O Código Penal Brasileiro, art. 22, prevê como causas legais da inexigibilidade de outra conduta a coação irresistível e a obediência hierárquica. Porém, o princípio da inexigibilidade vai muito além do proposto pelo legislador.
O princípio da inexigibilidade foi introduzido no direito penal junto com a concepção normativa da culpabilidade. Preceitua Francisco de Assis Toledo: "A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui um verdadeiro princípio de direito penal. Quando aflora em preceitos legislativos, é uma causa legal de exclusão. Se não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito." [1]
Não é pacífica a posição de doutrinadores e julgados quanto à aplicação da inexigibilidade de outra conduta como forma genérica de exclusão da culpabilidade por não haver texto expresso de lei.
Com fulcro no artigo 484, inciso III do Código de Processo Penal, parte da doutrina entende não ser possível formular quesito para circunstâncias não reguladas em lei, como por exemplo, coação moral da sociedade ou inexigibilidade de conduta diversa. O referido inciso do art. 484 encarrega ao juiz presidente de formular quesitos que, por lei, correspondam às excludentes que isentem de pena, excluam o crime ou o desclassifique.
O Tribunal de Justiça de São Paulo sustenta que inexistem causas supralegais, argumentando que é inaplicável a analogia in bonam partem em matéria de dirimentes, já que as causas de exculpação representam, segundo a clara sistemática da lei, preceitos excepcionais insuscetíveis de aplicação extensiva.
Outra corrente entende ser o princípio da inexigibilidade de conduta diversa imanente ao sistema penal brasileiro após a Reforma Penal de 1984, que passou a adotar a teoria normativa da culpabilidade.
Destarte, uma grande parte de renomados doutrinadores e alguns julgados entendem possível a formulação de quesito sobre inexigibilidade de outra conduta.
Assevera Guilherme Nucci: "Não deve o juiz indeferir determinadas teses, a pretexto de serem supralegais (como a inexigibilidade de conduta diversa), uma vez que há quem a sustente, razão pela qual não se transforma em tese repugnada pelo ordenamento jurídico ou pela jurisprudência. Assim, cabe a decisão de seu acolhimento ou não ao soberano Conselho de Sentença. Na dúvida, pois, deve o magistrado fazer incluir a tese nos quesitos". [2]
Vale ressaltar, também, a lição de Toledo: "Muito se tem discutido sobre a extensão da aplicação do princípio em foco, entendendo alguns autores que sua utilização deva ser restringida às hipóteses previstas pelo legislador para evitar-se mais uma alegação de defesa que poderia conduzir à excessiva impunidade dos crimes. Não vemos razão para este temor, desde que se considere a "não-exigibilidade" em seus devidos termos, isto é, não como juízo subjetivo do próprio agente do crime, mas, ao contrário, como um momento do juízo de reprovação da culpabilidade normativa, o qual, conforme já salientamos, compete ao juiz do processo e a mais ninguém". [3]
Com a Reforma Penal de 1984, o legislador adotou o princípio da culpabilidade, não se admitindo a aplicação de pena sem a constatação da culpabilidade do agente, ou seja, mesmo que os fatos sejam típicos, mas não censuráveis ao agente, este é excluído de pena. Segundo o princípio citado, em sua configuração mais elementar, "não há crime sem culpabilidade".
Portanto, o artigo 484, III do CPP deve ser interpretado à luz da Reforma Penal de 1984.
Razão assiste a quem entende ser a inexigibilidade de conduta diversa uma causa legal quando da coação moral irresistível ou obediência hierárquica e uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade quando vai além das hipóteses previstas no Código Penal, pois, estarão fundamentadas no princípio geral de Direito (nullum crime nulla poena sine culpa), e como tal, não é necessário estar contido em norma penal.
O Superior Tribunal de Justiça entende "admissível questionário sobre causa supralegal de exclusão da culpabilidade, permitindo-se a inclusão, em defesa alternativa, de quesito referente à inexigibilidade de conduta diversa, desde que se apresentassem ao Júri indagações sobre fatos e circunstâncias e não sobre mero conceito jurídico." [4]
A Constituição Federal, artigo 5º, LV, estabelece como garantias fundamentais a ampla defesa e o contraditório: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;".
