4. Reflexões sobre a onerosidade excessiva
Em linhas gerais, podemos estabelecer que toda imprevisão é uma surpresa, por isso que a circunstância superveniente à formação dos contratos pode ser tanto imprevisível (que não foi possível prever) quanto imprevista (que não se previu). Entretanto, a surpresa tem de ser, também, excessivamente onerosa, a ponto de alterar a base econômica original – tem de haver um nexo de causalidade entre a circunstância posterior e a onerosidade excessiva.
A questão da onerosidade excessiva é inversamente proporcional ao princípio do equilíbrio contratual, ou seja, quando há onerosidade excessiva há desequilíbrio contratual, e quando há equilíbrio contratual, não há onerosidade excessiva. Desse modo, o princípio do equilíbrio contratual, também denominado princípio da justiça contratual [31], procura garantir a equivalência entre a prestação e a contraprestação, isto é, uma proporcionalidade entre uma e outra.
Portanto, o equilíbrio contratual é um princípio que deve se fazer presente em todos os tipos de contrato, porque conteúdo mínimo necessário a todos, inclusive aos aleatórios [32]. É de se observar que cada contrato aleatório permite a incidência de uma álea específica, o que não afasta, contudo, a possibilidade de sua revisão se a alteração das circunstâncias for extraordinária. Ora, da leitura do artigo 459 e seu parágrafo único, notamos que a álea específica incide sobre a quantidade da coisa esperada, e não sobre a própria existência da coisa. Logo, havendo desequilíbrio contratual, devido à não existência da coisa esperada – o que configura superveniência de fato imprevisto e imprevisível –, haverá ou resolução ou revisão do contrato.
Esclarecido esse ponto, podemos conceituar a onerosidade excessiva: estado contratual provocado por circunstância extraordinária, imprevista e imprevisível, superveniente à celebração do contrato, de modo a tornar a prestação de uma das partes extremamente onerosa, com exacerbada vantagem para a outra.
Pautados no princípio do equilíbrio contratual e na definição de onerosidade excessiva, esclarecemos, desde já, que não é possível falar-se em onerosidade excessiva para as duas partes contratantes, uma vez que esse acontecimento deve-se refletir diretamente sobre a prestação de apenas uma das partes, aumentando o sacrifício de um dos obrigados [33], permitindo ao outro um benefício exagerado.
Por fim, temos de esclarecer dois tipos de desproporcionalidade superveniente: aquela que ocorre no estado de perigo e na lesão e aquela que decorre da onerosidade excessiva.
O artigo 156, do Código Civil de 2002, diz que se há estado de perigo quando alguém assume uma onerosidade excessiva, por ter a necessidade iminente ou atual de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte. Constitui estado de perigo, pois, a situação de extrema necessidade que conduz uma pessoa a celebrar negócio jurídico em que assume obrigação desproporcional e excessiva. Um contraente tira proveito do outro.
A lesão se constitui como o prejuízo resultante da desproporção existente entre as prestações de um determinado negócio jurídico, devido ou a premente necessidade ou a inexperiência da pessoa (artigo 157, do Código Civil de 2002). A lesão é, portanto, um vício do negócio jurídico que traduz, por vezes, o abuso do poder econômico de uma das partes, em detrimento de outra, hipossuficiente na relação jurídica.
Na lesão, a parte tem noção da desproporção dos valores, mas, mesmo assim, premida pela necessidade, realiza o negócio. Distingue-se sobremaneira do estado de perigo: neste há risco de vida; na lesão, apenas dano patrimonial.
Nota-se, assim, a superveniência [34] de desproporcionalidade previsível e prevista, uma vez que, desde a sua formação, o contrato encontrava-se viciado ou pela lesão ou pelo estado de perigo, incorrendo em onerosidade excessiva para a parte hipossuficiente da relação, e em benefício exagerado para a parte hipersuficiente.
Diferentemente dos dois institutos apresentados acima, a onerosidade excessiva decorre de evento superveniente, imprevisível e imprevisto, gerador de desproporcionalidade. Aí reside, pois, a diferença entre a onerosidade excessiva e a lesão e o estado de perigo: o fato deve ser imprevisto e imprevisível aos contratantes, de modo que "se algum deles já souber de sua existência ou ocorrência, o enfoque desloca-se para os vícios de vontade [35]".
Portanto, não há vício algum na onerosidade excessiva, e sim, apenas uma superveniência de desequilíbrio contratual, o que caracteriza outra diferença perante os institutos da lesão e do estado de perigo, os quais apresentam desequilíbrio entre as partes contratantes desde a celebração do contrato.
