4. A teoria universalista em resposta ao princípio da soberania
4.1. A legitimidade da intervenção humanitária supra-estatal para proteger os direitos humanos
Os direitos humanos declarados em 1948 se constituem em um conjunto de faculdades e garantias que, reunidas, dão significado à dignidade humana, tendo por finalidade o seu respeito, por meio de mecanismos e instrumentos de proteção que visem estabelecer condições mínimas para a sobrevivência digna do homem na Terra.
Milton Ângelo elenca os princípios intrínsecos ao significado de direitos humanos, quais sejam: "Inviolabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, inalienabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementaridade" 30
Por inviolabilidade, entende-se que os direitos humanos não podem ser violados nem desrespeitados por atos de autoridades públicas ou por quaisquer normas infraconstitucionais.
Os direitos humanos são imprescritíveis, sendo que nunca se perdem estes direitos, pois não esmaecem com o decurso do tempo.
Não se pode renunciar aos direitos humanos, ao passo que estes são irrenunciáveis e, mesmo, indisponíveis. Com esta mesma idéia encara-se o princípio da inalienabilidade, pois é vedado ao ser humano transferir qualquer destes direitos.
Há necessidade de instrumentos e mecanismos que regulem estes direitos, inclusive prevendo sanções para quem deles abusar, em respeito ao princípio da efetividade.
Os direitos humanos são interdependentes e complementares. Há uma interatividade entre os preceitos previstos na Constituição com os outros ramos do direito. São complementares, pois há necessidade de que estes direitos sejam complementados por princípios de direito público e privado, nacionais e internacionais.
Por fim, os direitos humanos são universais. Como veementemente defendido em todo este estudo, os direitos humanos devem ser defendidos e respeitados por toda a sociedade internacional, sem distinção de país de origem, de nacionalidade, de etnia, de raça, de convicção política ou religião.
A dignidade do ser humano deve ser respeitada por si só. Por isso, se faz legítima a proteção emanada de órgãos internacionais, que não devem fazer nenhuma das distinções referidas acima.
Com o processo de internacionalização dos direitos humanos e de sua proteção, uma crescente conscientização foi se integrando na sociedade internacional no que tange a garantias de tais direitos, uma vez que a pessoa humana deixa de ser apenas objeto de Direito Internacional, passando a figurar também como sujeito, uma vez que instrumentos foram sendo elaborados e afirmados pela comunidade tendo como fim a concretização do respeito à pessoa humana.
Por este entendimento de que a dignidade da pessoa humana não é assunto que diz respeito à jurisdição exclusiva dos Estados, razão pela qual os povos, as populações não podem ser encaradas como propriedade do governo ao qual está submetida, torna-se legítima a preocupação da sociedade mundial com a proteção dos direitos humanos.
As intervenções humanitárias, intimamente ligadas à noção de paz e segurança mundial, legitimam-se justamente por serem instrumentos da sociedade internacional para garantir que direitos humanos de indivíduos não sejam violados, ou para cessar as suas violações, visando com fim único a proteção da dignidade humana.
Estas ações são permitidas apenas em situações de maciço sofrimento humano, que estejam ocorrendo por um longo período de tempo, a serem avaliadas pela Comissão de Direitos Humanos e, decidas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, que irá deliberar sobre a necessidade ou não de uma intervenção humanitária, pois é o órgão responsável pela manutenção da paz e segurança mundiais, sendo ele o titular do direito de usar medidas coercitivas.
Ainda, as intervenções humanitárias estão previstas no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que prevê a possibilidade de intervenções em nações soberanas quando o assunto é de jurisdição doméstica dos Estados, situação dos direitos humanos.
Neste sentido, Delgado: "a interpretação que as Nações Unidas foram consolidando do artigo 2.7, é importante no sentido que ela deixou consagrada, no direito internacional contemporâneo, que os direitos humanos não fazem parte da jurisdição doméstica dos Estados.Sendo assim, se o entendimento é válido para as relações entre as Nações Unidas e seus membros, não se vê como possa ser diferente no tocante às relações entre Estados individuais" 31.
A Carta das Nações Unidas tem como fim último a defesa dos direitos humanos individualmente desrespeitados e, ao longo da década de noventa esta idéia foi reafirmada pelo Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, defensor da intervenção humanitária a favor das populações sempre que os seus direitos humanos estiverem sendo ameaçados, emergindo uma nova doutrina de soberania do indivíduo face à soberania estatal.
