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Ampla destreza: exercício abusivo da ampla defesa

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Agenda 27/06/2023 às 14:48

2. Utilização da ampla defesa com o intuito de não fazer incidir a sanção

Um dos principais fatores que motiva o exercício da ampla defesa, no processo, é o receio de sofrer alguma sanção51. Supondo que os resultados dos processos tivessem, como regra, decisões meramente declaratórias, ou seja, não houvesse qualquer tipo de condenação. Será que continuaria sendo imperioso defender-se? Se a consequência para a prática de homicídio fosse tão somente a declaração de que sim, você é um homicida, haveria uma preocupação e/ou necessidade de se defender a qualquer custo? Certamente que não52.

Muito embora haja verdadeira maratona, por parte de quem comete alguma transgressão, na busca pela desresponsabilização53, a sanção é necessária e benéfica54. É preciso entender, então, quais os motivos que levam o transgressor a evitar a sanção, os quais explicariam por que a ampla defesa é utilizada como subterfúgio, distanciando-a, assim, do seu propósito real.

2.1 Função social da sanção

A sociedade está em constante processo de transformação – ora progride, ora regride. Não obstante, caminha em direção à evolução, de sorte que surgiu, em determinado momento, a necessidade de que o indivíduo observasse e respeitasse o interesse da coletividade para que o exercício dos seus direitos individuais fosse legítimo.

Nasceu, a partir de aí, a ideia de função social, que, segundo José Mário de Melo, emergiu:

[...] limitando institutos de conformação nitidamente individualista, em contraposição aos ditames do interesse coletivo – que se apresentam acima dos interesses particulares – concedendo aos sujeitos de direito não só uma igualdade em seu aspecto estritamente formal, mas permitindo uma igualdade e liberdade aos sujeitos de direito, os igualando de modo a proteger a liberdade de cada um deles, em seu aspecto material55.

E continua:

A função social é um princípio inerente a todo o direito subjetivo. Tradicionalmente, definia-se o direito subjetivo como o poder concedido pelo ordenamento jurídico ao indivíduo para a satisfação de um interesse próprio. Todavia, a evolução social demonstrou que a justificação de um interesse privado muitas vezes é fator de sacrifício de interesses coletivos. Portanto, ao cogitarmos da função social, introduzimos no conceito de direito subjetivo a noção de que o ordenamento jurídico apenas concederá legitimidade à persecução de um interesse individual, se este for compatível com os anseios sociais. Caso contrário, o ato de autonomia privada será considerado inválido56.

Ademais, não só há a prevalência do interesse coletivo em detrimento do interesse individual, como também prevalece o interesse coletivo de que o indivíduo cumpra com os seus deveres. Ou seja, se, de um lado, o exercício dos direitos do indivíduo é limitado pelo interesse coletivo, do outro, o interesse coletivo legitima a tomada de medidas contra o indivíduo que inobserve seus deveres57.

O indivíduo que, por exemplo, descumpre o seu dever de observar as leis e pratica um ilícito penal, vindo a ser condenado a uma pena privativa de liberdade, vê o seu direito à liberdade sendo suprimido em função do interesse coletivo de reprimir a prática de ilícitos, seja como consequência da extrapolação de um direito individual, seja pela não observância de um dever, seja por ambos.

No mesmo sentido, o indivíduo que descumpre o seu dever de adimplir uma dívida pode ser compelido a fazê-lo, judicialmente. Ou ainda, o indivíduo que transgride o código de conduta da empresa para a qual trabalha e é sancionado, administrativamente, com a suspensão de alguns dias laborais e seu respectivo desconto na folha de pagamento.

Destarte, nos exemplos supracitados, mas não somente, a sanção figura como medida de preservação do interesse coletivo, haja vista que não é da sua vontade viver em um ambiente hostil de insegurança e iminente dano, tal qual aconteceria no caso do ilícito impune, da dívida inadimplida e da má conduta do empregado relevada58.

A priori, pode parecer que a coletividade não é afetada pelos resultados dos processos dos quais não é parte. Contudo, como se sabe, não é verdade. Basta imaginar que, certo funcionário, médico, costuma faltar, passa por processo administrativo, mas não sofre quaisquer sanções, ou sofre, insuficientemente. Uma dessas faltas poderá dar ensejo a complicações de saúde a uma pessoa que deixe de ser atendida, o que não ocorreria caso essa conduta de faltar já tivesse sido corrigida, mediante aplicação da sanção adequada. Uma dívida inadimplida pode acarretar, ao credor, insolvência perante outros credores, criando, portanto, uma rede de prejuízos. O estuprador, não reeducado, que convive livremente com a sociedade, então, nem se fala.

