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Responsabilidade internacional dos Estados por dano ambiental:

o Brasil e a devastação amazônica

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Agenda 16/09/2006 às 00:00

6. RESPONSABILIDADE POR DANOS AOS RECURSOS HÍDRICOS

Tendo já sido abordadas as questões referentes à responsabilidade internacional em caso de danos à biodiversidade e de modificações do clima, resta para análise a temática referente ao uso da Bacia Amazônica e a responsabilidade internacional do Brasil.

Nesta parte, será realizada uma breve abordagem do Tratado de Cooperação Amazônica, de 1978, promulgado pelo decreto n. 85.050/1980, e sobre a Convenção sobre o Direito dos Usos dos Cursos d´Água Internacionais para Fins Distintos da Navegação, a qual, embora não se encontre ainda em vigência, ilustra a tendência do Direito Ambiental Internacional para a questão. Todavia, antes de se iniciar o estudo desses instrumentos internacionais, é necessário, para melhor entender a matéria, abordar as teorias legais sobre os cursos d´água internacionais.

6.1. Teorias sobre o uso dos cursos d´água internacionais

BIRNIE e BOYLE [61] elencam quatro teorias sobre o uso dos cursos d´água internacionais:

- soberania territorial;

- integridade territorial;

- utilização eqüitativa;

- gerenciamento comum.

Segundo a teoria da soberania territorial, os Estados gozam de soberania absoluta sobre a água localizada dentro de seu território, independente dos efeitos que esse uso possa ocasionar sobre Estados localizados a jusante (isto é, "rio abaixo") desse curso d´água. De acordo com BIRNIE e BOYLE [62], essa teoria é conhecida como a "Doutrina Harmon" e tem seu nome devido ao Procurador-Geral dos Estados Unidos, o qual estabeleceu, numa negociação com o México, o direito que os Estados Unidos tinham de desviar o Rio Grande. Entretanto, essa teoria já não encontra apoio entre os doutrinadores atuais, posto que ela confere direitos em excesso para o Estado localizado a montante (isto é, "rio acima") e nenhum direito para o Estado localizado a jusante.

A teoria da integridade territorial é o contrário da teoria da soberania territorial. Conforme BIRNIE e BOYLE [63], esta teoria confere "ao ribeirinho a jusante o direito a um fluxo total de água de qualidade natural". Deste modo, somente por autorização do Estado a jusante é que o Estado a montante poderia interferir no fluxo natural do rio, seja alterando a qualidade da água, seja desviando parte do rio. De acordo com os autores, esta teoria encontra apoio limitado e é, freqüentemente confundida com a obrigação de um Estado não provocar danos a outros Estados por meio de atividades localizada em seu território.

A utilização eqüitativa é a teoria mais aceita na prática internacional dos Estados. Ela estabelece que os cursos d´água internacionais são recursos compartilhados e, deste modo, devem ser submetidos a uma utilização eqüitativa. BIRNIE e BOYLE [64] esclarecem que o uso eqüitativo assenta-se na igualdade dos direitos, ou seja, na soberania compartilhada, e não pode confundida com uma divisão igual; trata-se, na verdade, de um equilíbrio de interesses com vistas a acomodar as necessidades e os usos de cada Estado. O princípio da utilização eqüitativa encontra-se afirmado na prática geral dos Estados, mesmo entre aqueles que anteriormente faziam uso da teoria da soberania territorial (como os Estados Unidos).

O gerenciamento comum, segundo BIRNIE e BOYLE [65], é "a combinação lógica da idéia de que bacias hidrográficas são gerenciadas mais eficientemente como algo inteiro com a necessidade de se encontrar maquinaria institucional eficaz para assegurar a utilização eqüitativa e o desenvolvimento". No gerenciamento comum, vai-se além do estabelecimento de direitos e obrigações para os Estados abrangidos pelo curso d´água. Geralmente, esse gerenciamento é acompanhado pelo estabelecimento de instituições por meio das quais todos os Estados ribeirinhos elaboram e implementam políticas de desenvolvimento para a região abrangida pela bacia hidrográfica.

