5. Os limites cognitivos dos embargos do devedor na execução de títulos extrajudiciais na Justiça do Trabalho.
5.1 Questões preliminares.
Originalmente o direito processual do trabalho não comportava a execução de títulos extrajudiciais. Segundo entendimento majoritário da doutrina, a execução trabalhista limitava-se aos títulos judiciais, expressamente relacionados na redação original da Consolidação das Leis do Trabalho, art. 876 [21]. Com o advento da Lei Nº 9.958, de 12 de janeiro de 2000, o art. 876 foi alterado e incluídos dois títulos extrajudiciais nos domínios do processo do trabalho: o termo de ajuste de conduta perante o Ministério Público do Trabalho e o termo de conciliação perante as Comissões de Conciliação Prévia.
Trata-se, portanto, de uma profunda inovação no âmbito do direito processual do trabalho, pois, até então, não havia qualquer disposição expressa quanto a documentos não-jurisdicionais de eficácia executiva. Mesmo para aqueles que defendiam a possibilidade de execução de títulos extrajudiciais na Justiça do Trabalho, o que se operava era tão-somente, a assimilação dos títulos já definidos pela legislação processual civil. Nesse sentido, pela primeira vez no processo laboral brasileiro, passamos a ter títulos extrajudiciais específicos e exclusivos da Justiça do Trabalho.
É bom que seja ressaltado o fato de que esses títulos relacionados no art. 876 continuam a ser os únicos títulos extrajudiciais genuinamente trabalhistas, mesmo após a edição da Emenda Constitucional Nº 45, de 08 de dezembro de 2004. É fato que, com a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, novos títulos extrajudiciais passam a ser executados perante o judiciário trabalhista [22], no entanto, se trata de hipótese de assimilação de modalidades já previstas na legislação processual civil.
Sendo assim, a preocupação central de nosso trabalho volta-se para as modalidades de títulos extrajudiciais expressamente relacionadas no âmbito da Consolidação das Leis do Trabalho, art. 876. Passemos, portanto, à análise conceitual de cada uma das modalidades.
5.2 Termo de ajuste de conduta perante o Ministério Público do Trabalho.
Embora tenhamos afirmado que o Termo de Ajuste de Conduta perante o Ministério Público do Trabalho venha a se afigurar como um título executivo trabalhista, não se pode olvidar o fato de que esse instrumento não é exclusivo do direito processual do trabalho. Trata-se, na verdade, de matéria prevista originalmente pela Lei Nº 7.347, de 24 de julho de 1985, art. 5º, § 6º que regula o instituto da ação civil pública no direito brasileiro.
A idéia básica do Termo de Ajuste de Conduta é obter do eventual réu da ação civil publica o reconhecimento da prática de ato ensejador da reparação através da jurisdição coletiva e possibilitar a reparação das pretensas lesões decorrentes. Não se trata de uma transação ou mesmo de uma conciliação, mas sim uma verdadeira confissão por parte do acusado, devidamente respaldada pelos membros do Ministério Público. Conforme já nos pronunciamos anteriormente: "...não há, portanto, espaço para renúncias ou transações no âmbito do procedimento investigatório, até porque o Ministério Público não é o titular da relação jurídica que está sendo protegida. Não seria admissível, pois, que o representante do parquet pudesse transacionar em direitos que, mesmo de cunho patrimonial, são considerados irrenunciáveis por nossa legislação." [23]
O legislador, ao alçar o termo de ajuste de conduta ao nível de título extrajudicial, objetivou eliminar a fase de cognição, possibilitando o recurso direito ao poder judiciário, com o fito de possibilitar a imediata correção das irregularidades apontadas. Como a formação do termo de ajuste de conduta depende da manifestação volitiva do acusado, haverá a completa eliminação da atividade cognitiva que tenha por finalidade aferir e delimitar a conduta imputada e sancionada. Trata-se, portanto, de uma concretização dos comandos normativos protetivos dos direitos metaindividuais. "Em regra, portanto, o compromisso de ajustamento de conduta visa a alcançar aquilo que seria pretendido com o ajuizamento da ação civil pública, ou seja, aquilo que a ordem jurídica prescreve como comportamento devido..." [24].
Vê-se, por conseguinte, que o objetivo primordial do termo de ajuste de conduta é evitar a discussão fática e jurídica quanto à materialidade da conduta afrontosa aos interesses metaindividuais. Trata-se, portanto, de uma alternativa posta à disposição do acusado que poderá aceitá-la ou não, posto que, apenas através do provimento jurisdicional concreto, é que poderá impor compulsoriamente determinada conduta.
