegura, porém, desde a concepção, os direitos do nascituro, tais como o direito à vida, à integridade física, a alimentos, dentre outros, não lhe atribuindo, entretanto, personalidade jurídica.

Muita discussão há entre os doutrinadores em geral para definirem qual é o momento exato em que se considera formada a pessoa. Algumas teorias se apresentam:

1)A teoria natalista

Adotada pela maioria dos doutrinadores brasileiros, que interpretam de forma literal o artigo 2º do nosso Código Civil, essa teoria estabelece que a personalidade civil do homem começa com o seu nascimento com vida, negando a possibilidade de concessão de personalidade jurídica ao nascituro.

O nascituro não é considerado pessoa, somente sendo detentor de uma expectativa de direito, desde a sua concepção, nos direitos que lhe forme juridicamente proveitosos. A lei apenas protegerá os direitos que possivelmente ele terá, em caso de nascer com vida, os quais são enumerados no ordenamento jurídico (posse, direito a herança, direito a adoção). O nascituro é tido como parte das vísceras da mãe, e somente o seu nascimento com vida lhe confere o status de pessoa.

2) Teoria da personalidade condicionada

Segundo esta teoria, o início da personalidade começa com a concepção, entretanto, mediante a condição suspensiva do nascimento com vida, ou seja, nascendo o feto com vida, a sua personalidade retroage à data de sua concepção. Durante a gestação, o nascituro tem a proteção da lei, que lhe garante certos direitos personalíssimos e patrimoniais sujeitos a uma condição suspensiva.

3) Teoria concepcionista

Os adeptos dessa teoria entendem que a personalidade do homem começa já a partir da concepção, sendo, desde tal momento, o nascituro considerado pessoa. Argumentando, inclusive, que o legislador brasileiro incluiu o crime de aborto no título referente aos "Crimes contra a pessoa".

Entretanto, a maioria dos médicos e biólogos contemporâneos entendem a vida como um processo evolutivo contínuo, que só se completa com a nidação, que normalmente ocorre entre o os 14º e 17º dias da fertilização.

Não é, entretanto, com a simples constatação de quando realmente se considera iniciada a vida humana, que serão resolvidos os inúmeros questionamentos que vêm surgindo a respeito do aborto.

Segundo o professor RABENHORST (2001, p.82):

"o aborto é um problema complexo exatamente por não se reduzir a uma discussão biológica ou moral, mas envolver igualmente questões jurídicas (colisão ou conflito de direitos), políticas (populacionais ou demográficas) e sociais (desigualdades sociais, acesso aos meios de contracepção, etc.)."

Complexa é, sem duvida, a questão do aborto, uma vez que, além de depender de vários aspectos sociais, culturais, morais, políticos e econômicos, envolve interesses colidentes de diferentes seres, independentemente de ser o feto/embrião considerado, ou não, como pessoa.

O nosso Código Penal pune o aborto como um crime contra a vida, admitindo-o apenas em dois taxativos casos. Art. 128, CP:

"I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;" (aborto terapêutico)

"II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu responsável legal." (aborto humanitário ou sentimental).

Em ambos os casos citados (aborto terapêutico e aborto humanitário ou sentimental) a própria lei é quem admite o abortamento, resguardando a vida e a dignidade da gestante em detrimento do feto. Cabe, porém, ao seu intérprete analisar a forma como essas permissões devem ser aplicadas, conforme o caso concreto.

No caso, entretanto, do embrião anencéfalo, qual interesse deveria preponderar: o direito indisponível e inalienável à vida, ou o direito a uma vida digna, que o feto certamente não chegaria a alcançar? Não há, ainda, uma resposta consistente sobre a permissão, ou não, do aborto eugênico (do feto inviável). O número de casos de aborto por esse motivo no Brasil cresce assustadoramente, e a sociedade vem exigindo do Poder Judiciário uma resposta definitiva.

Nesse caso, não se pode nem se deve confundir questões morais com questões jurídicas ou políticas. Ou seja, o fato de certas modalidades de aborto serem admitidas em nosso Ordenamento jurídico não significa necessariamente serem elas morais, assim como, da mesma forma, não significa que as modalidades proibidas sejam imorais. Deve-se ter em mente que interesses outros (sociais, políticos, econômicos e demográficos) dos Estados estão envolvidos até mais do que questões de ordem moral.

Filosoficamente, sob o ponto de vista de qualquer das teorias da personalidade (da vontade ou do interesse) que se adote, difícil é considerar os direitos do feto superiores ao da gestante. Mas, de qualquer maneira, mister se faz a análise de cada caso, para não acabar cometendo injustiças.


IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pôde observar, com o surgimento das inovações tecnológicas, da bioética, do desenvolvimento das nações, da sustentabilidade econômica, da preocupação com direito à vida das gerações futuras, da preocupação com a natureza, da manipulação genética, da biotecnologia, da bioengenharia e dos direitos advindos da realidade virtual, novos questionamentos se impuseram, urgindo por respostas dos estudiosos e aplicadores do direito.

Foram analisadas questões polêmicas relacionadas com a tentativa de se descobrir quem é o homem dos direitos humanos. Para tanto, analisamos a natureza dos direitos humanos e seu fundamento, diretamente relacionado com o princípio da dignidade humana, destacando sempre a característica da individualidade humana, bem como verificando como seres tão diferentes podem ser membros de mesma comunidade e titulares dos mesmos direitos.

De qualquer maneira, independentemente de qual corrente ou teoria se adote, é indispensável compreender que o homem dos direitos humanos é cada um de nós, seres humanos. Importante, pois, não só compreender assim, mas principalmente agir para garantir a todos a mesma dignidade, sem qualquer tipo de discriminação. Mesmo em relação àqueles entes que não são vistos por alguns como humanos, a exemplo do feto/embrião, devem ser tratados com o máximo de respeito, pois caso não se enquadrem na categoria de humanos, serão sujeitos de direitos, e, portanto, dotados de dignidade e de um valor especial.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria geral dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996.

BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2000.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.

CARVALHO, Júlio Marino de. Os direitos humanos no tempo e no espaço. Brasília, DF: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1998.

FIUZA, Ricardo, et.al. Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.

RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001.

Da internet:

http://www.dhnet.org.br/oficinas/dhparaiba/1/antecedentes.html

(acesso em:22/10/04)

MENEZES. Glauco Cidrack do Vale. Aborto eugênico: alguns aspectos jurídicos.

https://jus.com.br/artigos/5622. Acesso em 31/10/04.

Nuno Serras Pereira. Aborto e direitos humanos. http://aborto.no.sapo.pt/direitoshumanos.htm. Acesso em30/10/2004.


Notas

01 Ressalte-se que, desde as suas origens, a idéia de direito natural não está relacionada com a igualdade. Como se pode verificar, Aristóteles justifica a escravidão como um direito natural, servindo os escravos como instrumentos para realizar o bem comum da cidade.

Sobre a autora
Myllena F. C. R. Alencar

advogada em João Pessoa (PB), mestranda em Direito Econômico pela UFPB, professora de graduação pela UFPB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCAR, Myllena F. C. R.. Quem são os sujeitos dos direitos humanos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1110, 16 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8636. Acesso em: 19 dez. 2024.

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