Para que ocorra o gerenciamento comum, é fundamental levar-se em conta o conceito de "bacia de drenagem internacional". O conceito foi elaborado pela Associação de Direito Internacional (International Law Association) em 1966 e estabelece que "uma bacia de drenagem internacional é uma área geográfica que cobre dois ou mais Estados, determinada pelos limites fixados pelos divisores de água, inclusive as águas de superfície e as subterrâneas, que desembocam num ponto final comum" [66]. A importância do conceito de bacia de drenagem internacional está no fato de que se procura tutelar toda a bacia hidrográfica, e não somente os rios que efetivamente percorram o território de mais de um Estado. Desta forma, "um curso d´água que esteja completamente em território nacional, mas pertença a uma bacia internacional, também será considerado como tal" [67]. A adoção desta teoria poderia, em tese, abrir a possibilidade de responsabilização de um Estado por danos ao ambiente de um rio localizado inteiramente em seu território.

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No caso da Amazônia, BIRNIE e BOYLE [68] afirmam que esta é a teoria adotada, tendo em vista que o Tratado de Cooperação Amazônica criou o Conselho de Cooperação Amazônica, o qual possui a função de elaborar e implementar diretrizes para o desenvolvimento regional. Entretanto, uma análise mais detalhada do Tratado de Cooperação Amazônica e da posição do Brasil sobre o tema põe em cheque a afirmação dos dois autores [69], tendo em vista que, na verdade, o Tratado parece inclinar-se mais para a teoria da utilização eqüitativa.

6.2. Instrumentos internacionais sobre recursos hídricos

Para a questão Amazônica, somente é aplicável, no que concerne, exclusivamente, aos recursos hídricos, o Tratado de Cooperação Amazônica. Trata-se de um instrumento assinado em 1978 e promulgado, no Brasil, pelo Decreto 85.050 de 18 de agosto de 1980. Firmado num contexto de regimes militares na maior parte da América do Sul e sob a ameaça de internacionalização da Amazônia, o Tratado de Cooperação Amazônica foi visto como uma maneira de os países amazônicos desenvolverem a região e reforçar sua soberania sobre ela. O viés político e econômico (em detrimento do ambiental) é reforçado pelos fatos de o Tratado não permitir a adesão de outros Estados e de o mesmo ter sido assinado sem a participação da França, a qual possui parte de seu território na Amazônia. [70]

O Tratado [71] contém, em sua maior parte, dispositivos que podem ser considerados como exortatórios, isto é, que não ensejam, propriamente, obrigações. Além disso, o texto do Tratado possui caráter cooperativista. Deste modo, não existe nenhum dispositivo que enseje a responsabilidade do Estado, nem mesmo há metas rígidas a serem cumpridas. Deste modo, embora o Tratado afirme, em seu preâmbulo, que os Estados signatários têm a responsabilidade de preservar o meio ambiente, esta não é uma obrigação rígida.

Ainda, o Tratado busca assegurar a soberania de cada país signatário sobre os seus recursos hídricos. Desta maneira, não existe, no Tratado, nenhum dispositivo que trate um rio inteiramente localizado no território de um Estado, mas dentro da Bacia Amazônica, como um rio internacional. O artigo IV do Tratado salienta que:

As Partes Contratantes proclamam que o uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais em seus respectivos territórios é direito inerente à soberania do Estado e seu exercício não terá outras restrições senão as que resultem do Direito Internacional. [72]

Deste modo, o Tratado de Cooperação Amazônica nada acrescenta, no que diz respeito à responsabilidade dos Estados, às regras de Direito Internacional. Assim, impossível é, por meio do TCA, a responsabilização do Brasil por danos causados a um rio, componente da Bacia Amazônica, inteiramente localizado em seu território, tendo em vista que os rios somente são considerados internacionais se abrangerem mais de um Estado amazônico. Ainda, mesmo no caso dos rios internacionais, dificilmente, o Brasil produzirá algum dano que afete os demais Estados Amazônicos, tendo em vista que o Brasil, geralmente, localiza-se a jusante, ou seja, recebe água dos outros Estados amazônicos.