O realce dessas características é de extrema relevância para que se possa aquilatar o verdadeiro alcance dessa modalidade de título executivo extrajudicial. Ao contrário da maioria dos títulos extrajudiciais, o termo de ajuste de conduta, normalmente, contempla obrigações de fazer e de não fazer, firmadas paralelamente a obrigações de pagar, quase sempre de natureza de cláusula penal. Nesse contexto, a obrigação implementada no respectivo documento apresenta-se relevante do ponto de vista social, tendo em vista a tutela de um interesse de cunho metaindividual. De fato, como já afirmamos anteriormente, a atividade do Ministério Público na efetivação do termo não é de mediador ou de conciliador.
É fato que o representante pode ser chamado a mediar conflitos individuais e o exercício dessas atribuições pode gerar um título executivo extrajudicial, na forma do Código de Processo Civil, art. 585, II [25]. Nessa situação, no entanto, a atividade do Ministério Público relaciona-se, tão-somente, à certificação da validade da manifestação volitiva dos transatores, mesmo assim em sede de direito de caráter individual. Não se vislumbra a ocorrência de qualquer interesse público na formação do referido título, mas, tão-somente, a necessidade de assegurar a lisura na estruturação do negócio jurídico.
Quando nos deparamos com a formação do termo de ajuste de conduta, verifica-se que a finalidade da atuação do Ministério Público é a tutela de direitos metaindividuais, e não a garantia de relações jurídicas individualizadas. Nessa situação, o agir do representante do Ministério Público não enfeixa uma relação de cunho transacional, mas sim um mero registro da conformação do acusado em sanar as lesões indicadas. Nessa linha de raciocínio expõe, com brilhantismo, o eminente Hugo Nigro Mazzilli que "...o compromisso de ajustamento de conduta não é um contrato; nele o órgão público legitimado não é o titular do direito transindividual, e, como não pode dispor do direito material, não pode fazer concessões quanto ao conteúdo material da lide. É, pois, o compromisso de ajustamento de conduta um ato administrativo negocial por meio do qual só o causador do dano se compromete, exceto implicitamente, a não propor ação de conhecimento para pedir aquilo que já está reconhecido no título." [26]
Ao obter a concordância do acusado em admitir a responsabilidade pelas lesões apontadas, o representante do parquet atua no exercício pleno de suas atribuições de defensor da sociedade, não se identificando qualquer resquício de composição privada de conflitos. Sendo assim, embora enquadrado legalmente como título extrajudicial, não se pode negar que o Termo de Ajuste de Conduta é um instrumento da realização de direitos não-patrimoniais e, portanto, impregnados pelo interesse público. Essa constatação, como veremos adiante, repercutirá diretamente no conteúdo dos embargos à execução eventualmente manejados.
5.3 Termos de conciliação perante as Comissões de Conciliação Prévia.
A única convergência conceitual entre o Termo de Ajuste de Conduta e os Termos de Conciliação perante as Comissões de Conciliação Prévia reside no fato de que ambos são tipificados pela legislação processual trabalhista como títulos extrajudiciais. A partir desse ponto desaparece qualquer outra coincidência na aferição da natureza jurídica dos dois institutos. O Termo de Conciliação, ao contrário do termo de ajuste, documenta uma transação judicial havida entre empregado e empregador acerca de conflitos individuais de trabalho (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 625-E) [27].
Essa transação realizada entre o empregado e a empresa apresenta duas finalidades: liberar a empresa quanto ao adimplemento de verbas decorrentes do contrato de trabalho (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 625-E, parágrafo único) e garantir o acesso direito do trabalhador mediante a provocação imediata da tutela executiva (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 625-E, caput). Muito embora não tenha sido esse o motivo determinante da instituição das Comissões de Conciliação Prévia, não se pode deixar de identificar, além do interesse direto do empregador em obter a "quitação" do contrato de trabalho, a finalidade protetiva do empregado, na medida em que se garante a impossibilidade de rediscussão da matéria transacionada. Nesse sentido preconiza Estêvão Mallet, verbis: "Vale o termo de conciliação como título executivo, de caráter extrajudicial, porém. Permite, pois, imediato ajuizamento de ação de execução, com citação da parte inadimplente para o pagamento do valor devido, sob pena de penhora. Não está afastado o cabimento de embargos à execução. Mas em tais embargos não se poderá questionar a exigibilidade da obrigação decorrente da conciliação, salvos nos restritos antes indicados, não se concebendo, por exemplo, seja argüida prescrição verificada antes da conciliação e não invocada oportunamente. A celebração da conciliação, a despeito da prescrição consumada, implica renúncia do benefício, conforme art. 161, do Código Civil." [28].
