1.Pretendemos, por intermédio do presente estudo, demonstrar a incompatibilidade existente entre o sistema constitucional inaugurado em 1988 e as disposições insculpidas no art. 8º da Lei nº 6.091, de 15 de agosto de 1974, e entre esta e a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995.
2.Para uma melhor análise da questão, reputamos imprescindível trazer à colação os dispositivos de regência, verbis:
LEI 6.091/74
"Art. 8º - Somente a Justiça Eleitoral poderá, quando imprescindível, em face da absoluta carência de recursos de eleitores da zona rural, fornecer-lhes refeições, correndo, nesta hipótese, as DESPESAS por conta do FUNDO PARTIDÁRIO."
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
"Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
(...)
§ 3º - Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei;"
"LEI Nº 9.096/95
Art. 38. O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) é constituído por:
I - multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e leis conexas;
II - recursos financeiros que lhe forem destinados por lei, em caráter permanente ou eventual;
III - doações de pessoa física ou jurídica, efetuadas por intermédio de depósitos bancários diretamente na conta do Fundo Partidário;
IV - dotações orçamentárias da União em valor nunca inferior, cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária, multiplicados por trinta e cinco centavos de real, em valores de agosto de 1995.
Art. 39. Ressalvado o disposto no art. 31, o partido político pode receber doações de pessoas físicas e jurídicas para constituição de seus fundos.
(..)
Art. 41. O Tribunal Superior Eleitoral, dentro de cinco dias, a contar da data do depósito a que se refere o § 1º do artigo anterior, fará a respectiva distribuição aos órgãos nacionais dos partidos, obedecendo aos seguintes critérios:
I – um por cento do TOTAL do Fundo Partidário será destacado para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral;
II – noventa e nove por cento do TOTAL do Fundo Partidário serão distribuídos aos partidos que tenham preenchido as condições do art. 13, na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados."
3.A princípio, registro que a Lei nº 9.096/95 veio ao mundo do jurídico com um fim específico: regulamentar os arts. 17 e 14, § 3º, da Constituição Federal, isto é, conquanto ordinária, complementa a Lei Maior!; aliás, tal escopo está expressamente consignado em sua epígrafe. Convém conferir:
"Dispõe sobre partidos políticos, regulamenta os arts. 17 e 14, § 3º, inciso V, da Constituição Federal"
4.Adentremos, pois, pela essência deste singelo trabalho.
5. O art. 8º da Lei nº 6.091/74 não dá ensejo a dúvidas: efetivamente confere, à medida das condições que impõe, o fornecimento de alimentação aos eleitores.
6.Entretanto, fácil observar, por razões óbvias, que se trata de legislação que antecede a promulgação da Constituição Federal de 1988, razão por que eventual incompatibilidade é apenas aparente, eis que, qualquer normativo que padeça de tal vício sequer foi recepcionado pelo novel sistema, o que é cediço.
7.Eis o cerne da questão: a Carta Política, no supratranscrito art. 17, assegura aos partidos políticos o direito de perceberem recursos do Fundo Partidário, nos termos da lei.
8.Por sua vez, a Lei nº 9.096/95, que, como dito, regulamenta o referido dispositivo constitucional, assegura às agremiações partidárias 100% (cem por cento) do total do referido Fundo.
9.Ora, por força dos comandos do art. 41, incisos I e II, da Lei nº 9.096/95, faz-se uma divisão, que fere o princípio da igualdade, segundo a qual, como ocorre no horário eleitoral, as cotas do Fundo Partidário são repartidas desigualmente, 1% (um por cento) do TOTAL em partes e iguais, e o saldo remanescente, os 99% (noventa e nove por cento) daquele TOTAL, para os poucos privilegiados que atenderem às exigências do art. 13 da mesma Lei.
10. Insistimos em enfatizar que esses percentuais são aplicados sobre o TOTAL dos recursos do multicitado Fundo.
11.Assim, como a allimentação dos eleitores, segundo a lei que a assegura, deve ser custeada pelo Fundo Partidário, vê-se evidente incompatibilidade, já que a lei posterior (9.096/95) dispõe de forma contrária, eis que destina a totalidade dos recursos para os Partidos Políticos, isto é, se a lei nova garante 100% (cem por cento) às agremiações partidárias, não poderia parte desses recursos ser desviada para qualquer outro fim, por mais nobre que seja, a exemplo da alimentação de eleitores, pois, nessa hipótese, não estaria efetivamente garantido tal percentual.
12. Portanto, infere-se que não se pode atribuir validade à lei anterior, inclusive à Constituição, quando lei posterior expressamente dispõe de forma diversa.
13.Todavia, na remotíssima hipótese de ser considerada recepcionada, ou seja, mesmo que, numa intelecção exageradamente flexível, reputássemos válida a Lei nº 6.091/74 por não contrariar diretamente a CF/88, ferido de morte não deixaria de estar o Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil), cujo art. 2º, § 1º, prescreve que "não se destinando à vigência imediata, a lei terá vigor que outra a modifique ou revogue" e que "lei posterior revoga a anterior quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a meteria de que tratava a anterior".
14.É o caso em deslinde. A Lei nº 6.091/74 vigorou viçosamente de 15/08/1974 até 18/09/1995, dia imediatamente anterior à publicação da Lei nº 9.096/95, que, passando a viger a partir de 19/09/1995, dispondo inteiramente sobre o ÚNICO DESTINO dos recursos oriundos do Fundo Partidário; por decorrência lógica, tornou a lei anterior, ao menos naquele dispositivo mencionado, indubitavelmente incompatível com o novo regramento, isto é, implicou a sua pronta REVOGAÇÃO.
15. Em face de todo o exposto, concluímos que o art. 8º da Lei nº 6.091/74 encontra-se irrefutavelmente REVOGADO, e mais, de lege ferenda, não deveria mesmo ser restabelecido o direito outrora dele decorrente, uma vez que o eleitor absolutamente carente não padece dessa condição subumana apenas no dia da eleição, mas sempre, o que demanda uma solução efetiva dos poderes constituídos, mormente do Executivo, não um simples, inconcebível e inútil abrandamento.