Com relação à Convenção sobre o Direito dos Usos dos Cursos d´Água Internacionais para Fins Distintos da Navegação [73], embora ela tenha sido adotada, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 21 de maio de 1997, ainda não se encontra em vigor [74]. Entretanto, mesmo que passe a vigorar, ela nada trará de novo à tutela jurídica internacional dos recursos hídricos.

A Convenção evita a abordagem das bacias de drenagem internacional e estabelece que cursos d´água são "um sistema de águas de superfície e subterrâneas que, em virtude de sua relação física, constituem um conjunto unitário e normalmente fluem para uma desembocadura comum" [75]. Embora, em princípio, a leitura possa sugerir a aplicação do conceito de drenagem internacional, ela o nega, conforme exposto por Klaphake e Scheumann:

Esta definição substituiu o uso anterior do conceito de bacia de drenagem [...] o qual era apoiado por alguns países como o contexto mais científico e racional para acordos. [...] O termo aplicado exclui não somente os tributários, mas também outros componentes tais como águas subterrâneas confinadas, já que elas não estão conectadas com as águas da superfície para constituir um ´conjunto unitário´. O termo ´desembocadura comum´ pretende prevenir que duas bacias hidrográficas, que são conectadas por um canal artificial, sejam vistas como uma única bacia hidrográfica e, eventualmente, estender o foco geográfico e os Estados participantes em acordos. [76] [grifos do autor]

A Convenção também estabelece que os Estados devem, em seus territórios, utilizar um curso d´água internacional de maneira eqüitativa e razoável, expondo, claramente, a adoção da teoria da utilização eqüitativa e negando o conceito de bacia de drenagem internacional.

Além da obrigação de uso eqüitativo, HEY [77] lista outras obrigações que se encontram no texto da Convenção:

- obrigação de cooperar;

- obrigação de informar, consultar e, se necessário, negociar sobre o possível efeito de medidas planejadas sobre o curso d´água;

- obrigação de proteger e preservar os ecossistemas de cursos d´água internacionais;

- obrigação de proteger e preservar o meio ambiente marinho;

- obrigação de prevenir e mitigar danos significativos;

- obrigação de notificar outros Estados de curso d´água no caso de situações de emergência e de cooperar na prevenção e mitigação destas situações.

Todas essas obrigações, segundo a própria autora, já constituem objeto de direito costumeiro e são, deste modo, cogentes e vinculadas ao princípio de boa vizinhança [78]. Desta forma, confirma-se que as obrigações contidas na Convenção não constituem nenhuma inovação do Direito Internacional.

Destarte, no que concerne à questão dos recursos hídricos e à Bacia Hidrográfica Amazônica, não se pode vislumbrar um tipo de responsabilidade distinto das regras costumeiras de Direito Internacional. Não se aplica, na Bacia Amazônica, o conceito de bacia de drenagem internacional e, por conseguinte, um rio amazônico localizado integralmente em território brasileiro é considerado brasileiro, não internacional. O TCA e a Convenção sobre Cursos d´Água (ainda não em vigor) não trazem nenhuma obrigação além das costumeiras. Deste modo, somente seria possível a alegação de responsabilidade do Brasil no caso de danos transfronteiriços causados por meio dos rios internacionais.

Entretanto, mesmo no caso dos rios internacionais, difícil é a ocorrência de um dano que enseje essa responsabilização, tendo em vista que o Brasil, de forma geral e salvo algumas exceções, encontra-se a jusante dos rios internacionais, isto é, rio abaixo. Assim, dificilmente poderia ocorrer, por exemplo, uma poluição de um rio, causada em território brasileiro, que viesse a afetar o território de outro Estado, ou, ainda, algum tipo de intervenção que viesse a afetar o curso natural desses rios nos outros Estados amazônicos.


7. CONCLUSÃO

O presente trabalho teve, por objetivo, investigar a possibilidade de o Estado brasileiro ser responsabilizado, internacionalmente, por danos ambientais sobre a Amazônia. Para tanto, analisou-se o instituto da responsabilidade e, posteriormente, dividiu-se a análise em três áreas: diversidade biológica, mudança de clima e recursos hídricos.