Dentro desta linha de raciocínio, o Termo de Conciliação, formado segundo os parâmetros da Consolidação das Leis do Trabalho, art. 625-E, enquadra-se no âmbito da noção tradicional de título executivo extrajudicial. No entanto, esse título é dotado de uma teleologia diversa daquela que lastreia o título extrajudicial preconizado pelo Código de Processo Civil, art. 585, II, posto que não se quer apenas garantir o registro de uma transação extrajudicial, mas sim permitir uma pretensa "segurança" para a relação de emprego. O artificial caráter dual desse termo de conciliação demonstra que uma das finalidades da formação do termo de conciliação é garantir o acesso do empregado ao poder judiciário, exigindo o integral cumprimento das obrigações ajustadas. Evita-se, por conseguinte, a rediscussão do pretenso crédito trabalhista por intermédio de ação de conhecimento.
5.4 Delimitando o conteúdo dos Embargos à Execução quanto aos títulos extrajudiciais trabalhistas.
Já vimos ao longo de nosso trabalho que os títulos extrajudiciais trabalhistas preconizados pela Consolidação das Leis do Trabalho, art. 876 apresentam uma conformação atípica em relação aos seus congêneres do direito processual do trabalho. O que se pretende discutir é se essa natureza diferenciada pode ou não influir no âmbito cognitivo dos embargos à execução. Conforme já expusemos anteriormente, a Consolidação das Leis do Trabalho só se reporta ao conteúdo dos embargos à execução no seu art. 884, § 1º e é óbvio que essa menção só se refere à execução fundada em título judicial.
Quando nos debruçamos sobre a execução de títulos extrajudiciais, devemos nos reportar, de forma subsidiária, ao contido no Código de Processo Civil, art. 745, segundo o qual o devedor poderá deduzir qualquer outra matéria que lhe seria útil deduzir como defesa no processo de conhecimento. Nesse sentido, ajuizada a execução de título extrajudiciais trabalhistas, desde que garantido o juízo, o devedor poderia aduzir toda e qualquer matéria de defesa, mesmo que própria do processo de conhecimento.
Com efeito, neste caso enfrentamos problema diametralmente oposto ao colocado em relação à execução previdenciária, posto que, nesta, o que se questiona é a limitação da cognição, própria da execução de título judicial, conforme preceitua a Consolidação das Leis do Trabalho, art. 884, § 1º. Enfrentando esse problema, concluímos que a natureza verdadeiramente híbrida do título lastreador da execução previdenciária possibilitava o alargamento da cognição dos embargos executórios.
Quando nos deparamos com os títulos extrajudiciais trabalhistas, preconizados pela Consolidação das Leis do Trabalho, art. 876, o problema a ser enfrentado é a amplitude da cognição dos respectivos embargos. Ora, se observarmos a natureza dos títulos extrajudiciais, certamente que não se pode vindicar de maneira absoluta da simples aplicação do contido no parágrafo primeiro do art. 884 do diploma consolidado. Não podemos deixar de lembrar que no contexto original da Consolidação não havia a figura da execução de títulos extrajudiciais. Logo os limites cognitivos atribuídos aos embargos, certamente seriam aqueles próprios da execução fundada em título extrajudicial.
Ao serem incorporados títulos extrajudiciais na sistemática do direito processual do trabalho, omitiu-se o legislador em estabelecer regras próprias para a delimitação cognitiva dos embargos executórios. Ora, se a Consolidação é omissa nesse particular, a solução natural seria buscar a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, mais precisamente, o contido no seu art. 745. Nesse sentido é, aliás, o ponto de vista do eminente Francisco Gérson Marques de Lima, verbis: "Tendo a Lei n. 9.958/2000 admitido a executoriedade de título extrajudicial na Justiça do Trabalho (art. 876, CLT), é de se invocar o art. 745, CPC, segundo o qual ‘quando a execução se fundar em título extrajudicial, o devedor poderá alegar, em embargos, além das matérias previstas no art. 741, qualquer outra que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de conhecimento... Podem ser argüidas preliminares e prejudiciais; exceções e matérias processuais (v.g., nulidades, litispendência, perempção); e temas de mérito referentes à invalidade do título. Inserem-se, aí, argumentos pertinentes à inexistência dos fatos e do direito; à prescrição; à confusão da obrigação, etc." [29].
