"HABEAS CORPUS nº. 978.305.3/0-00 Relator, Desembargador Borges Pereira - Voto nº. 5714: (...)
Com efeito, toda afronta aos Direitos Individuais dos cidadãos brasileiros, independentemente de raça, credo, condição financeira etc, desde que cause constrangimento ilegal, é, e sempre deverá ser passível de "habeas corpus". É de se observar, inclusive, que a impetrante questiona não só a ilegalidade RDD, como também pleiteia a transferência do detento para outro presídio da rede Estatal. 2. No que pertine ao mérito do pedido, razão assiste à impetrante. É de se observar inicialmente não se poder deixar de considerar o grave momento vivido pelas instituições públicas, fruto de dezenas de anos de descaso para com as causas sociais, originando o nascimento de verdadeiro Estado Paralelo, que a medida ora questionada visa enfrentar. (...) Trata-se, no entanto, de medida inconstitucional, como se sustenta a seguir:
O chamado RDD (Regime disciplinar diferenciado), é uma aberração jurídica que demonstra à saciedade como o legislador ordinário, no afã de tentar equacionar o problema do crime organizado, deixou de contemplar os mais simples princípios constitucionais em vigor. Já no seu nascimento, a medida ofende mortalmente a Constituição Federal, desde que a resolução SAP nº 026/01, que cria o regime disciplinar diferenciado, é ato de secretário de Estado, membro do Poder Executivo, a quem não cabe legislar sobre matéria penal, nem tampouco penitenciária, segundo a Constituição Federal (arts. 22, I e 24, I). Assim, a inexistência de procedimento legislativo e da necessária edição de lei federal, é que deveria bastar para demonstrar a inviabilidade de sua efetivação, configurando evidente constrangimento ilegal. Destarte, não cabe a ninguém, nem mesmo ao juiz da execução, determinar ou legitimar regressão (ou transferência) a regime penitenciário inexistente em lei.
Como muito bem disserta Carmem Silva de Moraes Barros, Procuradora do Estado em São Paulo, "in" http://www.processocriminalpslf.com.br/rdd.htm, "ao criar o regime disciplinar diferenciado, a resolução dá vida a uma pena desumana e atentatória aos direitos e liberdades fundamentais: isolamento por 180 dias, na primeira inclusão e 360, nas demais; banho de sol por, ´no mínimo´, uma hora por dia; visita semanal de duas horas, sem algemas... (arts. 4º e 5º, II, IV e V da resolução). Observe-se que essas são regras previstas "para assegurar os direitos do preso" durante a permanência no RDD, conforme o caput do art. 5º da resolução. Assim é que sob o pretexto de combater o crime organizado instituiu-se método de aniquilamento de personalidades. Mas não é só. A resolução SAP n. 026/01 autoriza a transferência para o RDD a critério exclusivo da autoridade administrativa. Alijada a autoridade judicial, a autoridade administrativa se vê, em razão dos próprios termos da resolução, desobrigada de respeitar a Lei de Execução Penal (que não consta tenha sido revogada pela resolução). A resolução não exige prática de falta grave para transferência para o RDD e exatamente porque estabelece que esse regime de cumprimento de pena é aplicável "aos líderes e integrantes de facções criminosas e aos presos cujo comportamento exija tratamento específico" (art. 1º), abre espaço para qualquer tipo de arbítrio por parte da autoridade responsável pela custódia do preso. Lembra, assim, os velhos porões, para os quais é possível transferir presos, se o critério – exclusivamente administrativo – indicar tratar-se de pessoa cujo comportamento "exija tratamento específico". Um tanto quanto vago, mas muito apropriado para os fins a que se propõe. Diz a resolução: "os objetivos de reintegração do preso ao sistema comum devem ser alcançados pelo equilíbrio entre a disciplina severa e as oportunidades de aperfeiçoamento da conduta carcerária". Muito embora – e isso ao que parece ainda não se contesta – o processo de execução seja jurisdicionalizado, a concessão que a resolução faz ao juízo da execução é a comunicação da inclusão e da exclusão no RDD, em 48 horas (art. 8º). Não trata da óbvia necessidade de que a autoridade administrativa comunique ao juízo qual o fato imputado ao preso que está fundamentando a transferência para o RDD".
