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Enunciado nº 83 da Súmula do STJ.

Aplicação ao recurso especial do art. 105, III, "a", da Constituição Federal. Violação ao devido processo legal?

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Agenda 09/11/2006 às 00:00

3 ASPECTOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

            O devido processo legal foi adotado no Brasil sob a influência da experiência norte americana com a chamada cláusula do due process of law que, por sua vez, teve origem na Magna Carta inglesa. [55]

            Na sua gênese, o devido processo legal trazia a idéia de limitação ao poder do Estado, principalmente no campo dos direitos e garantias fundamentais do homem, era a denominada dimensão substancial do devido processo legal.

            Por muito tempo ele foi considerado mera garantia processual pela comunidade jurídica brasileira, naquilo que a doutrina intitulou dimensão processual do devido processo legal.

            Evoluiu, em razão, principalmente, do trabalho desenvolvido pelo Judiciário e pelos doutrinadores nacionais que, percebendo a rica elaboração judicial norte-americana em torno da cláusula, bem assim em outros países europeus, passaram a empreender um trabalho de investigação sistemática, integrando-o em nosso ordenamento. [56]

            A Constituição Federal de 1988, de forma inovadora, trouxe expressamente para o ordenamento jurídico brasileiro a positivação do devido processo legal, ao dispor em seu art. 5º, LIV, que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal."

            Apesar do caráter substancial com o qual foi introduzido no nosso Direito, importa neste trabalho a abordagem dos aspectos do devido processo legal relacionados ao Direito Processual Civil, mais especificamente aos seus reflexos no âmbito do juízo de admissibilidade do recurso especial fundado na contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal.

            3.1 Devido processo legal e princípios constitucionais adjacentes

            No âmbito do Processo Civil, o princípio constitucional do devido processo legal revela sua excelência, estabelecendo as formas a serem observadas nos diversos procedimentos judiciais, como garantia dos cidadãos contra decisões casuísticas e injustas. A respeito, veja-se a lição de Maria Rosynete de Oliveira Lima:

            No ordenamento jurídico nacional este é o aspecto mais difundido do devido processo legal. Em outras palavras, existente determinado procedimento regulado pelo Estado, como pressuposto para a intervenção nos bens tutelados pela cláusula, este deve ser cuidadosamente observado, sob pena de invalidar o ato pretendido.

            Exemplos de fácil apreensão encontramos nos procedimentos desapropriatórios, e nos procedimentos penais, para aplicação de sanções privativas ou restritivas de liberdade. Em quaisquer deles, a inobservância das etapas processuais estabelecidas pode conduzir à invalidação do ato. [57]

            A professora chama a atenção, ainda, para a perspectiva intrínseca do devido processo legal procedimental que, pela pertinência com o objeto do presente estudo, também merece ser transcrita:

            A constitucionalização das garantias processuais verificada neste século tem um objetivo primordial que é a realização do princípio da Justiça, reconhecido em nosso Texto Constitucional (Preâmbulo) como um valor superior de nosso ordenamento. O processo converte-se assim, segundo Eduardo J. Couture, no meio de realização da justiça.

            A verificação das etapas ritualísticas processuais estabelecidas na lei, em princípio aptas a justificar a atuação restritiva do Estado nos bens sob a sua proteção, não representa, contudo, a completude do devido processo legal procedimental. É, como diz José Luis Muga Muñoz "não basta proporcionar ao cidadão um procedimento correto, é preciso que este procedimento esteja com base requisitos intrinsecamente justos." [58]

            Em conhecida obra sobre o tema, Nelson Nery Júnior defende posição de que o devido processo legal é o princípio fundamental do processo civil, base sobre a qual todos os outros se sustentam. [59]

            Bastaria, ainda segundo o autor, que a norma constitucional houvesse adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. O devido processo legal seria, assim, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies. [60]