Embora a solução apresentada de aplicar de forma direta o art. 745 do Código de Processo Civil se revele atraente e objetiva, iremos demonstrar que a inserção desse dispositivo legal não se faz de maneira tão serena. Com efeito, a abertura ilimitada da possibilidade de cognição na execução de títulos extrajudiciais trabalhistas pode causar sérios problemas de índole jurídica no manejo dos Embargos à Execução.
Pensemos no seguinte exemplo. O Ministério Público, após apurar fundadas denúncias sobre a falta de fornecimento de equipamentos de proteção individual por parte de uma grande indústria, consegue firmar termo de ajustamento de conduta, pelo qual o acusado, reconhecendo a ilicitude apontada, compromete-se a sanar todas as irregularidades apontadas em determinado prazo. Recusando-se a grande empresa a cumprir as condições estipuladas no Termo de Ajustamento, decide o parquet intentar a respectiva execução, objetivando obter do poder judiciário a concretização das obrigações ali dispostas. Atingindo o processo executório a fase oportuna para a provocação transversa do meio de tutela do devedor, este alega, simplesmente, a inexistência de qualquer tipo de transgressão às normas de medicina e segurança do trabalho.
Ora, como a cognição dos embargos em sede de execução de título extrajudicial é ampla e irrestrita, o Juiz condutor do processo executivo deveria encaminhar a instrução processual, com a finalidade de aferir a existência da lesão de direito transindividual, mesmo constando do Termo o reconhecimento expresso da prática de tal ato. Pela própria amplitude da cognição dos Embargos nessa modalidade de título, o poder judiciário, teria a obrigação de se debruçar sobre qualquer alegação concernente à existência da relação jurídica descrita no título. Nesses termos, todo o esforço em obter o Termo de Ajuste de Conduta e se evitar o processo de cognição da Ação Civil Pública foi em vão, tendo em vista que haveria um atraso significativo da concretização da prestação jurisidicional. Em outras, palavras a própria viabilidade prática do termo de ajuste resta comprometida, posto que permanecerá a possibilidade de o devedor-acusado reabrir de forma ampla e irrestrita a discussão acerca da existência da lesão apontada.
O mesmo dilema pode ser identificado em relação à execução dos termos de conciliação perante as Comissões de Conciliação Prévia. O objetivo primordial da formação do título executivo em favor do trabalhador é evitar o ajuizamento de um procedimento de cognição destinado a reconhecer a existência dos créditos trabalhistas. Caso adotássemos a ampla possibilidade de discutir a matéria elencada e conciliada no âmbito do título extrajudicial, haveria um desvirtuamento concreto das finalidades impostas pela norma trabalhista. O benefício da desnecessidade de se discutir a existência dos créditos trabalhistas (talvez um único identificável em favor do trabalhador dentro das comissões de conciliação prévia) desapareceria, tendo em vista a possibilidade de se discutir até o mérito da avença extrajudicial [30].
Diante dessas considerações não se pode admitir a existência de uma cognição ampla e irrestrita no âmbito dos títulos executivos extrajudiciais tipicamente trabalhistas. A outorga da eficácia executiva a esses documentos decorre não da concretização da atividade negocial das partes, mas sim da afirmação de valores de destaque da sociedade. Essa característica, no entanto, é bem mais evidenciada quando nos deparamos com os Termos de Ajuste de Conduta, em que a atuação do Ministério Público não apresenta qualquer indício de atividade negocial.
A visão teleológica desses títulos, portanto, leva à conclusão de que não é possível admitir a ilimitada possibilidade cognitiva dos embargos do devedor, principalmente quando de pretende discutir a essência da relação jurídica travada no âmbito do título. Nesse sentido o único caminho que resta para o julgador é, mediante a utilização de uma interpretação teleológica, reconhecer a limitação da atividade cognitiva dos embargos nos títulos executivos extrajudiciais trabalhistas às hipóteses expressamente preconizadas no Código de Processo Civil, art. 475-L.
A vantagem trazida por essa limitação das matérias manejadas nos embargos reside na possibilidade de o juízo rejeitar liminarmente a referida ação impugnativa autônoma, permitindo o andamento rápido e efetivo do procedimento executivo. Caso não se admita a limitação cognitiva desses embargos, o julgador deverá proceder à integração da relação processual, ouvir do credor e, se for o caso, determinar a instrução probatória cabível para só aí, se for o caso, refutar as alegações do devedor.
Ao executado, portanto, restaria a possibilidade de, por intermédio de procedimento de cognição autônomo [31], externar todas as razões de seu inconformismo, sem o grande empecilho de se suspender o processo executivo.