Mas a citada jurista não pára aí: "Ignora-se, sem qualquer cerimônia, a LEP que, no que tange, tanto à regressão de regime de cumprimento da pena quanto às sanções, é absolutamente clara e estabelece no art. 58 que o isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder 30 dias; no art. 60 que no caso de falta disciplinar a autoridade administrativa poderá decretar o isolamento preventivo do faltoso pelo prazo máximo de dez dias e no parágrafo único do art. 58, determina o dever que tem a autoridade administrativa de comunicar o isolamento ao juiz da execução. E assim é porque dez dias são o quanto basta para realizar-se o procedimento administrativo e comunicar-se ao juiz da execução para que, sendo o caso, determine a oitiva do preso ou obste a aplicação da sanção, quando configurados estiverem ilegalidades ou abuso de poder. Continua a Lei de Execução Penal, atenta à posição de garantidor que tem o juiz da execução, dispondo no art. 47 que o poder disciplinar, na execução da pena privativa de liberdade, caberá à autoridade administrativa e no parágrafo único do art. 48 determinando – a obrigatoriedade de representação, ao juiz da execução, pela autoridade administrativa, nos casos de prática de falta grave. A aplicação de penalidade disciplinar ao executado, pelo cometimento de falta grave, obriga, portanto, a autoridade administrativa a comunicar, representando, ao juiz da execução (art. 48, parágrafo único c/c art. 66, III, letras b e c da LEP). Assim é, porque ao poder judiciário cabe fazer o controle externo dos atos da administração, faz parte de seu dever de zelar pelos direitos individuais do sentenciado e pelo correto cumprimento da pena. Portanto, ainda que se admita a possibilidade de inclusão no RDD pela prática de fato que não seja tipificado pela LEP como falta grave, deve a autoridade administrativa descrevê-lo em alguma forma de "procedimento administrativo" e, por óbvio que pareça, esse "procedimento" deve ser enviado a juízo, pois o ato administrativo (incluída a motivação) que determina a transferência para o RDD, também está sujeito a controle de legalidade e da tipicidade pela autoridade judicial, até porque - não é demais repetir - o processo de execução penal, ainda é, jurisdicionalizado. A resolução, no entanto, permite a transferência para o RDD sem qualquer participação da autoridade judicial e limita-se a estabelecer que a remoção do preso ao RDD pode ser solicitada pelo diretor técnico de qualquer unidade, em petição fundamentada, ao coordenador regional das unidades prisionais que, se estiver de acordo, encaminhará o pedido ao secretário adjunto, para decisão final (art. 2º). Ah! Não nos esqueçamos, a resolução concede ao preso, no intuito de assegurar seus direitos, o conhecimento dos motivos da inclusão no RDD (art. 5º, I). No entanto, se faz necessário lembrar, que por outro ato, proibiu-se o contato do preso com seu advogado pelos dez dias posteriores à inclusão no regime fechadíssimo. É inominável!"
E arremata: "Não é aceitável pois, a conivência de magistrados, fiscais da lei, advogados, enfim, operadores do direito com tamanha barbárie. Não se pode admitir que estes, diante de tanta ilegalidade, quer por ação quer por omissão, se convertam em aparato legitimador da atuação abusiva da administração. O RDD é um desrespeito à Constituição, à lei, aos cidadãos deste país, enfim, à nossa inteligência."
COMENTÁRIOS
Recentemente foi promulgada uma lei que alterou o Código de Processo Penal e, de quebra, modificando também a Lei de Execução Penal, instituiu entre nós o chamado Regime Disciplinar Diferenciado – RDD. Como outras tantas leis no Brasil, esta também foi ditada no afã de satisfazer a opinião pública e como uma resposta à violência urbana (ao menos no que concerne à alteração produzida na Lei de Execução Penal) [1].
Mais uma vez, utiliza-se de um meio absolutamente ineficaz para combater a criminalidade, cujas raízes, sabemos todos, está na desigualdade social que ainda reina no Brasil (apesar da esperança que ainda também nos resta). Efetivamente, nos últimos anos temos visto várias leis criminais serem apresentadas como um bálsamo para a questão da violência urbana e da segurança pública, muitas delas com vícios formais graves e, principalmente, outros de natureza substancial, inclusive com mácula escancarada à Constituição Federal [2].