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O interesse coletivo, deveras, almeja o convívio social saudável, justo e harmonioso, combatendo as situações que perturbem esta idealização. Em que pese a existência dos anseios sociais devessem, por si só, impor aos indivíduos a sua observância, acaba não o sendo, de modo que a sanção consegue, em grau muito maior que o mero bom senso, impor-lhes59.

A sanção busca reparar o dano ocasionado pelo agressor, seja restringindo ou limitando algum direito seu, seja o obrigando a fazer ou deixar de fazer algo. Há verdadeiro desestímulo a nova prática de tais atos indesejados, além de se criar uma atmosfera favorável à prevenção, já que outrem, cientes da ocorrência da sanção, não venham também a transgredir60. Esse combate às perturbações sociais, consoante o interesse coletivo, confere à sanção uma função social61.

Assumir a responsabilidade dos próprios atos e, principalmente, as consequências, é um ato de honestidade consigo e respeito à coletividade. Entretanto, sabe-se que a praxe acaba sendo diferente. Se não fosse por força da sanção, o caos social seria infinitamente maior, isso se o convívio em sociedade ainda se sustentasse62.

Os conflitos nunca deixarão de existir, sempre haverá injustiças, exploração, assimetrias. Mas não é aí que reside o problema, afinal, inaceitar o imutável é desgastar a própria sanidade. O problema reside em poder ser autorresponsável e não ser, ou poder tomar uma atitude contra o irresponsável e não tomar.

A sanção é, então, indispensável para que haja a correção, ou ao menos a tentativa, do comportamento individual nocivo, desrespeitador do interesse coletivo, de modo a favorecer o resgate da paz social63. Não só cumpre função social como possibilita o convívio em sociedade64.

2.2 Análise, sob o ponto de vista psicológico, dos motivos que fazem o indivíduo buscar a não incidência da sanção

A mente humana, tão complexa, permite ao ser humano o raciocínio abstrato, diferenciando-lhe dos demais animais65. Ainda assim, muito embora essa diferenciação eleve o ser humano a um patamar de superioridade evolutiva, não lhe retira a condição de animal - também agimos e reagimos instintivamente66. Essa combinação possibilita o exercício mental consciente respaldado em anseios inconscientes, como o é, por exemplo, quando um indivíduo cria uma tese fictícia para tentar se evadir de uma sanção devida (exercício mental consciente), a fim de se autopreservar (instinto de sobrevivência)67.

Analisando de outra forma, a sanção, em regra, causa desconforto em quem vier a cumpri-la. Como é desgratificante para o cérebro esse tipo de desgaste, haverá uma busca pela própria desresponsabilização68.

Nas situações ora apresentadas, a ampla defesa é utilizada para afastar a responsabilização, em que pese ser devida. Torna-se, portanto, subterfúgio, abuso de direito69. É preciso entender que tais comportamentos prejudicam tanto o indivíduo como a coletividade.

2.2.1 Influência dos anseios mais profundos do indivíduo no exercício da ampla defesa - Id, inconsciente e instintos

A psique humana, segundo Freud, é estruturada em três componentes básicas: Id, ego e superego70. James Fadiman, parafraseando Freud, explica que o Id “é a estrutura da personalidade original, básica e mais central [...] é de natureza primitiva, instintiva [...] os conteúdos do Id são quase todos inconscientes”71.

Ao demonstrar a existência do inconsciente, Freud revelou que ele produz efeitos, repercutindo, inclusive, no Direito72.

O Direito não consegue por si só, contudo, analisar o que acontece intersubjetivamente no psicológico do sujeito, que analisa superficialmente. O problema reside aí: a intersubjetividade deste sujeito interfere, e muito, na prática ou não de [uma transgressão] [...] [devendo], portanto, ser considerada. São ciências como Psicanálise e Psicologia que trarão ao universo jurídico os instrumentos teóricos-práticos para a identificação (Psicanálise) e a compreensão (Psicologia) do que se passa no universo intersubjetivo do sujeito jurídico quando este trava qualquer relação jurídica73.

Nesta senda, “a Psicanálise traz para o pensamento jurídico uma contribuição revolucionária com a descoberta do sujeito inconsciente”74, mesmo porque “a maior parte da consciência é inconsciente. Ali estão os principais determinantes da personalidade, as fontes da energia psíquica, e pulsões ou instintos”75. Entender que o inconsciente tem influência, e muito, nas tomadas de decisão de um indivíduo, ajuda a entender certos padrões, como o de mentir para se autopreservar76.

