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Enunciado nº 83 da Súmula do STJ.

Aplicação ao recurso especial do art. 105, III, "a", da Constituição Federal. Violação ao devido processo legal?

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Agenda 09/11/2006 às 00:00

2 O ENUNCIADO N.º 83 DA SÚMULA DO STJ

            2.1 Generalidades

            O verbete em questão foi aprovado pela Corte Especial do STJ na sessão realizada no dia 18.06.1993, com o escopo de ser utilizado no juízo de admissibilidade do recurso especial fundado no permissivo constitucional da alínea "c", vale dizer, quando tribunais diferentes derem interpretação diversa à mesma questão federal. Daí constar expressamente em sua redação a referência ao não-conhecimento do recurso especial pela divergência. [27]

            Contudo, com o passar dos anos, o STJ começou a aplicar o enunciado em questão também ao recurso especial em que se alega contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal, como se as hipóteses de cabimento das alíneas "a" e "c" do inciso III do art. 105 da Constituição Federal fossem uma só ou, dito de outra forma, como se a previsão da alínea "a" estivesse subsumida na da alínea "c".

            Na ordem constitucional anterior, o STF já havia firmado idêntica orientação ao editar o enunciado n.º 286 de sua Súmula, aprovado na sessão plenária de 13.12.1963 com a seguinte redação: "Não se conhece do recurso extraordinário fundado em divergência jurisprudencial, quando a orientação do plenário do Supremo Tribunal Federal já se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida."

            Não há notícia, entretanto, de que o STF tenha aplicado o enunciado n.º 286 de sua Súmula ao recurso extraordinário fundado exclusivamente na contrariedade à dispositivo da Constituição Federal de 1946 ou das Cartas de 1967/1969, em que pese a semelhança na redação dos respectivos artigos que tratavam do cabimento do recurso extraordinário no texto dessas Constituições, quando comparada com a redação do art. 105, III, "a", da Constituição Federal de 1988.

            A justificativa utilizada pelo STJ para a adoção do enunciado n.º 83 de sua Súmula como óbice ao conhecimento do recurso especial fundado na alínea "a" do permissivo constitucional, assim como as conseqüências que essa conduta acarreta ao direito da parte recorrente, serão abordadas adiante à luz da doutrina e da jurisprudência.

            2.2 Do fundamento utilizado pelo STJ para aplicação do enunciado n.º 83 de sua Súmula aos recursos especiais da alínea "a": a alegada existência de anterior interpretação quanto ao sentido da norma federal questionada

            É tarefa das mais árduas identificar o fundamento jurídico utilizado pelo STJ para aplicação do enunciado n.º 83 de sua Súmula como óbice ao conhecimento do recurso especial em que se alega contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal, hipótese diversa daquela a que se refere expressamente sua redação, vale repetir, o recurso especial fundado na divergência jurisprudencial.

            Inicialmente, utilizou-se do sistema informatizado de pesquisa em jurisprudência disponível no endereço eletrônico do STJ na internet. Todavia, o módulo de consulta trazia sempre o mesmo resultado, muito embora alterássemos os dados dos processos entre uma e outra busca.

            Numa análise mais detida, percebeu-se que, ao longo dos últimos anos, os julgados que aplicaram o enunciado n.º 83/STJ ao recurso especial da alínea "a" repetiam-se, uns aos outros, mencionando, com poucas variações, que, "embora se refira apenas ao recurso especial fincado na divergência jurisprudencial, a Súmula 83 aplica-se ao recurso especial arrimado na alínea ´´a´´ quando o acórdão recorrido se afinar à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça". [28]

            Entretanto, nenhum dos julgados que foram encontrados explicava os fundamentos jurídicos para esse entendimento. É como se a justificativa fosse apenas "aplica-se porque aplica-se", ou então "aplica-se porque sim". [!]