Como afirma Paulo César Busato, "é necessário centrar a atenção no fato de que legislações de matizes como os da Lei 10.792/03 correspondem por um lado a uma Política Criminal expansionista, simbólica e equivocada e, por outro, a um esquema dogmático pouco preocupado com a preservação dos direitos e garantias fundamentais do homem. Por isso, há a necessidade de cuidar-se com relação aos perigos que vêm tanto de um quanto de outro." [3]
Efetivamente, há entre nós um mau vezo em se interpretar a Constituição à luz da legislação infraconstitucional (!!!), ao invés do contrário, ou seja, procurar-se uma interpretação das leis ordinárias à luz da Constituição Federal. O resultado, por óbvio, é desastroso, apesar de agradar a alguns (ora por ignorância, ora por conveniência). Pois bem: temos agora a Lei nº. 10.792/2003 que, a par de trazer interessantes modificações na disciplina do interrogatório (como a exigência de defensor para o interrogando e a possibilidade de participação efetiva das partes), alterou a Lei de Execução Penal que, aliás, está fazendo aniversário de vinte anos (sem motivos, aliás, para comemorações).
Pela norma, estabelece-se que a "prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; recolhimento em cela individual; visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas e direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol." Também por força da referida lei, o RDD "poderá abrigar presos provisórios (leia-se: aqueles ainda sem uma condenação definitiva e, portanto, presumivelmente não culpados, segundo a nossa Carta Magna) ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade", bem como "o preso provisório (idem) ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando." O que seriam mesmo fundadas suspeitas? Afinal, a presunção constitucional não é a de não-culpabilidade? E o que seria mesmo uma organização criminosa? Como se sabe, não há no Brasil uma lei que traga tal definição, ferindo-se, destarte, o princípio da legalidade, também de índole constitucional.
A inclusão no RDD será determinada por "prévio e fundamentado despacho do juiz competente", a partir de "requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa", sendo imprescindível a "manifestação do Ministério Público e da defesa", devendo ser "prolatada no prazo máximo de quinze dias." Pergunta-se: quem seria esta outra autoridade administrativa? O Secretário de Estado da Justiça? O Governador do Estado? Estariam eles então, agora, a figurar como partes ou sujeitos do procedimento jurisdicional de execução penal?
Cotejando-se, portanto, o texto legal e a Constituição Federal, concluímos com absoluta tranqüilidade ser tais dispositivos flagrantemente inconstitucionais, pois no Brasil não poderão ser instituídas penas cruéis (art. 5º., XLVII, "e", CF/88), assegurando-se aos presos (sem qualquer distinção, frise-se) o respeito à integridade física e moral (art. 5º., XLIX) e garantindo-se, ainda, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (art. 5º., III).
Será que manter um homem solitariamente em uma cela durante 360 ou 720 dias, ou mesmo por até um sexto da pena (não esqueçamos que temos crimes com pena máxima de até 30 anos), coaduna-se com aqueles dispositivos constitucionais? Ora, se o nosso atual sistema carcerário, absolutamente degradante tal como hoje está concebido, já não permite a ressocialização do condenado, imagine-se o submetendo a estas condições. É a consagração, por lei, do regime da total e inexorável desesperança. Como afirma José Antonio Paganella Boschi, "a potestade punitiva encontra limites na aspiração ética do Direito (...), inclusive quanto ao processo destinado à imposição, quantificação e posterior execução das penas, matéria do CPP e da LEP." [4]
O saudoso Norberto Bobbio afirmava que os "direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais." [5] Por outro lado, continua o filósofo italiano, "(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas." [6]
Mas, não é só.
Entendemos que o RDD também afronta a Constituição, agora o seu art. 5º., XLVI, que trata da individualização da pena. Não se olvide que a individualização da pena engloba, não somente a aplicação da pena propriamente dita, mas também a sua posterior execução, com a garantia, por exemplo, da progressão de regime. Observa-se que o art. 59 do Código Penal, que estabelece as balizas para a aplicação da pena, prevê expressamente que o Juiz sentenciante deve prescrever "o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade", o que indica induvidosamente que o regime de cumprimento da pena é parte integrante do conceito "individualização da pena". Assim, não podemos admitir que, a priori, alguém seja condenado a cumprir a sua pena em regime integralmente fechado, vedando-se absolutamente qualquer possibilidade de progressão, ferindo, inclusive, as apontadas finalidades da pena: a prevenção e a repressão.
Como ensina Luiz Luisi, "o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo." (grifo nosso). Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: "Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução."(...) "Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execução." (...) "Esta fase da individualização da pena tem sido chamada individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais."(...) "Relevante, todavia no tratamento penitenciário em que consiste a individualização da sanção penal são os objetivos que com ela se pretendem alcançar. Diferente será este tratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e sua função intimidatória, se por como finalidade principal da sanção penal o seu aspecto de ressocialização. E, vice-versa."
