Breve Histórico
A sentença no direito canônico não era tão estável quanto à laica, sendo os meios próprios para impugná-la mais abrangentes do que os previstos nos ordenamentos jurídicos civis, especialmente no que concerne às hipóteses de cabimento e aos prazos[1].
Esta é a origem da querela nullitatis, a qual comportava duas modalidades: a querela nullitatis sanabilis, adequada à impugnação dos vícios sanáveis, tal qual os recursos e a querela nullitatis insanabilis, a ser proposta para impugnar os vícios mais graves. A primeira fundiu-se com o recurso em vários ordenamentos europeus, transformando-se os motivos de nulidades menos graves em motivos de apelação. A insanabilis, por sua vez, podia ser alegada como remédio extremo contra os vícios mais graves, considerados insanáveis, motivo pelo qual sobreviviam ao decurso dos prazos e à formação da coisa julgada[2].
Válido mencionar o conceito dado por José Cretella Neto, o qual afirma a respeito do assunto que se trata de expressão latina que significa nulidade de litígio, indicando a ação criada e utilizada na Idade Média, para impugnar a sentença, independentemente de recurso, apontada como a origem das ações autônomas de impugnação [3].
Essa criação do direito canônico sobrevive no direito hodierno, o que significa que a inexistência da sentença pode ser declarada por meio de ação declaratória de inexistência, uma vez que é a querela nullitatis o remédio voltado para a impugnação de erros judiciais graves, os quais não se sanam com a preclusão temporal, impedindo a formação da res iudicata[4].
Cumpre observar que a expressão "querela nullitatis", como já foi mencionado, remonta a passado distante. O que não se pode dizer da distinção entre nulidade absoluta e inexistência, as quais só passaram a ser diferenciadas recentemente, motivo pelo qual se verifica que ainda é feita grande confusão na distinção das mesmas.
Com efeito, é bastante comum entre os doutrinadores o uso de ambos os termos como se fossem equivalentes ou iguais. Conseqüentemente, o instrumento processual em estudo é denominado por muitos de ação declaratória de nulidade.
Essa dificuldade de distinção é causada, em parte, pela etimologia da expressão "querela nullitatis" , que induz ao entendimento equivocado de se tratar de remédio aplicável ao ataque de sentenças nulas (nulidade). Ocorre que a distinção entre nulidade e inexistência é fato recente para o direito e, em virtude dessa atual diferenciação, conclui-se que a querela nullitatis é adequada para atacar, na verdade, sentenças inexistentes[5].
Isto porque, conforme já foi anteriormente demonstrado, no caso de sentenças nulas, aplica-se a Ação Rescisória, com observância ao prazo de dois anos (art. 495 do CPC), enquanto que as sentenças inexistentes devem ser declaradas como tal, não existindo prazo para tanto[6].
Também é comumente encontrado nos Tribunais o tratamento indiferente à nulidade e à inexistência jurídica, conforme se verifica no julgado abaixo:
Citação – Nulidade – Querela Nullitatis.
A falta ou nulidade de citação para o processo de conhecimento contamina de nulidade todos os seus atos, inclusive a sentença nele proferida. E por impedir a regular formação da relação jurídica processual, tal nulidade frustra a formação da coisa julgada, pelo que pode ser alegada em embargos à execução ou em ação autônoma direta da querela nullitatis insanabilis, de caráter perpétuo, não prejudicada pelo biênio da ação rescisória, porque o que nunca extistiu não passa, com o tempo, a existir. (destacou-se).
Desprovimento do recurso.
(TJRJ – Ap. 7001/95 – rel. Des. Sérgio Cavalieri – DJ 14.11.1995) [7].
Sendo assim, verifica-se que a querela nullitatis, embora seja denominada por muitos de ação declaratória de nulidade, refere-se à inexistência, não se podendo aceitar o uso das expressões nulidade e inexistência jurídica como se fossem iguais – fato que ocorre corriqueiramente entre os doutrinadores e os próprios Tribunais.
Cabimento da Querela Nullitatis
Ultrapassada a discussão acerca da natureza jurídica de decisão judicial que viole a Constituição – que, como se viu, é de sentença inexistente - , mister perquirir quais os meios adequados de eliminar do ordenamento jurídico pátrio referidos inconvenientes.