Diante do supracitado artigo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais vem aceitando a quesitação de inexigibilidade de conduta diversa, pois, entende que há cerceamento de defesa, causando nulidade absoluta do julgamento.
Segundo Zaffaroni, "A relação de direito penal com o direito constitucional deve ser sempre muito estreita, pois o estatuto político da Nação – que é a Constituição Federal – constitui a primeira manifestação legal da política penal, dentro de cujo âmbito deve enquadrar-se a legislação penal propriamente dita, em face do princípio da supremacia constitucional." [5]
A referida norma constitucional não pode ser deixada de lado em razão de um dispositivo de lei infraconstitucional.
"Versão defensiva que encontra escopo nos elementos probatórios coligidos para o caderno processual. Sendo a exigibilidade da conduta diversa um dos elementos da culpabilidade, e não se limitando aos institutos da coação moral irresistível e da obediência hierárquica, é de se admitir a quesitação de defesa pautada em causa supra legal de inexigibilidade de outra conduta, sob pena de se esvaziar tão relevante princípio e, ainda, de fazer letra morta a norma constitucional do art. 5º, LV." [6]
Dispõe Guilherme de Souza Nucci: "Ainda que se discuta, em Direito Penal, se uma tese é legal ou supralegal, válida ou inválida para absolver alguém, existindo posições em seu favor, não cabe ao magistrado, na presidência do Júri, defender o seu posicionamento particular." [7]
À luz da Reforma Penal de 1984 e da Constituição Federal de 1988, haverá cerceamento de defesa quando o magistrado indeferir quesitação sobre a tese de inexigibilidade de conduta diversa.
"Tão relevante é o critério da inexigibilidade de conduta diversa que o legislador utilizou-o não apenas como causa de exclusão da culpabilidade, fê-lo também como causa de exclusão do próprio crime ou, como diz a doutrina moderna, como exclusão de ilicitude, no caso do estado de necessidade, verbis: "considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se." [8]
Na esteira do pensamento constitucional e da reforma penal de 1984 não há que se indeferir quesitação quanto à tese em questão, desde que sejam questões sobre os fatos e circunstâncias. Não se pode interpretar o Código de Processo Penal deixando de lado a supracitada reforma penal, e o autor Mauro Viveiros observa que os projetos de reforma relativos ao Tribunal do Júri "passam a admitir a possibilidade da adoção da tese da inexigibilidade de conduta diversa na medida em que essa forma de indagação, abrangendo "todas as teses de defesa", como o diz a exposição de motivos, deixa de exigir que a matéria esteja prevista em lei obrigatoriamente, como hoje exige o art. 484, III, do CPP, num dos poucos pontos positivos acerca da questionário e votação (art. 483, III)." [9]
NOTAS
-
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.
ed. 10ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 328.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 2. ed.
São Paulo: RT, 2003. p. 484.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos do direito penal. 5.
ed. 10º tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 329.
MIRABETE, Júlio fabbrini. Código de processo penal interpretado. 5.
ed. São Paulo: Editora Atlas, 1997. p. 615.
ZAFFARONI, Eugênio Eaúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual de
direito penal brasileiro. 3. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 135.
EMENTA
NUCCI,Teoria e Prática do Júri. 7. ed. São Paulo: RT.
VIVEIROS, Mauro. Tribunal do Júri na ordem constitucional brasileira:
um órgão da cidadania. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003. p. 169.
Idem. P. 174.
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, Rui. O júri sob todos os aspectos. Org. Roberto Lyra Filho e Mário César da Silva. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1950.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. São Paulo: RT, 1999.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2001.
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de processo penal. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2001.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 2 ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2003.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 5. ed. São Paulo: Editora Atlas, 1997.
________. Código penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1999.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6 ed., São Paulo: Atlas, 1999.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 2 ed., São Paulo: RT, 2003.
ROCHA, Arthur Pinto da. Primeiro Júri Antigo. Dissertações (Direito Público). Apud: Rogério Lauria. Tribunal do Júri: origem, evolução, características e perspectivas. Tribunal do Júri – Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed., 10ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002.
YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Da inexigibilidade de conduta diversa. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
VIVEIROS, Mauro. Tribunal do Júri na ordem constitucional brasileira: um órgão da cidadania. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 3 ed., São Paulo: RT, 2001.