Considerando que os instintos “são pressões que dirigem um organismo para fins particulares [...] são as forças propulsoras que incitam as pessoas à ação”77, a autopreservação, vulgo instinto de sobrevivência, conduz o ser humano a preservar a própria existência ou integridade78, mesmo que isso implique em mentir. Como bem explica o especialista em neuropsicologia Rui Mateus Joaquim, “mentimos para esconder ou para conseguir algo. Muitos organismos se utilizam de táticas de dissimulação comportamental em suas atividades predatórias ou de defesa”79.

O acusado de um crime, por exemplo, cuja pena prevista seja privativa de liberdade, conhecendo a pragmática do sistema penitenciário brasileiro, sabe que será exposto a um ambiente hostil e perigoso, acaso sobrevenha a condenação, ameaçando a sua integridade física e/ou mental. A fim de evitar essa situação danosa, o indivíduo, de fato culpado, vê na mentira a oportunidade de ser desresponsabilizado, protegendo, assim, a sua integridade contra o cumprimento da pena.

No mesmo sentido, o funcionário de uma empresa que esteja respondendo um processo administrativo disciplinar, ciente das possíveis consequências pecuniárias em seu desfavor, como a suspensão e a demissão, também procurará ser desresponsabilizado, ainda que seja, de fato, culpado. Isso porque a sanção representa uma ameaça à sua segurança financeira, principal responsável por prover as condições de sobrevivência, como alimentação e moradia.

Portanto, a construção de uma narrativa falaciosa para se autopreservar advém da própria natureza humana enquanto ser, humano e animal. Contudo, não é interessante para a coletividade que o indivíduo, ainda que para a própria proteção, externe o seu instinto reprimido, sob pena de provocar uma desordem social ou mesmo o fim de qualquer organização80. Mesmo que haja essa intrinscecidade de mentir para se proteger, materializando os comandos inconscientes do instinto de sobrevivência81, não se deve convalida-la, no âmbito da ampla defesa, sob pena de fomentar o individualismo nocivo à coletividade.

2.2.2 Desgaste mental do sancionado em decorrência da sanção

Em que pese o processo, ainda em curso, já ter o condão de desgastar mentalmente aqueles que dele participam82, o cumprimento da sanção, em relação ao agora sancionado, potencializa esse desgaste, por diversos motivos.

A depender da sanção, há uma mácula na imagem do sancionado capaz de despertar nas demais pessoas um sentimento de descredibilização daquele, ou mesmo rejeição83. Esse menosprezo, normalmente, enseja desgaste mental em quem sofre84.

Ademais, sanções que afetam o patrimônio material, direta ou indiretamente, seja porque houve penhora de bens, aplicação de multa, suspensão do trabalho e seu respectivo desconto na folha de pagamento, impossibilidade de trabalhar em razão da privação da liberdade, ou ainda dificuldade de conseguir um emprego dada a condição de egresso, são capazes de atingir, negativamente, o padrão de vida do sancionado. Ver o próprio padrão de vida diminuir, ou a sua progressão retardar, também desgasta mentalmente o indivíduo85.

Nessas situações, mas não somente, o esforço exigido para evitar as consequências negativas é menor do que o esforço exigido para se recuperar delas, ou seja, sob o ponto de vista do menor desgaste mental, é preferível canalizar energia psíquica buscando formas de se evadir da sanção do que despender mais energia e por mais tempo para tentar retornar ao estado anterior ao cumprimento da sanção86.

Tendo em vista que o cérebro reproduz um reflexo ancestral que estimula o ser humano à lei do menor esforço87, a melhor forma de se esforçar menos, combatendo o desgaste mental, é evitando que este sequer ocorra, ou seja, em que pese a construção de uma tese falaciosa, no exercício da ampla defesa, exija do transgressor certo esforço e desgaste mental, estes o são menores do que o exigido para cumprir a sanção imposta e se recuperar das consequências atreladas à responsabilização.

2.3 Análise, sob o ponto de vista psicológico, de como a impunidade e a aplicação da sanção condicionam o comportamento humano – reforço positivo, negativo e punição

Um dos principais expoentes da psicologia comportamental, B.F. Skinner, desenvolveu elaborado estudo acerca do comportamento humano. Dentre as várias contribuições, expôs o poder reforçador dos eventos e, ainda, sua relação com a punição88.

Baseado em estudos de Pavlov, o qual denominava “[...] “reforços” todos os eventos que fortaleciam um comportamento e “condicionamento” todas as mudanças resultantes”89, foi além, desenvolvendo os conceitos de reforço positivo e reforço negativo.