Como tudo o que diz respeito ao tema em estudo gera grandes debates, também não poderia deixar de ser diferente com o ponto em questão, principalmente porque o ordenamento jurídico pátrio não prevê nenhum meio processual cuja finalidade seja suprimir a suposta coisa julgada inconstitucional.
Dentre as correntes que aceitam a relativização do dogma da coisa julgada, nota-se a existência de duas tendências majoritárias na moderna doutrina: uma que sustenta que as decisões eivadas de inconstitucionalidade devem ser rescindidas, aceitando-se a idéia de uma aplicação mais abrangente da Ação Rescisória; e a segunda que defende que devem as decisões judiciais que afrontem a Constituição serem declaradas como tal, valendo-se para tanto de qualquer meio processual adequado, dando-se ênfase ao cabimento da querela nullitatis. São essas duas tendências doutrinárias que se passa a analisar.
Sustentam os adeptos da primeira corrente que não há qualquer impedimento legal à propositura de ação rescisória para atacar sentença eivada de inconstitucionalidade. Isso porque a lei ordinária prevê que a coisa julgada que contenha ilegalidade é passível de ser impugnada por meio de ação rescisória (art. 485, V do CPC). Então, se um vício menor (ilegalidade) pode ser desconstituído, o que levaria a crer que um vício bem mais grave, como é a inconstitucionalidade, não poderia sê-lo?
Assim, a interpretação do art. 485, V do CPC deve ser ampliada, de maneira a abarcar as situações em que o dispositivo de lei infringido pertença à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Sobre o assunto, Teresa Arruda Alvim e José Miguel Garcia Medina entendem que um dos caminhos mais adequados para que se consiga evitar a perpetuação de situações indesejáveis, ou seja, a subsistência, para "todo o sempre" de decisões que afrontam o sistema, é entender-se que estão abrangidas pelo art. 485, inc. V do CPC[8], [9].
Humberto Theodoro Júnior, por sua vez, defende o cabimento da Ação Rescisória, aduzindo que o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo-a para desconstituir a suposta coisa julgada inconstitucional, nas hipóteses envolvendo o direito tributário, quando a decisão judicial que transitou em julgado se fundou em norma que foi posteriormente declarada inconstitucional[10].
PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO RESCISÓRIA - INTERPRETAÇÃO DE TEXTO CONSTITUCIONAL - CABIMENTO - SÚMULA 343/STF- INAPLICABILIDADE - VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI (CPC, ART. 485, V) - FNT - SOBRETARIFA - LEI 6.093/74 - INCONSTITUCIONALIDADE (RE 117315/RS) - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL SUPERADA - SÚMULA 83/STJ - PRECEDENTES.
- O entendimento desta Corte, quanto ao cabimento da ação rescisória nas hipóteses de declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei é no sentido de que "a conformidade, ou não, da lei com a Constituição é um juízo sobre a validade da lei; uma decisão contra a lei ou que lhe negue a vigência supõe lei válida. A lei pode ter uma ou mais interpretações, mas ela não pode ser válida ou inválida, dependendo de quem seja o encarregado de aplicá-la. Por isso, se a lei é conforme à Constituição e o acórdão deixa de aplicá-la à guisa de inconstitucionalidade, o julgado se sujeita à ação rescisória ainda que na época os tribunais divergissem a respeito. Do mesmo modo, se o acórdão aplica lei que o Supremo Tribunal Federal, mais tarde, declare inconstitucional". (Resp 128.239/RS)
- A eg. Corte Especial deste Tribunal pacificou o entendimento, sem discrepância, no sentido de que é admissível a ação rescisória, mesmo que à época da decisão rescindenda, fosse controvertida a interpretação de texto constitucional, afastada a aplicação da Súmula 343/STF (Resp. 155.654/RS, D.J. de 23.08.99)
-Recurso especial não conhecido[11]."
(RESP36017/PE; Data do Julgamento 19/10/2000, Data da Publicação/Fonte DJ 11.12.2000 p.00185, Órgão Julgador T2 – SEGUNDA TURMA, Relator(a) Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS).
