O trabalho tem importância indiscutível para o homem, como garantia de sua sobrevivência. O salário é elemento indispensável à realização desse fim e corresponde ao objetivo nuclear do contrato individual de emprego.
Traduzindo bem a importância das parcelas salariais, Maurício Godinho Delgado [01] afirma que elas "(...) têm se constituído em tema central das lutas trabalhistas nos últimos dois séculos, magnetizando parte expressiva do potencial de articulação e organização dos trabalhadores no contexto empregatício".
Sua natureza essencialmente alimentar se direciona tanto à pessoa do obreiro como aos seus dependentes. Tem recebido particular tratamento do ramo especializado do Direito, que busca mecanismos para preservar-lhe a função. Foi erigido em seu entorno um sistema de salvagurada destinado a assegurar sua integridade e intangibilidade, considerando seus aspectos imediato (preservação da dignidade humana, com a satisfação de necessidades essenciais) e mediato (indutor social e econômico).
Na avaliação de José Augusto Rodrigues Pinto [02], "o sistema é tão compacto que, embora vise, em última análise, à proteção do empregado, em sua condição de economicamente fraco, chega a proteger o salário contra atos imprevidentes do próprio empregado".
Esclarecendo sobre a imprevidência do empregado, aquele ilustre membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho [03] sintetiza oportuna lição de Orlando Gomes e Élson Gottschalk, para quem ela
"(...) se manifesta nos gastos excedentes da previsão orçamentária que o valor do salário permite, geralmente representados pela aquisição de supérfluos ou o exagero com as despesas de lazer.(...) Em suma, a proteção se faz sentir sobre o salário quando as formas contratuais levem o empregado a despojar-se, pura e simplesmente, em favor de outrem, do crédito salarial, frustrando-lhe a função alimentar e evidenciando a imprevidência de seu beneficiário".
O direito positivo brasileiro, entretanto, desconsiderou a dogmática protetiva, ao ser alterada a época para a quitação da remuneração de férias. O Decreto-Lei nº 1.535/77 modificou todo o respectivo capítulo da CLT. Introduziu um cronograma de pagamento diferenciado, rompendo com a periodicidade estipulada pela própria Consolidação: o trintídio (art. 459, caput). Essa inovação tem rendido sérias conseqüências à vida financeira e social do empregado, não abordadas pela doutrina juslaboralista.
A vivência por dez longos anos como operador do Direito Material do Trabalho, realizando exame presencial das relações de emprego, possibilitou que o autor consolidasse uma visão mais pragmática sobre a aplicação do feixe de normas protetivas. Acredita-se que essas modestas credencias possam autorizar a audácia da abordagem da matéria deste breve estudo.
O inconformismo em questão está direcionado para os efeitos da combinação entre as disposições dos artigos 145 e 142 do estatuto laboral. Resulta das mesmas que as verbas destinadas ao sustento da célula familiar devem ser antecipadas ao empregado até dois dias antes do período de fruição das férias.
Com tal insensatez pretendeu o legislador ordinário que o empregado promovesse um inimaginável exercício de ginástica em seu orçamento doméstico e lançasse mão de um numerário já comprometido com despesas essenciais para também patrocinar atividades de lazer.
Não bastasse isso, lhe impôs um prolongado jejum financeiro, de pelo menos dois meses, até o próximo aporte de recursos. Segundo o cronograma legal, findo o descanso anual o próximo pagamento somente será devido após o término do mês trabalhado seguinte.
Onze anos depois essa situação veio a ser apenas minorada, com a promulgação da nova Carta Política. Mais sensível à situação, o constituinte originário criou um plus para o poder aquisitivo do empregado. Visou proporcionar-lhe disponibilidade financeira para o atendimento das despesas acarretadas pelo necessário afastamento do trabalho. Em compensação, foi mantido o critério de adiantamento da parte da remuneração voltada ao atendimento das despesas alimentícias.
Percebendo quase simultaneamente o terço constitucional e a remuneração de dois períodos (mês de férias e seu antecessor), muitos assalariados têm a falsa impressão de ter dobrado sua capacidade financeira.