E conclui o autor: "De outro lado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualização judiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinqüente tem importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de execução." [7] (grifos nossos).
Segundo o profesor peruano, Luis Miguel Reyna Alfaro, "la individualización judicial de la pena a imponer, es uno de los más importantes aspectos que deben ser establecidos por los tribunales al momento de expedir sentencia. Sostienen por ello con absoluta razón ZAFFARONI/ ALAGIA/ SLOKAR que la individualización judicial de la pena debe servir para ´contener la irracionalidad del ejercicio del poder punitivo`. Este proceso de individualización judicial de la pena es ciertamente un proceso distinto y posterior al de determinación legal de la misma que es realizado por el legislador al momento de establecer normativamente la consecuencia jurídica. Esta distinción es importante porque nos permite marcar la diferencia –a la que recurriremos posteriormente- entre ´pena abstracta` y ´pena concreta`. La primera está relacionada a la pena determinada legalmente por el legislador en el proceso de criminalización primaria, mientras la segunda se refiere a la pena ya individualizada por el operador de justicia penal, dentro del proceso de criminalización secundaria. Adicionalmente, ésta distinción ´pena abstracta- pena concreta` sirve para comprender que el proceso de individualización judicial de la pena es un mecanismo secuencial que pasa, en primer lugar, por establecer cuál es la pena establecida por el legislador para, en segundo lugar y sobre esos márgenes, establecer la aplicable al caso concreto y la forma en que la misma será impuesta. (...) Como se indicó anteriormente, el proceso de individualización judicial de la pena debe necesariamente encontrarse vinculado a los fines de la pena, lo que obliga a introducirnos al inacabable debate sobre el fin de la pena." [8] (grifo nosso).
Assim, não restando dúvidas de que a possibilidade de progressão de regime é parte integrante da individualização da pena, afigura-se-nos também inconstitucional o RDD, desde que constitui elemento impeditivo daquela garantia.
Comentando o assunto, o mestre Tucci afirma que o RDD, "mais do que um retrocesso, apresenta-se como autêntica negação dos fins objetivados na execução penal, constituindo um autêntico bis in idem, uma vez tida a imposição da pena como ajustada à natureza do crime praticado – considerados todos os seus elementos constitutivos e os respectivos motivos, circunstâncias e conseqüências -, e à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social e à personalidade do agente." [9]
Esqueceu-se-se novamente que o modelo clássico de Justiça Penal, fundado na crença de que a pena privativa de liberdade seria suficiente para, por si só, resolver a questão da violência, vem cedendo espaço para um novo modelo penal, este baseado na idéia da prisão como extrema ratio e que só se justificaria para casos de efetiva gravidade. Em todo o mundo, passa-se gradativamente de uma política paleorrepressiva ou de hard control, de cunho eminentemente simbólico (consubstanciada em uma série de leis incriminadoras, muitas das quais eivadas com vícios de inconstitucionalidade, aumentando desmesurada e desproporcionalmente a duração das penas, inviabilizando direitos e garantias fundamentais do homem, tipificando desnecessariamente novas condutas, etc.) para uma tendência despenalizadora.
Como afirma Jose Luis de la Cuesta, "o direito penal, por intervir de uma maneira legítima, deve respeitar o princípio de humanidade. Esse princípio exige, evidentemente, que se evitem as penas cruéis, desumanas e degradantes (dentre as quais pode–se contar a pena de morte), mas não se satisfaz somente com isso. Obriga, igualmente, na intervenção penal, a conceber penas que, respeitando a pessoa humana, sempre capaz de se modificar, atendam e promovam a sua ressocialização: oferecendo (jamais impondo) ao condenado meios de reeducação e de reinserção." (grifo nosso, na tradução de Consuelo Rauen) [10].
Hoje, ainda que o nosso sistema penal privilegie induvidosamente o encarceramento (acreditando, ainda, na função dissuasória da prisão), o certo é que a tendência mundial é no sentido de alternativizar este modelo clássico, pois a pena de prisão em todo o mundo passa por uma crise sem precedentes. A idéia disseminada a partir do século XIX segundo a qual a prisão seria a principal resposta penológica na prevenção e repressão ao crime perdeu fôlego, predominando atualmente "uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional" (Cezar Roberto Bittencourt).