Cumpre ressaltar que o aresto acima transcrito não se refere à decisão judicial que viola diretamente preceito constitucional, mas sim aos casos nos quais há interpretação controvertida de determinada norma.
Admitida a possibilidade de propor Ação Rescisória às decisões judiciais inconstitucionais, há outro ponto que chama atenção, qual seja, o fato de a referida ação possuir prazo decadencial de dois anos para sua propositura.
Preocupa-se com a questão Alexandre Freitas Câmara, reconhecendo o ilustre jurista que a ação rescisória é um remédio processual cuja utilização é limitada no tempo. Como se sabe, o art. 495 do CPC fixa um prazo de dois anos, de natureza decadencial, para o exercício do direito à rescisão das sentenças transitadas em julgado, tendo tal prazo por termo a quo o momento exato da formação da coisa julgada[12].
De maneira a solucionar esse impasse, os doutrinadores defendem que restringir a utilização da Ação Rescisória para o prazo previstos no art. 495 nos casos de decisões inconstitucionais aparentemente transitadas em julgdo seria equiparar a inconstitucionalidade à ilegalidade, o que, além de ser inconveniente, avilta o sistema de valores da Carta Magna[13].
Vários são os doutrinadores que entendem ser perfeitamente cabível dispensar a aplicação do art. 495 do CPC quando se tratar de matéria constitucional. Evandro Silva Barros, por exemplo, defende que o previsto no artigo acima mencionado, não pode ser erigido à plenitude, principalmente porque o próprio Código de Processo Civil o excepciona, quando positiva a possibilidade de anulação do julgado exeqüendo, na hipótese de citação inválida (art. 741, I, CPC), e a qualquer momento em que a execução seja processada, mesmo que fora do biênio legal[14].
Feitas essas breves considerações acerca do redimensionamento da Ação rescisória ou de sua aplicação de forma mais abrangente, verifica-se um tanto inapropriada sua utilização pelos motivos seguintes.
Em que pese ser a ação rescisória meio pelo qual se busca desconstituir decisão judicial transitada em julgado que apresente comprometimento, cujo grau de imperfeição atinge níveis insustentáveis à permanência na esfera jurídica, superando até mesmo a segurança nas relações[15], não pode ser a mesma usada indiscriminadamente, devendo alguns pressupostos indispensáveis – além daqueles comuns a qualquer ação – serem observados.
Referidos pressupostos são: a) uma sentença de mérito transitada em julgado; b) a invocação de algum dos motivos de rescindibilidade dos julgado taxativamente previstos no Código[16]. É justamente o primeiro pressuposto que constitui impedimento à aplicação da referida ação para desconstituir a suposta coisa julgada inconstitucional.
Como é cediço, as sentenças inconstitucionais nada mais são que sentenças inexistentes que não dispõem de aptidão para gerar coisa julgada. E, não ocorrendo a coisa julgada, não há que se falar em ação rescisória[17].
Evidente, portanto, que "o que não existe não pode ser rescindido, de sorte que não há de falar em ação rescisória sobre sentença inexistente, tal como a que é prolatada por quem não é juiz ou a proferida sem o pressuposto do processo judicial, ou a que nunca foi publicada oficialmente[18]".
Compartilham do mesmo entendimento José Carlos Barbosa Moreira, realçando que "a rescindibilidade da sentença pressupõe a existência de coisa julgada[19]". Pontes de Miranda, por sua vez, observa que "a Ação rescisória é remédio jurídico processual extraordinário, razão porque, se a sentença não existe, ou é nula, cabe ao juiz declarar-lhe a inexistência, ou decretar-lhe a nulidade em vez de rescindi-la[20]".
Teresa Arruda Alvim Wambier, baseando-se nos ensinamentos de Arruda Alvim, com grande clareza assevera que "o que é rescindível não pode ser inexistente e a decisão de mérito, trânsita em julgado, ainda que nula, é ato existente. Então, parece que se pode, com este autor, concluir que a sentença inexistente não é rescindível. Não havendo nada a destruir ou revisar, não há limite para constatar-se a inexistência[21]".