            Nelson Nery Júnior relaciona, por fim, os princípios processuais derivados do devido processo legal contidos expressa ou implicitamente na Constituição Federal de 1988, a maior parte deles no rol dos direitos e garantias fundamentais, a saber: a) da isonomia (art. 5º, caput e inciso I); b) do juiz e do promotor natural (art. 5º, XXXVII e LIII); c) da inafastabilidade do controle jurisdicional ou do direito de ação (art. 5º, XXXV); d) do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV); e) da proibição da prova ilícita (art. 5º, LVI); f) da publicidade dos atos processuais (arts. 5º, LX e 93, IX); g) do duplo grau de jurisdição (garantido implicitamente); e h) da motivação das decisões judiciais (art. 93, IX). [61]

            Como se vê, é intuitivo que esses princípios incidirão em maior ou menor amplitude no tocante aos recursos, de forma mais abrangente na instância ordinária, e de maneira mais limitada nas instâncias especial e extraordinária. Assim, v. g., o princípio do duplo grau de jurisdição que não incidirá no exercício da competência recursal especial do Superior Tribunal de Justiça.

            3.2 Reflexos do devido processo legal no juízo de admissibilidade dos recursos especiais da alínea "a"

            A atividade do julgador no tocante ao exercício do juízo de admissibilidade do recurso especial, vale repetir, consiste em verificar a presença dos requisitos comuns a todos os recursos e dos pressupostos constitucionais previstos no art. 105, caput e inciso III, da Constituição Federal de 1988.

            Dentre os pressupostos constitucionais ou requisitos específicos de admissibilidade do recurso especial o mais importante é o cabimento que, segundo Rodolfo de Camargo Mancuso pode aglutinar os demais requisitos. [62]

            Sobre os limites da atuação do julgador no tocante ao juízo de admissibilidade do recurso especial, confira-se a percuciente lição de Nelson Nery Júnior:

            [...] não poderá haver limitação ao cabimento do recurso especial ou extraordinário, como era permitido no sistema revogado (art. 119, § 1º, CF de 1969), porque a atual Constituição Federal não estipulou nenhuma restrição. Os requisitos estão no próprio texto constitucional e somente eles devem ser exigidos do recorrente para que sejam conhecidos os recursos extraordinário e especial.

            [...]

            Hoje não há nenhuma previsão constitucional ensejadora de limitação ou vedação ao cabimento quer do recurso especial, quer do recurso extraordinário, de sorte que o legislador infraconstitucional não tem autorização para restringir o acesso ao STF e STJ, impondo barreiras ao cabimento dos recursos extraordinário e especial.

            Somente por emenda constitucional é que se poderiam estabelecer restrições ao cabimento dos recursos extraordinários e especial, a exemplo do que ocorria no sistema constitucional revogado com o expediente da argüição de relevância da questão federal.

            A circunstância que faz nascer o direito aos recursos especial e extraordinário é a simples alegação da parte de que o acórdão do tribunal inferior violou a lei federal ou a Constituição. A efetiva violação da Lei Maior ou da Federal é o mérito dos recursos especial e extraordinário. [63]

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            O princípio constitucional do devido processo legal, portanto, impõe limites à atividade a ser exercida pelo julgador por ocasião da admissibilidade do recurso especial em que se alega contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal.

            O julgador deve observar, nessa fase de sua atividade jurisdicional, se foram preenchidos os requisitos da tempestividade, preparo, regularidade formal, etc., comuns a todos os recursos e, quanto aos pressupostos específicos, deve se limitar rigorosamente à expressa previsão do art. 105, caput e inciso III, v.g., averiguar se a questão federal foi decidida em única ou última instância, se há alegação razoável de contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal, e se a questão devolvida à apreciação do STJ é puramente de direito, condição inerente à própria função do Tribunal.

            Mais do que isso, importa violar os princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição e do contraditório e ampla defesa, corolários que são do devido processo legal.