O que é importante para as Nações Unidas, como asseverado pelo atual Secretário Geral, é a proteção dos direitos humanos, que, por si só, já é subsídio suficiente para legitimar uma intervenção supra-estatal no intento de resguardar e promover estes direitos.
4.2. A proteção dos direitos humanos acima de qualquer suspeita de ilegalidade
Uma grande transformação de paradigmas do direito internacional vem acontecendo nas últimas décadas, em razão, principalmente, da Declaração de 1948, que legitimou o universalismo dos direitos humanos.
Por declarar este universalismo, as Nações Unidas, por meio da Carta de 1945 e da Declaração de 1948, legitimaram também as intervenções humanitárias, que estão legalizadas desde as suas proclamações, tornando impossível que o tratamento de um Estado para com seus súditos seja assunto somente de jurisdição doméstica.
A legalidade da intervenção humanitária para a proteção dos direitos humanos tem sido corroborada por muitos países do mundo, na medida em que as intervenções humanitárias realizadas a partir do período da Guerra Fria não foram, de modo geral, condenadas por aqueles que entendem serem elas ilegais.
Inclusive, tais intervenções foram sempre realizadas com a preocupação de adequar-se a posicionamentos anteriores do Conselho de Segurança, "denunciando massacres, genocídios ou violações maciças aos direitos humanos, o que demonstra a vontade destes Estados de ficarem o mais possível dentro da legalidade, a fim de contornar o bloqueio e do veto do conselho de Segurança" 32
Além das dezenas de convenções regionais e universais, é importante que se diga, que são reconhecidas outras fontes de direito internacional para os direitos humanos, que se constituem nos princípios e costumes gerais do Direito.
Por ser um preceito internacional, como defendido ao longo deste estudo, em razão da proteção da dignidade humana, devem-se dispensar conceitos rígidos e, pode-se dizer, Vestfalianos de soberania e de não intervenção em território estrangeiro.
Esta noção está concretizada pela sociedade internacional, e confirmada pelas Nações Unidas, sendo que face aos direitos da pessoa humana que estão sendo violados, legais as medidas de intervenção humanitária de acordo com o estabelecido pela Carta.
Desta forma, a partir da análise da prática recente dos Estados, existem alguns critérios a serem observados e que estiveram presentes em todas as intervenções de cunho humanitário recentes.
Reconhece-se uma intervenção internacional humanitária quando se está diante de situações de graves e maciças violações de direitos humanos, causadas por ação ou omissão comprovada do Estado intervenido. Ainda, para que a intervenção tenha razão de acontecer, as vias diplomáticas já devem ter sido totalmente esgotadas, sendo a ação de intervir a última instância do processo.
Deve-se atentar para o fato de que as intervenções humanitárias, por se tratarem de casos em que indivíduos precisam de ajuda urgentemente, não se pode demorar a agir, razão pela qual, mesmo quando a ação de intervenção não receber a aprovação final do Conselho de Segurança da ONU em virtude do veto de algum ou alguns dos membros permanentes, quais sejam, Estados Unidos, Rússia, França, China e Grã-Bretanha, esta será reconhecida quando além de deter as características acima elencadas, ainda contar com a aprovação de mais de metade da comunidade internacional.
Para finalizar, cabe esclarecer que o uso da força em ações humanitárias é sim permitido, desde que seja exclusivamente para proteger os indivíduos ameaçados.
Considerações Finais
A reflexão proposta neste estudo é na verdade bastante conflituosa na doutrina e nos ordenamentos jurídicos do mundo inteiro. Não é tarefa fácil defender a legalidade das ações de intervenção humanitária. Muito embora hoje se tenha um entendimento mais simpático a este respeito, Estados do mundo inteiro ainda mostram-se apreensivos e mesmo negam qualquer tipo de intervenção dentro de seu território, escudados pelo princípio da soberania.
Até o século XV, entendia-se a soberania como poder perpétuo e ilimitado, que se sujeitava apenas às leis divina e natural. Mais adiante, no século XVI, autores como Thomas Hobbes passaram a publicar idéias que tripudiavam a origem divina do poder soberano o que começou a fazer com que as pessoas passassem a encarar de forma diferente a intangibilidade e ilimitação do poder, concentrado nas mãos de um único homem.
Séculos se passaram e o conceito de soberania sofreu progressivos desgastes. Para atender às necessidades do mundo atual, com uma ordem jurídica completamente diferente da vista até o século XVIII, foi necessária uma remodelagem do conceito. Houve progressivamente uma transferência parcial da soberania interna, no sentido de atender às diretrizes traçadas no século passado de colaboração permanente entre os Estados, objetivando uma convivência pacífica global.
