5. Autonomia da vontade do paciente e a morte digna
As leis já aprovadas que versam sobre o direito do paciente à uma morte digna representam ato em prol da dignidade e de respeito à autonomia de vontade do paciente, de sorte a legitimar a ação do médico em proporcionar uma morte digna ao seu paciente e em respeitar sua autonomia sobre o próprio corpo. Dessa forma, isso significa cuidar da integridade do ser humano, respeitando sua vontade e sua natureza.
Sobre a autonomia da vontade discorre Ronald Dworkin estabelecendo que a autonomia de qualquer indivíduo está diretamente relacionada com a sua integridade, independentemente de suas escolhas, valores ou percepções que possam ter de si mesmas. Defendendo a doutrina da “autonomia precedente”, ele conclui, que “o direito de uma pessoa competente à autonomia exige que suas decisões passadas sobre como devem tratá-la em caso de demência sejam respeitadas mesmo quando contrariem os desejos que venha a manifestar em uma fase posterior de sua vida”. Quer dizer, deve ser respeitado o modo pelo qual o individuo se desenvolveu, cultuou sua personalidade, além dos valores éticos, culturais e religiosos acumulados durante a sua própria vida.[23]
No contexto da morte com intervenção, deve prevalecer a idéia de dignidade como autonomia. Além do fundamento constitucional, que dá mais valor à liberdade individual do que às metas coletivas, ela se apóia, também, em um fundamento filosófico mais elevado: o reconhecimento do indivíduo como um ser moral, capaz de fazer escolhas e assumir responsabilidades por elas.[24]
É exatamente em face do respeito à autonomia da vontade do paciente que é possível admitir, por exemplo, que a vida de uma pessoa acometida de uma doença terminal, não seja prolongada à custa de tratamento que imponha um sofrimento desproporcional aos benefícios esperado, impondo-se o prolongamento da vida sem nenhuma qualidade.
Assim, as leis normatizando a forma pela qual deva ser respeitado o consentimento livre e informado do paciente, consistem, fundamentalmente, em respeitar a vontade do paciente, atual ou antecipada, sobre como deseja ser atendido no final de sua vida. Para isso é imprescindível que o ordenamento jurídico garanta ao paciente o direito de aceitar ou rejeitar determinados tratamento e eleger outros, cujas decisões podem até incluir a forma como se deseja morrer.
6. Conclusões
De tudo quanto foi exposto, conclui-se que fixar diretrizes para o tratamento de doentes terminais respeitando-se sua vontade, ou de seus familiares mais próximos, quanto aos métodos artificiais de sobrevida, é uma imperiosa necessidade decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana. Isso porque toda pessoa é digna só por existir, mas essa dignidade, que antecede o seu próprio nascimento, acompanha-a por toda a vida e deve ser garantida, inclusive, em seu leito de morte.
Não se trata de jurisdicizar a eutanásia em suas várias formas, nem muito menos de normatizar o suicídio assistido, pois formas diferentes. Também não se trata de permitir a morte, mas de garantir a autonomia do paciente frente às opções de tratamento oferecidos pelo médico em situações em que o tratamento apenas irá prolongar o sofrimento do enfermo e de seus familiares, nos casos de estado terminal ou incurável de saúde.
Assim, a iniciativa e aprovação de leis que regulem a “morte digna” deve ser aplaudida como uma forma de permitir que as pessoas, frente a situações irreversíveis de saúde, possam optar por escolher uma forma digna de viver a própria morte.
7. Bibliografia
ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona, 2ª. ed. Madri: Editorial Tecnos, 2012.
BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. Dignidade e autonomia individual no final da vida. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2012-jul-11/morte-ela-dignidade-autonomia-individual-final-vida>
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
FARIA, Alessandra Gomes de; CABRERA, Heidy de Avila. Eutanásia: Direito à morte digna. In AZEVEDO, Álvaro Villaça e LIGIERA, Wilson Ricardo (Coord). Direitos do paciente. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 488-507.
FRANCO MONTORO, André. Cultura dos direitos humanos in Direitos Humanos: legislação e jurisprudência (Série Estudos, n.º 12), Volume I. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1999.
GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Daño moral por muerte. Buenos Aires: Astrea, 2010.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 16ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
MELO, Nehemias Domingos de. Lições de Direito Civil – teoria geral, 4ª. ed. São Paulo: Rumo Legal, 2018.
MOLD, Cristian Fetter. Apontamentos sobre a lei andaluza de direitos e garantias da dignidade da pessoa durante o processo de morte. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=614>, acesso em 14/10/2012.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 2ª. ed., São Paulo: Atlas, 2002.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3ª. ed. São Paulo: Max Limonard, 1997.
_____. Temas de direitos humanos, 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Manual de filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2004.
SENISE LISBOA, Roberto. Manual de direito civil – teoria geral do direito civil, 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v.1.
TINANT, Eduardo Luis. Reflexiones sobre la ley de muerte digna. Buenos Aires: Sup. Esp. Identidad de gênero, 2012 (mayo), 28/05/2012, 141.
_____. Bioética jurídica, dignidade de la persona y derechos humanos, 2ª. ed. Buenos Aires: Editorial Dunken, 2010
Notas
[1] MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil, p. 62.
[2] MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional, p. 61.
[3] GONZALEZ, Matilde Zavala de. Daño moral por muerte, p.3.
[4] FARIAS, Alessandra Gomes e CABRERA, Heidy de Avila. Eutanásia: Direito à morte digna in Direitos do paciente, p. 493.
[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 9.
[6] COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.67.
[7] RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Manual de filosofia do direito, p. 361.
[8] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 129.
[9] Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948
[10] Nesse sentido, Roberto Senise Lisboa, Manual de Direito Civil, p. 73
[11] PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos, p. 48.
[12] FRANCO MONTORO, André. Cultura dos direitos humanos, p. 28.
[13] MORAIS, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada, p. 16.
[14] ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona, p. 72.
[15] Apontamentos sobre a lei andaluza de direitos e garantias da dignidade da pessoa durante o processo de morte.IBDFAM, Belo Horizonte, 31 maio 2010, p. 1. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=614>
[16] Bioética y dignidad de la persona, p. 155.
[17] Além da mencionada lei aprovada na Argentina, outros países já adotavam a mesma media, dentre eles: Holanda, Bélgica e Luxemburgo foram os primeiros países a decidir regulamentar a morte digna. Três estados dos EUA a permitem, assim como a Suíça.
[18] Mais de duas décadas após a legalização da prática, em 2018 o Governo Colombiano, por ordem do Tribunal Constitucional, preencheu uma lacuna: adotou normas regulamentares para a morte digna nos casos envolvendo menores de idade.
[19] Cf. Eduardo Luis Tinant. Reflexiones sobre la lei de muerte digna, p. 141.
[20] TINANT, Eduardo Luis, Reflexiones sobre la lei de muerte digna, p. 141
[21] https://www.terra.com.br/noticias/brasil/pacientes-poderao-decidir-por-morte-digna-em-caso-de-situacao-terminal,aa51dc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
[22] Bioética jurídica, dignidade de la persona y derechos humanos , p. 108.
[23] DWORKIN, Ronald.Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. 325.
[24] BARROSO, Luís Roberto e MARTEL, Letícia de Campos Velho. Dignidade e autonomia individual no final da vida. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2012-jul-11/morte-ela-dignidade-autonomia-individual-final-vida>