Ressalte-se que isso não quer dizer que no bojo da ação rescisória seja vedado ao juiz reconhecer a inexistência do julgado. Se é na pendência da ação rescisória que se revela ou se demonstra a inexistência da sentença, ali caberá ao julgador reconhecer tal vício. O que não se considera correto é pronunciar julgamento com o sentido de rescisão de sentença inexistente. O dispositivo do julgado haverá de ser de declaração de inexistência[22].
Resta demonstrado, dessa forma, que não há que se cogitar de propositura de ação rescisória para sanar situações em que se verifique a violação da Carta Magna por decisão judicial aparentemente transitada em julgado, uma vez que ausente um dos pressupostos da ação, qual seja, o próprio trânsito em julgado da sentença[23].
Sendo assim, a segunda corrente doutrinária parece ser a mais acertada, na medida em que reconhece que, por ser sentença inexistente, o Poder Judiciário apenas a declara como tal, sendo todo e qualquer processo adequado para constatar e declarar que um julgado meramente aparente é, na realidade, inexistente e de nenhum efeito[24].
Verifica-se que diversos são os remédios processuais para atacar decisão inconstitucional aparentemente transitada em julgado. Pontes de Miranda, por exemplo, sugere a propositura de nova demanda igual a primeira; a resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes no próprio processo executivo; a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive em peças defensivas[25]. Outros instrumentos cabíveis seriam o mandado de segurança[26], os embargos à execução com supedâneo no art. 741, parágrafo único do CPC e a querela nullitatis.
Mister enfatizar que, para o presente estudo, se examinará a ação declaratória de inexistência, isto é, a querela nullitatis como meio adequado para excluir do ordenamento jurídico a suposta coisa julgada inconstitucional, razão pela qual não será objeto de análise os demais instrumentos processuais suso referidos.
Com efeito, por se tratar de ação declaratória, a querela nullitatis não se sujeita a prazo para sua propositura, conforme se infere dos ensinamentos de Sílvio de Salvo Venosa que afirma que as ações declaratórias, que só buscam obter certeza jurídica, não estão sujeitas nem à decadência nem à prescrição[27]. Diante disso, seria o meio mais indicado para retirar definitivamente do mundo jurídico sentenças inexistentes.
Teresa Arruda Alvim Wambier adere a tal entendimento, afirmando que "na esteira do que entende a doutrina mais qualificada e felizmente boa parte da jurisprudência, estas sentenças não têm aptidão para transitar em julgado e, portanto, não devem ser objeto de ação rescisória, já que não está presente o primeiro dos pressupostos de cabimento daquela ação: sentença de mérito transitada em julgado. Em nosso entender, pode-se pretender, em juízo, a declaração no sentido de que aquele ato se consubstancia em sentença juridicamente inexistente por meio de ação de rito ordinário, cuja propositura não se sujeita à limitação temporal".[28]
Diante disso, não restam dúvidas a respeito de que, por ser sentença inexistente que sequer transita em julgado, deve a suposta coisa julgada inconstitucional ser extirpada de nosso ordenamento jurídico por meio da querela nullitatis.
Competência para Julgamento da Querela Nullitatis
Outra questão bastante delicada é a que concerne à competência para apreciar a ação declaratória de inexistência, uma vez que raros são os trabalhos que se ocupam do exame do referido assunto.
Se, por um lado, os doutrinadores são praticamente unânimes ao reconhecer que existe interesse jurídico em suprimir do universo jurídico o ato inexistente[29], sendo, inclusive, um interesse público que se sobrepõe ao interesse particular ou da estabilidade das decisões judiciais[30], por outro lado, não aprofundam seus posicionamentos, no sentido de analisar a quem compete retirar do ordenamento jurídico a suposta coisa julgada inconstitucional.
Leonardo de Faria Beraldo, por exemplo, sustenta que o mais coerente seria que a competência para o julgamento desses casos fosse originária do Supremo Tribunal Federal, por se tratar de matéria constitucional, dessa forma, apesar do grande volume de processos julgados anualmente por aquele órgão e da maioria doutrinária defender que o mesmo deveria fazer tão somente o papel de Corte Constitucional, ele seria o órgão mais indicado para o exercício desta função, devido à grande relevância e gravidade de relativizar o dogma da coisa julgada. Entretanto, reconhece que até uma eventual emenda constitucional, a competência para apreciar a querela nullitatis é, na verdade, do juiz de direito[31].