Com relação ao próprio conceito de responsabilidade internacional dos Estados, notou-se a prevalência do modelo da responsabilidade subjetiva, isto é, da responsabilidade do Estado por danos ilícitos, a qual se encontra sujeita ao exame da culpa.

Identificado o tipo de responsabilidade mais propenso a ser aplicável para a questão amazônica, passou-se à investigação das normas referentes à biodiversidade, à mudança de clima e aos cursos d´água internacionais para verificar a existência de normas vinculantes, as quais sujeitam o Estado infrator, mediante exame de culpa, à responsabilização em virtude do descumprimento.

No que diz respeito à biodiversidade, observou-se a emergência da noção de diversidade biológica como preocupação comum da humanidade. Este conceito poderia ser interpretado como uma forma de um Estado não fronteiriço argüir a responsabilidade internacional do Estado brasileiro por danos à diversidade biológica, tendo em vista que isto afetaria o patrimônio biológico mundial. Entretanto, conforme visto, a noção de "preocupação comum da humanidade" é mitigada pelo caráter recomendatório da maior parte das normas concernentes ao tema, o que torna, no atual estágio do Direito Internacional, improvável a responsabilização do Brasil nessas bases.

As normas atinentes à mudança de clima apresentam alguma base para a responsabilização do Brasil por danos ambientais. Tendo em vista a quantidade de emissões de gases de efeito estufa derivada do desmatamento amazônico, é possível que países afetados gravemente pelas mudanças climáticas, como pequenos países insulares, elaborem reclamatórias contra um grupo de Estados poluidores e inclua, neste grupo, o Brasil. Entretanto, a falta de regras específicas nos instrumentos normativos sobre o tema, bem como a atual ausência de reclamatórias do gênero contra qualquer país (apenas ameaças), lançam dúvidas sobre a possibilidade dessa responsabilização. Ainda, mesmo que ela venha a ser argüida, é mais provável que o seja por meio de um mecanismo multilateral, não-jurídico, do que por meio de um contencioso judicial ou por meio de negociações diplomáticas diretas.

Com relação aos recursos hídricos, não há normas sobre o uso sustentável de cursos d´água amazônicos dentro do território de um país e tampouco sobre a conservação desses cursos d´água em determinado estado. O que há, exclusivamente, é o dever de não causar danos transfronteiriços, já presente no Direito Internacional costumeiro. Deste modo, somente seria possível argüir a responsabilidade do Brasil no caso de um dano, originado em território brasileiro, que afetasse o curso d´água internacional num dos Estados ribeirinhos. Tendo em vista que o Brasil localiza-se, como regra geral, a jusante, isto é, rio abaixo, é pouco provável a ocorrência de alguma agressão ao meio ambiente que afete um Estado fronteiriço.

Desta forma, a conclusão mais acertada seria a de que a responsabilidade do Brasil por danos ambientais sobre a Amazônia pode, no momento atual, ser argüida, em tese, caso ocorram algumas poucas situações específicas, as quais constituem exceção. Mesmo que o Estado brasileiro permaneça realizando (ou deixando realizar) agressões ao meio ambiente amazônico, é pouco provável que se possa argüir essa responsabilidade. Entretanto, é provável que a evolução do Direito Ambiental Internacional, especialmente na questão da diversidade biológica e da mudança de clima, resulte na elaboração de instrumentos normativos internacionais contendo normas vinculantes aplicáveis à realidade amazônica, tornando, pois, a responsabilização possível para o caso de falha em atingir os objetivos desses instrumentos.

Sobre o autor
Ernesto Roessing Neto

bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas, bacharel em Economia pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas, pós-graduando em Gestão de Comércio Exterior pela Universidade Federal do Amazonas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROESSING NETO, Ernesto. Responsabilidade internacional dos Estados por dano ambiental:: o Brasil e a devastação amazônica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1172, 16 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8915. Acesso em: 5 nov. 2024.

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