Não há como negar que atualmente tem se concretizado uma constante mudança de paradigmas no Direito Internacional neste sentido. Em razão da defesa dos direitos humanos, o mundo adotou uma nova postura em relação ao que acontece com os seres humanos por todas as partes do planeta, sejam eles nacionais, estrangeiros, apátridas ou refugiados.
Os direitos humanos são tratados com mais tranqüilidade na segunda parte deste estudo. Estes direitos foram sendo reconhecidos ao longo dos séculos ao passo de uma libertação do ser humano e de sua conscientização da importância de ver respeitados seus direitos mais fundamentais.
Por serem hoje assunto de legítima preocupação da sociedade internacional, e não mais um assunto de jurisdição unicamente interna dos Estados soberanos, o que se faz em relação os indivíduos estará sempre sob os olhos e cuidados da proteção internacional.
Somente com o fim da Segunda Guerra Mundial pôde-se mensurar a gravidade do problema de desrespeito à dignidade humana. A agressividade do homem e a total falta de consciência quanto ao sofrimento humano restou configurada no quadro dos horrores do holocausto.
A criação das Nações Unidas sinalizou as primeiras mudanças quanto ao tratamento humano. A Declaração Universal de 1948 proclama a igualdade de todos os indivíduos e a necessidade de uma união de todos os povos para garantir a proteção dos direitos e liberdades individuais.
As Constituições de todo o mundo passaram a incluir em seus textos o respeito ao ser humano, com enfoque especial à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que colocou os direitos fundamentais da pessoa como uma de suas cláusulas pétreas e deu, recentemente, com a Emenda Constitucional n.º 45, o status de norma constitucional aos tratados ratificados pelo Brasil sobre a matéria.
É nesse contexto de crescente preocupação que surgem as intervenções humanitárias, uma vez que o mundo não mais de cruza os braços frente a situações de emergência, em que cuidados e proteção ao ser humano são urgentes
Tema da terceira parte deste trabalho, as intervenções humanitárias muitas vezes são analisadas à luz do princípio da não intervenção, entendimento balizado pelo reconhecimento da soberania dos Estados, o que levaria a falsa idéia de que estas ações seriam ilegais. No entanto, as intervenções humanitárias são ações legais, disciplinadas pela Carta das Nações Unidas, e têm o escopo de legitimamente proteger os direitos humanos dos indivíduos que estão tendo estes direitos violados.
Demonstra-se neste momrnto uma nítida mudança de paradigmas na ordem internacional, haja vista que as situações de maciço sofrimento humano têm dado azo à quebra da soberania dos Estados em que estejam ocorrendo violações de direitos humanos, geradas preliminarmente pelo desrespeito a estes direitos.
A conscientização da necessidade crescente de se estabelecer parâmetros globais de atuação preocupados em assegurar o respeito à dignidade humana foi criando, em nível internacional, o arcabouço legal para as intervenções humanitárias.
O quarto e último tópico preocupa-se em demonstrar a legitimidade da intervenção humanitária supra estatal para a proteção dos direitos humanos, que, como direitos universais, devem ser defendidos e respeitados por toda a sociedade internacional, sem distinção de país de origem, etnia, raça, direcionamento político ou religião. Com esta convicção, acredita-se que se devem dispensar conceitos rígidos de soberania e de não-intervenção em território estrangeiro.
A sociedade moderna exige das Nações Unidas e da sociedade internacional como um todo a garantia efetiva dos direitos fundamentais do ser humano, razão pela qual, mesmo aquelas intervenções humanitárias não endossadas pelo Conselho de Segurança da ONU tiveram legitimidade de ação, já que o objetivo era comprovadamente a proteção de direitos humanos. Em verdade, por não se adequarem ao previsto no artigo 2.7, da Carta das Nações Unidas, os direitos humanos fazem parte da jurisdição internacional também, e aqui a legalidade das intervenções humanitárias e a legitimidade da preocupação da sociedade internacional.
Desta forma, pode-se concluir que, numa análise jurídica das intervenções humanitárias internacionais, legitimamente preocupadas com a defesa e promoção dos direitos humanos, são elas instrumentos que vêem contribuindo efetivamente para a promoção da paz mundial, que é declaradamente o grande objetivo comum dos países signatários da Carta das Nações Unidas.
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