            Contudo, em pesquisa elaborada com o auxílio da Seção de Pesquisa em Jurisprudência do STJ, num levantamento mais aprofundado, identificou-se o precedente que possivelmente teria ocasionado a modificação na orientação que até então predominava desde a edição do verbete em análise e que estava servindo de inspiração para todos os demais, muito embora desprovidos de fundamentação. Nele, o relator, Min. Waldemar Zveiter, asseverou que:

            [...] a matéria é jurisprudência pacífica e o acórdão recorrido manifestou-se de acordo com esse entendimento, qualquer discussão neste sentido fará incidir a Súmula 83 que, não obstante referir-se à alínea c do permissivo constitucional, amolda-se à alínea a por caracterizado no ponto, a falta de interesse de agir. [29] (sic)

            A Seção de Pesquisa em Jurisprudência do STJ indicou ainda, um segundo precedente, no qual o relator, Min. Pádua Ribeiro, defendeu que:

            Não procede a alegação da agravante no sentido de que a aplicação da Súmula nº 83 desta Corte adstringe-se aos recursos especiais interpostos com fundamento na letra "c" do permissivo constitucional. O sentido do verbete é mais amplo. Com efeito, se a jurisprudência do Tribunal já se firmou no mesmo sentido do acórdão recorrido, no que tange à interpretação de dispositivo da lei federal, não há conceber lhe tenha negado vigência. Daí a sua incidência aos recursos especiais fundados na letra ‘a’ do preceito constitucional permissivo. [30]

            Como se vê, pois, o fundamento utilizado pelo STJ para aplicar o verbete n.º 83 de sua Súmula como óbice ao conhecimento dos recursos especiais em que se alega contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal pode ser resumido na alegada ausência de interesse de agir do recorrente, ocasionada pela anterior interpretação daquele Tribunal quanto ao sentido da norma federal tida por contrariada [!].

            2.3 Sobre a falta de interesse de agir e sua inadequação para justificar a incidência do verbete n.º 83 aos recursos especiais da alínea "a"

            É equivocada a utilização da anterior interpretação de lei federal como requisito específico de admissibilidade do recurso especial fundado na contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal, pois isso implica violação direta ao art. 105, III, "a", da Constituição Federal. É que requisitos de admissibilidade são as exigências contidas na lei para que o recurso tenha suas razões apreciadas.

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            No caso do recurso especial da hipótese em questão, os requisitos específicos de admissibilidade, não é demais lembrar, estão na letra da própria Constituição Federal. Até se admite que a jurisprudência do STJ crie óbices ao conhecimento dos recursos, desde que, entretanto, eles sejam reflexo da exigência legal ou constitucional.

            É aceitável, também, embora com veementes protestos na doutrina, a utilização da chamada "jurisprudência dominante" do Tribunal como óbice ao conhecimento dos recursos. Todavia, nesse caso é a própria lei quem o permite, consoante pode ser observado nos art. 544, § 3º, e 557, caput e § 1º-A, do CPC.

            Mas não é só.

            Analise-se o problema sob o enfoque do interesse de agir, como expressado nos precedentes acima referidos.

            É cediço que o interesse de agir é uma das condições da ação, assim como a legitimidade das partes e a possibilidade jurídica do pedido. Ele encontra-se positivado no art. 3º do CPC, como condição indispensável à propositura ou contestação da ação. [31]

            Ainda segundo o Código de Processo Civil, a ausência do interesse de agir, pode acarretar o indeferimento da petição inicial por inépcia (art. 295, III), assim como a extinção do processo sem resolução de mérito (art. 267, VI).