Não há como discordar do posicionamento acima exposto. De fato, a competência para julgar a ação declaratória de inexistência – querela nullitatis – é da instância ordinária, uma vez que se trata de uma nova ação de conhecimento.
Muito se discute se seria também competente a primeira instância para julgar a ação em análise quando a decisão judicial a ser declarada inexistente houvesse sido proferida por tribunal, alegando-se que poderia ocorrer violação da hierarquia entre os órgãos do Poder Judiciário[32].
Entende-se que não há que se cogitar de violação à hierarquia dos órgãos judiciais, uma vez que a ação declaratória nada mais é do que uma nova ação de conhecimento, com causa de pedir diversa daquela que originou o acórdão eivado de inconstitucionalidade.
Assim, o juízo ordinário não vai reapreciar questão já decidida por órgão superior – isso, sim, seria afrontar a hierarquia dos órgãos do judiciário –, mas apenas examinar possível afronta à Carta Magna. Em outros termos, não será objeto da querela nullitatis um novo pronunciamento acerca do pedido na primeira ação que teve como termo final acórdão que viola a Constituição, já que a questão da inconstitucionalidade da decisão judicial se apresentará como questão principal do processo instaurado, ou seja, o objeto do processo será o exame da inconstitucionalidade do acórdão anteriormente proferido, podendo ser o pedido do demandante julgado procedente ou improcedente[33].
Dessa forma, entende-se que a competência para apreciar a querela nullitatis dever ser do juiz de direito, ou seja, da instância ordinária, uma vez que se trata de nova ação de conhecimento, cujo objeto é o exame da inconstitucionalidade de decisão judicial.
Efeitos da Declaração de Inexistência.
Ponto relevante e que merece a consideração dos juristas é o que se refere aos efeitos da declaração de inexistência da suposta coisa julgada inconstitucional. Questiona-se se os efeitos dessa declaração seriam ex nunc ou ex tunc.
No entanto, antes de partir para a análise acerca dos efeitos acima referidos, faz-se necessário mencionar que deve ser reconhecido aos juízes um poder geral de controle de constitucionalidade da coisa julgada[34], tal qual a permissão dada a todo e qualquer juiz ou tribunal de realizar no caso concreto a análise acerca da compatibilidade do ordenamento jurídico com a CRFB[35].
Com efeito, a declaração de inexistência de coisa julgada inconstitucional está em muito relacionada à idéia de controle de constitucionalidade, que, por sua vez, está ligada à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, bem como à de rigidez e proteção dos direitos fundamentais[36].
Diante disso, resta cristalino que a declaração de inexistência da coisa julgada seria, na verdade, o controle de constitucionalidade dos atos judiciais, aplicado ao caso concreto, fazendo-se necessário analisar os efeitos decorrentes de tal declaração.
Parte minoritária da doutrina entende que os efeitos da declaração devem ser ex nunc, já que a adoção pura e irrestrita da retroatividade dos efeitos de decisão prolatada pelo juízo declaratório acarretaria na negação de vários princípios e garantias consagrados no direito.
Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria são adeptos dessa corrente, sustentando que deve prevalecer sempre a estabilidade das relações jurídicas, o que somente será alcançado por meio da atribuição de eficácia ex nunc às decisões que declaram a inexistência da suposta coisa julgada inconstitucional, ou seja, a decisão declaratória apenas irradiará efeitos para atingir os atos supervenientes, jamais os pretéritos[37].
Já os adeptos da segunda corrente doutrinária, ou seja, a que entende que os efeitos da declaração de inexistência devem ser ex tunc, sustentam que "aquilo que é inconstitucional é natimorto, não teve vida e, por isso, não produz efeitos, e aqueles que porventura ocorreram ficam desconstituídos desde as suas raízes, como se não tivessem existido" [38], levando a crer que atribuir eficácia ex nunc à declaração de inexistência parece um tanto inapropriado.