Por fim, há uma outra diferença entre os institutos do estado de perigo e da lesão e o instituto da onerosidade excessiva. No caso daqueles, pode incidir, contanto que as partes assim queiram, o instituto da confirmação do negócio jurídico anulável [36], o qual tem por escopo "aproveitar o negócio jurídico inválido (anulável), conservando o que quiseram as partes quando o celebraram [37]", de forma a substituir um negócio anulável por outro confirmado.
Já no caso do instituto da onerosidade excessiva, pode incidir, contanto que as partes assim queiram, a modificação de cláusulas contratuais, ou seja, não se busca o equilíbrio contratual mediante a conversão de um contrato em outro, e sim de ocorrer redução [38] ou alteração no modo de execução da obrigação, a fim de evitar a onerosidade excessiva e a resolução do contrato.
Essencialmente, a confirmação do negócio jurídico e a modificação das cláusulas contratuais são duas formas diferentes de se atingir um mesmo princípio: o da conservação dos negócios jurídicos celebrados.
A despeito das diferenças flagrantes entre tais institutos, não é demais observar que os três institutos estão fadados a desempenhar um papel importante, ao lado da função social, na revisão dos contratos.
Como foi visto, desde o início deste artigo, o princípio clássico da autonomia da vontade privada, que enseja o princípio da liberdade de contratar, sofreu crescente mitigação no decorrer dos anos, em virtude do princípio da função social dos contratos [39]. Portanto, o dogma da autonomia da vontade dos negócios jurídicos cedeu lugar ao fato de que o contrato carrega, também, uma dimensão social, a qual não produz efeitos restritos às partes contratantes, e sim efeitos mais amplos, atingindo a sociedade [40].
A função social, como se pode verificar, é um princípio que possui um amplo campo de abrangência, de modo a dar fundamento a diversos outros princípios e a irradiar toda a sua compreensão e inteligência sobre o sistema normativo, dotando-o de harmonia [41].
Dentre os diversos princípios englobados pela função social dos contratos podemos citar, por exemplo: a prevalência do interesse social, a conservação dos negócios jurídicos, a autonomia da vontade privada, a boa-fé subjetiva, a boa-fé objetiva, o equilíbrio contratual.
Assim, a função social é condição necessária a todos os negócios jurídicos celebrados entre as pessoas, mesmo que se apresente em seu conteúdo mínimo, ou seja, circunscreva a apenas um ou alguns dos princípios que abrange, de modo a tornar os efeitos produzidos pelo contrato justos, no mínimo às partes contratantes.
A injustiça das situações, provocada pela alteração anormal das circunstâncias, é o panorama no qual se enquadra a modificação do conteúdo dos contratos e a resolução dos contratos.
5. Resolução e revisão dos contratos
Feitas as distinções necessárias e estabelecidos os conceitos mais importantes; cabe-nos dar ensejo à problemática por nós proposta, qual seja: ante a superveniência de onerosidade excessiva, qual a melhor solução: resolver ou revisar o contrato?
Para responder a tal questão, faz-se necessário tratar sobre as duas doutrinas que circunscrevem este debate: a doutrina do revisionismo e a doutrina do anti-revisionismo [42]. São duas tendências opostas, as quais diversificam o entendimento acerca da regra pacta sunt servanda e do princípio da irretratabilidade das convenções, a partir da consideração da função social.
No sistema revisionista, reconhece-se que a revisão só poderá ser aplicada tendo em vista a observação conjunta das circunstâncias do caso concreto, com apoio premente da função social. Nota-se uma interpretação mais elástica da máxima pacta sunt servanda quando o equilíbrio inicial das prestações tenha sido acometido por acontecimentos supervenientes imprevistos e imprevisíveis, geradores de uma onerosidade excessiva para uma das partes e de um benefício exagerado à outra [43]. Ou seja: é necessário que a pretensão do credor vá de encontro aos princípios da boa-fé [44] e da eqüidade, envolvendo uma exploração do devedor, a fim de obter um enriquecimento sem causa – ilícito, portanto.
No sistema anti-revisionista, a tendência é a de haver controvérsias sobre a possibilidade de o juiz rever os contratos aplicando a teoria da imprevisão, de forma a deixar aos mais radicais a preferência pela não aplicação da revisão dos contratos [45].
No Direito Civil brasileiro, adota-se a doutrina anti-revisionista, de modo que a revisão do contrato [46] poderá ser feita caso as partes concordem com isso, caso contrário, e para efeitos gerais, o contrato será resolvido. De modo geral, a resolução produz efeitos retroativos, a fim de extinguir o que foi executado e obrigar a restituições recíprocas.
A extinção de um contrato pela execução da obrigação estipulada é a regra. A extinção do contrato por evento posterior à sua conclusão, de modo que é preciso observar se o evento superveniente, causador da inexecução, é imputável a uma das partes, ou não.