            De acordo com a lição de Arruda Alvim, "o interesse de agir é, enquanto condição da ação, considerado sob o ângulo exclusivamente processual". [32]

            Trata-se, pois, de interesse dirigido à supressão do obstáculo colocado pelo réu ao livre exercício da pretensão do autor da ação, de molde a que o direito deste último possa novamente ser objeto de gozo e utilização normal. [33]

            Da jurisprudência do STJ, colhem-se os seguintes ensinamentos sobre o conceito de interesse de agir:

            [...] para a configuração do interesse processual, impõe-se a presença de utilidade do provimento, aferida pela necessidade da atividade jurisdicional e pela adequação do procedimento e do provimento desejados. [34]

            A doutrina processual brasileira concebe o direito de agir, uma das condições da ação, na esteira da lição de LIEBMAN, como a relação de utilidade entre a afirmada lesão de um direito e o provimento de tutela jurisdicional pedido. DINAMARCO, por sua vez afirma que essa utilidade depende da presença de dois elementos: a) - necessidade concreta do exercício da jurisdição; b) - adequação do provimento pedido e do procedimento escolhido à situação deduzida. [35]

            Na doutrina, é comum a associação das condições da ação aos requisitos de admissibilidade dos recursos, ao entendimento de que "o recurso é manifestação, no curso do procedimento, do direito de ação" [36], ou ainda, que "o recurso é um prolongamento do direito de ação e defesa" [37]. Assim, "à possibilidade jurídica do pedido corresponde o cabimento; à legitimação para a causa a legitimidade para recorrer; e ao interesse processual corresponde o interesse em recorrer." [38]

            Do ponto de vista das condições da ação, portanto, o interesse de agir requer a presença da utilidade e da necessidade do provimento jurisdicional buscado, o que, à toda prova, não deixa de existir, em sede de recurso especial, apenas e tão-somente porque a norma federal tido por contrariada já foi alvo de anterior interpretação pelo STJ.

            A propósito do assunto, muito embora haja uma correlação entre as condições da ação e os requisitos de admissibilidade recursais, como mencionado anteriormente, em nome da melhor técnica, o interesse de agir será tratado, a partir daqui, pelo seu correlato, o interesse em recorrer.

            Esse requisito de admissibilidade recursal, segundo clássica formulação elaborada por Barbosa Moreira em 1968 – e repetida exaustivamente pela doutrina – repousa no binômio necessidade e utilidade, esta da providência judicial pleiteada e aquela do recurso escolhido para obter essa providência:

            O interesse em recorrer, assim, resulta da conjugação de dois fatores: de um lado, é preciso que o recorrente possa esperar, da interposição do recurso, a consecução de um resultado a que corresponda situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que a emergente da decisão recorrida; de outro lado, que lhe seja necessário usar o recurso para alcançar tal vantagem. [39]

            Na mesma linha, Nelson Nery Júnior aduz que se o recorrente puder obter a vantagem pleiteada, sem a interposição do recurso, não estará presente o requisito do interesse recursal. [40]

            De igual modo, Nelson Luiz Pinto defende que o interesse em recorrer deve ser aferido diante do possível resultado que o recurso pode trazer ao recorrente, no plano do direito material ou apenas no processo, vale dizer, se é capaz de proporcionar-lhe situação melhor do que aquela em que se encontra diante da decisão impugnada. [41]

            Outra característica do interesse em recorrer, ainda segundo os autores acima citados, é a estreita relação com a idéia de sucumbência, gravame ou prejuízo, ensejadores da legitimidade para a interposição do recurso pela parte vencida, pelo Ministério Público, e pelo terceiro interessado, na forma estabelecida no art. 499 do CPC. A ressalva que se faz é que o prejuízo contra o qual o Ministério Público recorre diz respeito à correta aplicação da lei, diferente, portanto, do prejuízo suportado, em tese, pelo terceiro interessado e pela parte vencida.