            3.3 Análise crítica

            A aplicação do enunciado n.º 83 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça ao recurso especial em que se alega contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal, tendo como único e exclusivo fundamento a anterior interpretação do Tribunal quanto ao sentido da norma federal questionada, é reflexo da crescente influência da jurisprudência na interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.

            Segundo Carlos Maximiliano, na teoria, o papel da jurisprudência no Brasil, assim como nos demais países que adotaram o modelo romano-germânico de ordenamento jurídico, é o de auxiliar o juiz, como elemento de hermenêutica e aplicação do Direito, tradição que vem desde o tempo do domínio português até o presente. [64]

            O estilo de julgar e a prática geral, ainda segundo o consagrado exegeta, são os melhores intérpretes das leis, preenchendo as lacunas, indicando soluções adequadas às necessidades sociais, evitando que uma questão doutrinária fique eternamente aberta, dando margem a novas demandas, diminuindo, portanto, os litígios e reduzindo ao mínimo os inconvenientes da incerteza do Direito, porque de antemão faz saber qual será o resultado das controvérsias. [65]

            Na prática, entretanto, o doutrinador observa e faz severas críticas a um curioso fenômeno já adotado pelos operadores do direito de sua época:

            Em virtude da lei do menor esforço e também para assegurarem os advogados o êxito e os juízes inferiores a manutenção das suas sentenças, do que muitos se vangloriam, preferem, causídicos e magistrados, às exposições sistemáticas de doutrina jurídica os repositórios de jurisprudência. Basta a consulta rápida a um índice alfabético para ficar um caso liquidado, com as razões na aparência documentadas cientificamente. Por isso os repertórios de decisões em resumo, simples compilações, obtêm esplendido êxito de livraria.

            Há verdadeiro fanatismo pelos acórdãos: dentre os freqüentadores dos pretórios, são muitos os que se rebelam contra uma doutrina; ao passo que rareiam os que ousam discutir um julgado, salvo por dever de ofício, quando pleiteiam a reforma do mesmo. Citado um aresto, a parte contrária não se atreve a atacá-lo de frente, prefere ladeá-lo, procurar convencer de que não se aplica à hipótese em apreço, versara sobre caso diferente.

            [...]

            Quando a lei é nova, ainda os seus aplicadores atendem à teoria, compulsam tratados, apelam para o Direito Comparado; desde, porém, que aparecem decisões a propósito da norma recente, volta a maioria ao trabalho semelhante à consulta a dicionários. ‘Copiam-se, imitam-se, contam-se os precedentes; mas de pesá-los não se cuida’. Desprezam-se os trabalhos diretos sobre os textos; prefere-se a palavra dos profetas às tábuas da lei.

            O processo é erradíssimo. Os julgados constituem bons auxiliares de exegese, quando manuseados criteriosamente, criticados, comparados, examinados à luz dos princípios, com os livros de doutrina, com as exposições sistemáticas do Direito em punho. A jurisprudência, só por si, isolada, não tem valor decisivo, absoluto. Basta lembrar que a formam tanto os arestos brilhantes, como as sentenças de colégios judiciários onde reinam a incompetência e a preguiça. [66]

            Imbuído do mesmo espírito crítico-observador, Miguel Reale registrou semelhante preocupação com esse curioso fenômeno: "se é um mal o juiz que anda à cata de inovações, seduzido pelas ‘últimas verdades’, não é mal menor o julgador que se converte em autômato a serviço de um fichário de arestos dos tribunais superiores." [67]

            Segundo Barbosa Moreira, o marco fundamental da influência da jurisprudência no Brasil ocorreu em 1963, com a criação da Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal por iniciativa do Ministro Victor Nunes Leal, inspirada no propósito de atenuar o crônico problema da sobrecarga de trabalho da Corte Suprema e, indiretamente, do Judiciário como um todo. [68]

            Ainda sobre a criação da Súmula da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Athos Gusmão Carneiro relata que seu objetivo era dar ao conhecimento geral sua "jurisprudência dominante" sobre temas polêmicos e de maior interesse, resumindo-a em enunciados breves. [69]