Urge, pois, que encontremos uma solução intermediária que não privilegie o cárcere (muito menos a desumanidade no cumprimento da pena), nem espalhe a idéia da impunidade. Parece-nos que esta solução se encontra exatamente nas penas alternativas. É induvidoso que o cárcere deve ser concebido como última via, pois não é, nunca foi e jamais será solução possível para a segurança pública de um povo. A nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muitas das vezes, torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de uma tal forma estigmatizados que se tornam reféns do seu próprio passado. Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).
Já no século XVIII, Beccaria, autor italiano, em obra clássica, já afirmava que "entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos crimes, é necessário escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente, menos cruel no organismo do culpado" (Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 43).
Jean Paul Marat, em 1790, advertia que "es un error creer que se detiene el malo por el rigor de los suplicios, su imagen se desvanece bien pronto. Pero las necesidades que sin cesar atormentan a un desgraciado le persiguen por todas partes. Encuentra ocasión favorable? Pues no escucha más que esa voz importuna y sucumbe a la tentación." (Plan de Legislación Criminal, Buenos Aires: Hamurabi, 2000, p. 78). A preocupação, vê-se, é antiga. [11]
NOTAS
- Como afirmam Fábio Félix Ferreira e Salvador Cutiño Raya, "está em curso no Brasil uma Política Criminal e Penitenciária autoritária, conservadora, utilitarista, midiática e simbólica", acreditando-se "que uma centena de presos em RDD vai suspender ou minimizar as causas e motivações que geram a violência e a criminalidade", tudo a demonstrar o "afastamento por completo do Estado Democrático, Social e de Direito prometido pelo legislador constituinte de 1988, bem assim da legislação internacional de tutela e promoção dos direitos fundamentais que o Brasil recepcionou." (Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº. 49, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 288).
- Em conferência realizada no Brasil, em Guarujá, no dia 16 de setembro de 2001, Zaffaroni contou a parábola do açougueiro: "El canicero es un señor que está en una carnicería, con la carne, con un cuchillo y todas esas cosas. Si alguien le hiciera una broma al canicero y robase carteles de otros comércios que dijeran: ‘Banco de Brasil’, Agencia de viages’, ‘Médico’, ‘Farmacia’, y los pegara junto a la puerta de la carnicería; el carnicero comenzaria a ser visitado por los feligreses, quienes le pedirían pasajes a Nueva Zelanda, intentarían dejar dinero en una cuenta, le consultarían: ‘tengo dolor de estómago, que puede hacer?’. Y el carnicero sensatamente responderia: ‘no sé, yo soy carnicero. Tiene que ir a otro comercio, a otro lugar, consultar a otras personas’. Y los feligreses se enojarían: ‘Cómo puede ser que usted está ofreciendo un servicio, tiene carteles que ofrecen algo, y después de no presta el servicio que dice?’. Entonces tendríamos que pensar que el carnicero se iría volviendo loco y empezaria a pensar que él tiene condiciones para vender pasajes a Nueva Zelanda, hacer el trabajo de un banco, resolver los problemas de dolor de estómago. Y puede pasar que se vuelva totalmente loco y comience a tratar de hacer todas esas cosas que no puede hacer, y el cliente termine con el estómago agujereado, el otro pierda el dinero, etc. Pero si los feligreses también se volvieran locos y volvieran a repetir las mismas cosas, volvieran al carnicero; el carnicero se vería confirmado en ese rol de incumbencia totalitaria de resolver todo." Conclui, então, o mestre portenho: "Bueno, yo creo que eso pasó y sigue pasando con el penalista. Tenemos incumbencia en todo."
- "Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal de Inimigo", in Revista de Estudos Criminais nº. 14, Porto Alegre: NOTADEZ/PUC/!TEC, agosto/2004, p. 145.
- Ação Penal, Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2002, 3ª. ed., p. 19.
- Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 01.
- Idem, p. 05.
- Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.
- "La individualización judicial de la pena. Especial referencia al artículo 46 CP peruano", encontrado no site www.eldial.com – 13 de junho de 2005.
- Boletim do IBCCrim, nº. 140, julho/2004, p. 4.
- "Pena de morte para os traficantes de drogas?", publicado no Boletim da Associação Internacional de Direito Penal (Grupo Brasileiro), ano 1, nº. 01 (maio de 2005), p. 04.
- Leia-se Michel Foucault, no indispensável "Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões", Rio de Janeiro: Vozes, 1998, 18ª. edição.