A extinção por causa superveniente à celebração do contrato pode-se dar por uma das formas subseqüentes: a) pela resilição [47]; b) pela rescisão [48]; c) pelo falecimento de um dos contratantes [49]; d) pela resolução.
Interessa-nos, aqui, a resolução. Mais especificamente, aquela que resulta de casos de inexecução do contrato, por motivo inimputável às partes. Assim, não é demais dizer que a resolução é "um remédio concedido à parte para romper o vínculo contratual mediante ação judicial [50]". Dentre os inúmeros motivos de resolução do contrato [51] está a onerosidade excessiva, a qual aponta, como já foi anteriormente observado, uma extrema dificuldade, involuntária, de cumprir a obrigação.
É de se observar que a onerosidade excessiva não remete à inexecução da obrigação por impossibilidade absoluta, e sim a óbice ao cumprimento da prestação. Por isso, além de o acontecimento ser extraordinário, imprevisto, imprevisível e excessivamente oneroso para um dos contratantes, deve-se atentar para o fato de ser gerada extrema vantagem para o outro contratante [52].
Pela dicção expressa do artigo 478, do Código Civil brasileiro, o devedor poderá pedir a resolução do contrato, de modo que a prestação tornada excessivamente onerosa não lhe permite declarar o negócio jurídico extinto, sendo necessária a decretação judicial, por meio de sentença judicial. Assim, caso a resolução seja decretada pelo órgão judicante, a sentença produzirá efeitos retroativos desde a data da citação [53].
O efeito da resolução do contrato por superveniência de onerosidade excessiva visa, mediante a extinção do contrato, ao restabelecimento da situação dos contratantes quando da formação do contrato, de modo que não há que se falar em indenização, e sim em devolução do que já foi prestado, já que o contrato deve ser, necessariamente, de execução continuada ou diferida.
O Código Civil atual, apesar de indicar a resolução do contrato como via normal à superveniência de onerosidade excessiva, permite a possibilidade de revisão do contrato, caso isso seja do interesse das partes contratantes, de modo a atender ao princípio da conservação dos negócios jurídicos.
Deve-se lembrar que o juiz, não pode intervir livremente na vontade contratual, a fim de, sendo o pedido feito pela resolução do contrato, concluir pela alteração das cláusulas contratuais, isto é, pela revisão do conteúdo do contrato [54]. Assim, se o autor pediu pela resolução do contrato, o juiz deverá julgar o pedido procedente ou improcedente, não podendo, contudo, declarar, de ofício, a revisão do contrato.
É o denominado princípio da adstrição, o qual veda ao juiz decidir aquém, fora ou além da causa de pedir e do que foi pedido, desde que, para isso, a lei exija a iniciativa da parte [55]. É o que, aliás, prevê o artigo 317 (Código Civil de 2002), o qual transcrevemos: "quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação" [grifos nossos].
Entretanto, entendemos, tendo por fulcro os artigos 267, §3º e 301, §4º, do Código de Processo Civil,l que, se for pedida a revisão do contrato, o juiz terá de julgar, a princípio, tal pedido procedente ou não, podendo, de acordo com o caso concreto, declarar, de ofício e excepcionalmente, a resolução do contrato. Observe-se, pois, que se o contrato não puder ser revisado, o juiz poderá resolvê-lo.
A priori, portanto, quando sobrevier onerosidade excessiva, o autor da ação é que determinará sobre que base o juiz deverá decidir, apontando em sua petição inicial o pedido e o motivo de pedir, para que o juiz possa julgar a demanda. O que não quer dizer que o juiz deverá julgar o pedido procedente, uma vez que, pelo princípio do livre convencimento motivado, o magistrado poderá dar, ou não, ganho de causa ao autor, desde que fundamente sua decisão.
Conforme expressa disposição do artigo 479 (Código Civil de 2002), a resolução do contrato pode ser evitada, caso a parte contrária, considerando que lhe é mais vantajoso conservar o contrato, opte por modificar eqüitativamente as condições contratuais, a fim de restabelecer o equilíbrio econômico entre as partes contratantes. Portanto, é permitido, pela própria lei, "dar solução diversa ao problema da onerosidade excessiva, por iniciativa de uma das partes, inibindo a resolução do contrato [56]".
O efeito da revisão do contrato por superveniência de onerosidade excessiva tem, pois, por escopo a conservação do negócio jurídico e a manutenção, mesmo que mitigada, da regra pacta sunt servanda, restabelecendo o equilíbrio contratual existente no momento da celebração do contrato. Assim, é evitada a onerosidade excessiva, de forma que o devedor poderá pleitear que a sua prestação seja devolvida, ou que o modo de a executar seja alterado (artigo 480, Código Civil de 2002).