            Na jurisprudência do STJ, vale conferir a lição do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira quanto ao assunto:

            Em regra, apenas o vencido tem interesse em recorrer, sabido que o interesse recursal envolve o binômio necessidade-utilidade do provimento judicial. É possível admitir-se, no entanto, a interposição de recurso pela parte vencedora, a depender do resultado prático que seu provimento ensejar. [42]

            No mesmo sentido, o Min. Adhemar Maciel exemplifica que: "se o acórdão impugnado tão-somente não conheceu da apelação interposta pela parte adversa, falta ao recorrente interesse recursal, tendo em vista a impossibilidade de o recurso trazer-lhe algum resultado prático vantajoso." [43]

            Como se vê, doutrina e jurisprudência convergem quanto à presença do binômio necessidade e utilidade, intrinsecamente ao conceito de interesse recursal.

            De outra parte, o estudo do interesse em recorrer torna-se mais interessante, segundo Nelson Luiz Pinto, quando examinado em função de uma espécie de recurso em particular, como no caso do recurso especial. [44]

            Assim, vale citar dois exemplos de ausência de interesse em recorrer que se repetem com freqüência no âmbito do STJ.

            O primeiro, é a ausência de interesse recursal do recorrente que interpõe apenas o recurso especial contra acórdão que possui fundamentos constitucionais e infraconstitucionais autônomos [45]: de nada adiantará o provimento do recurso especial, pois o acórdão permanecerá íntegro pelo fundamento constitucional inatacado, ou seja, o provimento do recurso não trará nenhum resultado prático ao recorrente, carecendo, portanto, de utilidade, na acepção emprestada ao termo por Barbosa Moreira [46].

            O segundo exemplo de ausência de interesse recursal é o do agravo do art. 545 do CPC, que deixa de impugnar todos os fundamentos autônomos da decisão agravada [47]: nesse caso o recurso também não será conhecido por lhe faltar utilidade, pois o seu provimento também não trará nenhum resultado prático ao agravante, em razão da decisão agravada se sustentar pelo fundamento não impugnado.

            Por tudo que foi dito até aqui, salta aos olhos que a aplicação do enunciado n.º 83/STJ como óbice ao conhecimento do recurso especial pela alínea "a" do permissivo constitucional – com base apenas na alegada ausência do interesse em recorrer, advinda da anterior interpretação de lei federal – não se sustenta do ponto de vista da doutrina e da própria jurisprudência do STJ.

            É que, como se acaba de demonstrar, na citada hipótese de cabimento do recurso especial, o requisito de admissibilidade do interesse recursal está ligado à necessidade do STJ pronunciar-se, diante das especificidades do caso concreto submetido a sua apreciação, sobre a provável contrariedade ou negativa de vigência à norma federal questionada.

            Já a utilidade do meio utilizado para tanto – o recurso especial da alínea "a" do permissivo constitucional –, em tese, presentes os demais requisitos de admissibilidade, preencherá as condições exigidas pela lei e pela Constituição Federal para o exercício do juízo de admissibilidade pelo julgador.

            Ademais, nada impede que, diante das razões deduzidas no recurso especial, o relator ou o órgão colegiado despertem para outro sentido possível de interpretação da norma, como, aliás, tem ocorrido com certa freqüência diante da renovação dos órgãos colegiados, com a chegada de novos ministros em substituição a outros que se afastaram do Tribunal.

            A título de exemplo, vale citar dois casos recentes e de grande repercussão no direito subjetivo das partes.

            No primeiro deles, discutia-se qual o conceito de pessoa jurídica para os fins do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor: após muitas idas e vindas, amplos debates e incontáveis recursos especiais não conhecidos sob a alegada existência de jurisprudência dominante sobre o tema, a questão foi resolvida em favor de um meio termo entre as correntes denominadas "finalista" e "maximalista". [48]

            O segundo exemplo é a discussão acerca do prazo prescricional para o contribuinte pleitear a restituição do indébito tributário dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, consoante o art. 168 do Código Tributário Nacional. Da mesma forma que no exemplo anterior, após amplos debates e incontáveis recursos especiais não conhecidos sob a alegada existência de jurisprudência dominante, decidiu-se que o prazo seria de cinco anos a partir da homologação, expressa ou tácita, da Fazenda Pública. [49]

            Confiram-se, ainda, quanto à constante mutação do entendimento jurisprudencial sobre determinada norma jurídica, as palavras de Miguel Reale:

            Esse trabalho de mutação do conteúdo legal obedece a fatores de ordem técnica, econômica, demográfica, geográfica, etc. bem como sofre a pressão de motivos axiológicos, o que confirma a nossa tese de que toda norma é uma integração dinâmica de fatos e valores.