De fato, parte dominante da doutrina entende que os efeitos de uma sentença que declara a inexistência de outra por ser esta inconstitucional devem ser ex tunc.
Para tanto, busca-se amparo nas normas de controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal – para aplicá-las analogicamente à matéria em exame – por meio do qual a declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, uma vez que o reconhecimento desse supremo vício jurídico desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe – devido à sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito[39].
Em outros termos, a sentença que declarar a inconstitucionalidade de uma lei não diz, via de regra, que esta deixará de produzir efeitos daí em diante (eficácia ex nunc da decisão), e sim reconhece que aquela lei, desde o seu nascimento, desde a sua origem, antagonizou a Constituição, sendo portadora de defeito irreparável[40]. Assim, entende-se que o mesmo tratamento deve ser atribuído à sentença que declare inexistente decisão judicial que afronte a Carta Magna e que aparentemente transitou em julgado.
Observe-se, contudo, que a aplicação de eficácia ex tunc ao tema em estudo não deve ser irrestrita e absoluta, isto porque, até mesmo nas ações em que se exerce o controle concentrado de constitucionalidade pelo STF, encontra-se exceções quanto a este efeito.
De fato, o art. 27 da Lei 9868/99 estabelece que a regra da declaração de inconstitucionalidade continua a ser o efeito ex tunc, mas em casos excepcionais[41], devidamente justificados – inclusive pela manifestação de dois terços dos ministros – pode o Tribunal optar por uma das fórmulas restritivas dos efeitos da declaração[42].
Zeno Veloso afirma que o dispositivo legal suso mencionado é de grande valia, pois possibilita uma fuga do rigorismo técnico-jurídico, das posições inflexíveis e dogmáticas, considerando as conseqüências práticas e políticas, a justiça do caso concreto, podendo o Tribunal – com prudência e cautela – exercer um poder normativo, determinando a eficácia da decisão a respeito da inconstitucionalidade[43].
De igual posicionamento é Gilmar Ferreira Mendes, o qual sustenta que em situações absolutamente excepcionais deve ser permitida a ruptura do dogma dos efeitos ex tunc, facultando-se ao Tribunal protrair o início da eficácia erga omnes de sua declaração[44].
Mister atentar para o fato de que ambos os doutrinadores acima citados chamam a atenção de que a restrição dos efeitos da declaração deve ser algo excepcional, uma vez que a aplicação generalizada do art. 27 da Lei 9868/99 traz consigo o grande risco de estimular a inconstitucionalidade[45], bem como de prender-se em considerações exclusivamente políticas, afastando-se de seu papel fundamentalmente jurídico[46].
Como é cediço, a ciência do Direito não é uma ciência matemática, motivo pelo qual não deve o estudioso daquela ciência adotar conclusões baseadas apenas em regras gerais, como se estas fossem adequadas a qualquer situação. É necessária uma reflexão e minuciosa análise de cada caso concreto, a fim de se aplicar a regra mais adequada[47].
Para tanto, imprescindível valer-se do princípio da proporcionalidade, a fim de que se realize um juízo de ponderação, levando em consideração as possíveis consequências da declaração[48], ou seja, deve o Tribunal agir com prudência e sopesar a regra geral - efeitos ex tunc - e a possibilidade de restrição de tais efeitos quando estes puderem ameaçar a segurança jurídica ou quando se tratar de relevante interesse público, de maneira a adequá-los à necessidade de cada situação[49].
Em outras palavras, a declaração de inexistência de decisão judicial que viole a Carta Magna deve ter eficácia, via de regra, ex tunc, podendo o juízo, se necessário e adequado, restringir referido efeito.
Dessa forma, acredita-se que a melhor solução para o deslinde da questão é aplicar o mesmo procedimento usado nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratória de constitucionalidade, isto é, a regra é o efeito ex tunc. Entretanto, a decisão poderá, com base num juízo de ponderação, restringir os efeitos daquela declaração – se for para garantir a segurança jurídica ou relevante interesse social –, decidindo pela sua (da declaração) eficácia a partir de seu trânsito em julgado, ou de outro momento que venha a ser fixado[50].