Os eventos que se verifica serem reforçadores são de dois tipos. Alguns reforços consistem na apresentação de estímulos, no acréscimo de alguma coisa, por exemplo, alimento, água, ou contato sexual - à situação. Estes são denominados reforços positivos. Outros consistem na remoção de alguma coisa - por exemplo, de muito barulho, de uma luz muito brilhante, de calor ou de frio extremos, ou de um choque elétrico - da situação. Estes se denominam reforços negativos. Em ambos os casos o efeito do reforço é o mesmo: a probabilidade da resposta será aumentada90.

Portanto, o ser humano pode ser condicionado a deixar de se comportar de determinada forma, passar a se comportar, bem como diminuir ou aumentar a frequência de um comportamento. Esses direcionamentos são feitos através de reforços – positivo quando se dá algo recompensador, negativo quando se retira algo indesejado91.

Um pai que estabelece dar mesada ao filho caso este tenha um bom desempenho na escola, está, através desse reforço positivo, aumentando a probabilidade de que o filho apresente bons resultados nas avaliações, já que este, a fim de receber a mesada, empenhar-se-á para isso.

Supondo, agora, que determinado aluno recebe a notícia de que será suspenso da escola por três dias. Preocupado com a reação dos pais, conversa com a coordenação e chega a um acordo no qual não será mais suspenso, desde que não volte a repetir o mesmo erro. A retirada dessa situação indesejada de ser suspenso, que age como reforço negativo, estimulará o aluno a não cometer o mesmo erro novamente.

Em ambas as situações há um aumento na probabilidade da resposta esperada, ou seja, um condicionamento do comportamento. É preciso entender, agora, como esses conceitos se aplicam à relação entre o transgressor, a sanção e o exercício da ampla defesa.

O transgressor que, de fato culpado, ficciona uma tese em seu favor, é processado, julgado e absolvido, ou mesmo quando sequer chega a ser processado, é, em ambas as situações, recompensado com a impunidade, que age como reforço positivo para que ele volte a transgredir92. Isso porque a ausência de quaisquer sanções contra a prática indesejada implica em acréscimo das vantagens indevidas da transgressão ao transgressor, ou seja, benesse, além da liberdade que ele terá para, eventualmente, transgredir de novo e continuar obtendo vantagens - não que o vá, mas tem estímulo para tal.

Insta ressalvar que, muito embora o processo em si já funcione como um desestimulador à transgressão, já que representa uma situação indesejada de exposição do transgressor aos olhos da justiça93, comumente não é suficiente para impedir novas transgressões quando o resultado do processo é a impunidade, reforço positivo que acaba sobressaindo à natureza repressiva do processo94.

De outro modo, o transgressor culpado que é processado, julgado e condenado, é, a partir da sanção, apresentado a uma situação que lhe é indesejada, que gera desconforto. Observe que houve o acréscimo de uma situação indesejada, e não retirada, não havendo de se falar, portanto, em reforço negativo, mas sim em punição. “[...] A apresentação de um reforço negativo ou a remoção de um positivo [...] são consequências que denominamos punição”95.

A punição também serve para condicionar o comportamento humano, haja vista que desestimula a reiteração de determinado comportamento indesejado96. Enquanto “o reforço estabelece tendências [...] a punição destina-se a acabar com elas”97. Uma “mula” do tráfico que tem liberdade para fazer quantos “corres” forem necessários para o traficante, não raro, fará mais de um. Basta, em regra, ser presa uma única vez para que nunca mais volte a cometer tal ilícito98.

O combate à impunidade, portanto, urge. É preciso garantir que haja incidência da sanção àquele devidamente culpado, desestimulando-o a transgredir novamente, desconstruindo o reforço positivo que a impunidade oferece99. É medida que age no psicológico do transgressor, condicionando-o a transgredir menos, quiçá deixar de transgredir100.

Muito embora a busca por uma forma de se evadir da sanção, no exercício da ampla defesa, encontre respaldo no próprio âmago do ser humano, não deve ser tolerada, haja vista que conviver em sociedade, sob o contratualismo, implica alguns ônus, como o de não ter direitos absolutos e a inadmissão de comportamentos individuais nocivos, desrespeitadores do interesse coletivo.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINS, João Pedro. Ampla destreza: exercício abusivo da ampla defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7300, 27 jun. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88737. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada à Coordenação do Curso de Direito do Centro Universitário Tiradentes, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Maceió, 2020.2. Orientadora: Professora Mestre Mariana Falcão Bastos Costa.

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