            A jurisprudência é dessas realidades jurídicas que, de certa maneira, surpreendem o homem do povo. O vulgo não compreende nem pode admitir que os tribunais, num dia julguem de uma forma e, pouco depois ou até mesmo num só dia, cheguem a conclusões diversas, em virtude das opiniões divergentes dos magistrados que os compõem. [...] É da natureza da jurisprudência a possibilidade desses contrastes, que dão lugar a formas técnicas cada vez mais aperfeiçoadas de sua unificação. [50]

            Como se vê, também por esse ângulo o novo requisito de admissibilidade [!] criado pelo STJ para o recurso especial da alínea "a" do permissivo constitucional – a inexistência de anterior interpretação da norma federal tida por contrariada – não resiste a uma análise mais acurada à luz da doutrina e da jurisprudência.

            Contudo, impõe-se, ainda, encarar a questão da anterior interpretação de dispositivos de lei federal – enquanto novo requisito de admissibilidade [!] – do ponto de vista da função primordial do STJ, qual seja, velar pela uniformidade do direito federal.

            O constituinte de 1988, ao conceder ao STJ o status de guardião maior do Direito federal, deixou expresso que o exercício de tão nobre função se daria pela competência recursal especial, estabelecida no art. 105, III, alíneas "a", "b" e "c".

            Sobre a competência recursal especial do STJ, salienta Carlos Velloso:

            Esta é a competência mais importante do Superior Tribunal de Justiça, justamente a competência que realizará a vontade da Constituição, que é fazer do Superior Tribunal de Justiça o guardião maior do direito federal no Estado Federal brasileiro. Essa competência especial está assim inscrita no art. 105, III, "a", "b"e "c", da Constituição [...]. [51]

            Por óbvio que, se o constituinte "originário" entendeu por bem dividir essa competência em três hipóteses distintas de exercício, foi porque considerou que a espécie da alínea "a" é diversa daquelas estabelecidas nas outras duas alíneas e, por isso mesmo, merecia tratamento diferenciado.

            Ora, é importante que se diga, a hipótese prevista na alínea "a" já existia em relação à competência do STF na anterior ordem constitucional, de forma mais restrita, referindo-se apenas à negativa de vigência. Deliberadamente, portanto, o constituinte de 1988 quis repeti-la para o recurso especial, agora de forma mais abrangente e independente da função desenvolvida nas outras duas alíneas – "b" e "c" – respectivamente. Confira-se, novamente, a observação de Carlos Velloso quanto ao tema:

            A Constituição de 1988, ao estatuir, na letra "a" do inciso III do art. 105, como pressuposto do recurso especial, não somente negar vigência a tratado ou lei federal, mas, também, contrariar tratado ou lei federal, pôs termos a qualquer controvérsia que ainda pudesse existir, deixando nítida a intenção de alargar, conforme falamos, o raio de ação do recurso extraordinário, que denomina de recurso especial e que será julgado pelo S.T.J. [52]

            Nos primórdios da instalação do Tribunal, respeitáveis vozes se levantaram exatamente em sentido contrário, vale dizer, afirmando que a alínea "a" esvaziaria as demais:

            [...] Nas demais hipóteses, pode se conceber que a decisão recorrível seja, indiferentemente, certa ou errada; na letra a, principio, não. Ressalta a diferença, quando se confronta este dispositivo com o da letra c. Acórdão que deu a lei federal interpretação divergente da adotada por outro tribunal não é, necessariamente, acórdão errado: sua interpretação será talvez preferível à do acórdão do outro tribunal. A presença da característica apontada na letra c não implica que o recorrente tenha razão em pleitear a reforma ou a anulação do acórdão, a fim de que prevaleça a interpretação dada à lei federal pelo acórdão de que aquele divergiu. É perfeitamente possível que a divergência haja de resolver-se em favor do acórdão recorrido, que interpretou a norma de maneira correta.