Cria-se então um campo fértil para que se manifeste o fenômeno da imprevidência do empregado, já definido pelo abalizado magistério de Orlando Gomes apud Rodrigues Pinto [04]. O obreiro passa a realizar gastos excessivos que comprometem demasiadamente o valor do numerário auferido. Deixa de reservar parte dos recursos para que pudesse prover o próprio sustento e o dos seus durante os sessenta dias de abstinência monetária que terá de enfrentar.
Essa dificuldade para gerenciar o orçamento doméstico, com adequação do valor das despesas ao das receitas, é comum a muitos brasileiros. Corroboram com tal constatação os elevados índices de inadimplência registrados pelos serviços de proteção ao crédito, amplamente divulgados pela mídia. Fatores como compras mal planejadas, falta do hábito de poupar, baixo poder aquisitivo e inacessibilidade a serviços bancários de custódia de dinheiro contribuem para a formação desse quadro.
Se o salário, percebido na regularidade habitual, por vezes já não é suficiente para enfrentar todo o mês, o transtorno é maior ainda quando sua periodicidade é alterada, pelas mencionadas razões.
O empregado se coloca em situação financeira vulnerável e quando os recursos das férias minguarem, necessitará buscar caminhos para assegurar sua sobrevivência. O endividamento é um deles. Poderá ter sérios reflexos na desestruturação do núcleo familiar e na vida social.
Uma alternativa não descartável é que passe a ofertar sua força de trabalho ao empregador, suprimindo o período de descanso restante. Esse precoce retorno ao labor configura uma conversão em pecúnia que exorbita o permisivo legal (CLT, art. 143). Sepulta o sentido do ócio remunerado, que é medida de higiene física e mental altamente necessária à preservação da saúde pública.
Convém frisar que não se trata de tentar transformar as férias no instituto da licença remunerada. Esta se distingue inteiramente daquela, pela ausência da gratificação especial e de prévio aviso, que constituem garantias para o usufruto de um afastamento planejado. A licença remunerada, inclusive, amplia a desigualdade contratual laboral, pois é ato potestativo do tomador de serviços, que pode dar ensejo à perda do direito ao descanso anual (CLT, art. 133, II). Eis uma enorme fenda aberta pelo legislador e que constitui ameaça permanente a este último instituto.
Enfrentar a questão central suscitada neste ensaio é tarefa que não se vincula, necessariamente, ao demorado processo legislativo. Não raro levam anos para se legitimar as aspirações da sociedade e, conforme aqui se verificou, por vezes são desconsiderados fatos sociais e princípios jurídicos nos quais a norma protetiva teria que se inspirar.
A negociação coletiva, relevante geratriz de fontes do Direito do Trabalho, surge como alternativa para alçar o empregado a uma condição mais benéfica, em perfeita harmonia com o ordenamento constitucional (CF, art. 7º, caput, parte final).
O pagamento antecipado de parcelas como o terço constitucional, o abono pecuniário e o adiantamento da gratificação natalina (direito raríssimamente exercido) é plenamente justificado, para que estejam disponíveis a tempo de custear as férias. Por serem verbas estabelecidas em patamares mínimos podem também serem majoradas via ajuste coletivo ou individual, o que ampliaria as possibilidades de lazer.
Quanto ao salário referente ao período em que ocorrem as férias, é necessário que seja desvencilhado daquela remuneração extra, para ser percebido em sua época habitual (CLT, art. 459, caput), a fim de se voltar aos compromissos cíclicos.
Trata-se de medida que se integra à rede de proteção do salário, para proporcionar mais sossego à vida do empregado e, por extensão, melhor equilibro às mais diversas relações sociais e econômicas que se estabelecem na comunidade a partir dos frutos auferidos no liame empregatício.
NOTAS
01
Curso de direito do trabalho. – 3 ed. – São Paulo: Ltr, 2004, p. 76302
Curso de direito do trabalho 4 ed. - São Paulo : LTr, 2000, pág. 28903
Ob. Cit., págs. 294/29504
Ob cit. 294/295BIBLIOGRAFIA
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