            Se, porém, o acórdão recorrido contrariou tratado ou lei federal, excluída fica a possibilidade de ser ele certo. A presença da característica apontada na letra a, principio, implica por si só que o recorrente tem razão em pleitear a reforma ou a anulação do acórdão recorrido. [53]

            No mesmo sentido, afirmou Eduardo Ribeiro de Oliveira:

            Creio que a verdadeira configuração do recurso resultará da compreensão que se tiver de sua admissibilidade, quando fundado na contrariedade à lei. Consoante a largueza que se lhe empresta, diminuirá, sensivelmente de importância o contido na letra c, a propiciar conhecimento do especial, ocorrendo dissídio de jurisprudência. [...] a hipótese aí prevista poderá ser, na prática, quase absorvida pela alínea a. [54]

            Estranha, portanto, a conduta do STJ em, utilizando o enunciado n.º 83 de sua Súmula, revogar tacitamente a hipótese de cabimento recursal da alínea "a" do permissivo constitucional e não conhecer do recurso especial em que se alega contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal, com base apenas na anterior interpretação da norma lei federal tida por contrariada.

            Por fim, cumpre lembrar que nem mesmo lei ordinária ou complementar poderia alterar o alcance das hipóteses de cabimento do recurso especial previstas expressamente no texto constitucional. Apenas por Emenda à Constituição isso seria possível.

            A título de exemplo, vale citar que, quando entendeu que a hipótese de cabimento recursal da alínea "b" do autorizativo constitucional – declarar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal – refletia, na verdade, controvérsia de cunho constitucional, a ser dirimida pelo STF e não pelo STJ, o legislador, no bojo da Emenda Constitucional n.º 45, de 2004, retirou a menção à lei federal da alínea "b" do inciso III do art. 105 e colocou-a na alínea "d" do inciso III do art. 102, ambos da Constituição Federal.

            A aplicação do enunciado n.º 83/STJ ao recurso especial da alínea "a" do permissivo constitucional viola diretamente, por si só, o art. 105, III, "a", da Constituição Federal.

            Isso, sem perder de vista que a competência privativa dos tribunais está limitada à "[...] elaboração de seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes [...]", nos termos do disposto na alínea "a" do inciso I do art. 96 da Carta Magna.

            Diferente seria, a nosso ver, se, ao invés de não conhecer – pura e simplesmente – do recurso especial pela aplicação do enunciado n.º 83 de sua Súmula, o STJ conhecesse do recurso e lhe negasse provimento, ainda que fosse para afirmar que a tese jurídica defendida pelo recorrente se encontra pacificada no âmbito do Tribunal, expondo, de forma dialética e pormenorizada, tal qual é exigido das partes, os fundamentos jurídicos que demonstrariam a assertiva.

            A diferença entre uma e outra conduta é sutil e se revela nos efeitos produzidos à luz do princípio do devido processo legal, como será demonstrado adiante.

Sobre o autor
Edson da Silva Santos

servidor público federal do Superior Tribunal de Justiça, assistente jurídico no gabinete do ministro Francisco Peçanha Martins

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Edson Silva. Enunciado nº 83 da Súmula do STJ.: Aplicação ao recurso especial do art. 105, III, "a", da Constituição Federal. Violação ao devido processo legal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1226, 9 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9143. Acesso em: 18 dez. 2024.

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Monografia jurídica elaborada como requisito para a conclusão do curso de bacharelado em Direito do UniCEUB.

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