            Na nova ordem constitucional, inaugurada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o legislador atribuiu eficácia erga omnes e efeito vinculante às decisões definitivas de mérito do Supremo Tribunal Federal, proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, consoante disposto no art. 102, § 2º, da Carta Maior, na redação acrescentada pela Emenda Constitucional n.º 3, de 1993:

            as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

            Posteriormente, a Emenda Constitucional n.º 45, de 2004, veio acrescentar o art. 103-A à Constituição Federal, positivando o chamado efeito vinculante aos enunciados da Súmula do Supremo Tribunal Federal, aprovados com a observância dos pressupostos ali enumerados. No particular, a matéria ainda se encontra pendente de regulamentação, pois a lei mencionada na parte final do caput do referido dispositivo constitucional ainda não foi editada pelo Poder Legislativo.

            Se o chamado efeito vinculante já é uma realidade no que se refere aos julgados proferidos pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade, o mesmo não se pode afirmar, pelo menos por enquanto, no tocante às demais decisões da Corte Suprema e do STJ.

            Nada obstante, no âmbito da legislação infraconstitucional, o legislador pátrio tem implementado significativas mudanças do papel exercido pela jurisprudência na aplicação do direito ao caso concreto, a partir da ampliação dos poderes do relator, levada a efeito pelo art. 38 da Lei n.º 8.038/90:

            O Relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou, improcedente ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal.

            A exigência legal, mais rigorosa inicialmente – de súmula do STF ou do STJ como condição indispensável para que o recurso pudesse ter seguimento negado pelo relator mediante decisão monocrática – aos poucos foi sendo mitigada.

            A Lei n.º 9.139/95, alterando o art. 557 do CPC, estendeu a todos os tribunais do país a possibilidade de o relator negar seguimento a qualquer recurso contrário à súmula do respectivo tribunal ou de tribunal superior [70]. Apesar da sutileza na redação do referido dispositivo, a citada Lei elevou sobremaneira a importância do papel desempenhado pela jurisprudência na aplicação do direito, ao mencionar que a súmula do respectivo tribunal – e não mais apenas do STF ou do STJ - era o bastante para que o relator negasse seguimento ao recurso.

            Dando seqüência às reformas implementadas no procedimento dos recursos e eliminando o critério objetivo que a exigência de entendimento sumulado representava até então, a Lei n.º 9.756/98 estabeleceu apenas a mera existência de jurisprudência dominante no respectivo tribunal como sendo suficiente para que o relator, além de negar seguimento ao recurso, também lhe desse provimento por meio de decisão monocrática.

            A Lei n.º 9.756/98 afastou, igualmente, a exigência de entendimento sumulado enquanto critério objetivo e, tomando por base apenas a subjetiva idéia de jurisprudência dominante do tribunal sobre a questão suscitada, concedeu autorização ao relator do conflito de competência para decidi-lo de plano. [71]

            A despeito das muitas discussões doutrinárias provocadas com as alterações introduzidas pela Lei n.º 9.756/98 no Código de Processo Civil, interessa ao objeto deste estudo registrar a crescente importância da influência da jurisprudência na aplicação do direito ao caso concreto, não mais como auxiliar e elemento de hermenêutica, como defendido por Carlos Maximiliano, mas, por vezes, como único fundamento da decisão judicial. [72]

            Sobre as inovações da Lei n.º 9.756/98 e do debate acerca daquilo que ficou conhecido no meio jurídico como "súmula vinculante", expressa Barbosa Moreira:

            Vamos aqui limitar-nos a uma reflexão irônica. Quanta tinta se tem gasto (a imagem, reconhecemos, é obsoleta na era da informática, em que ninguém mais usa tinta para escrever...) no debate entre os partidários e os adversários da reforma constitucional destinada a atribuir eficácia vinculante a proposições inspiradoras de precedentes nos mais altos tribunais do país! Pois bem: sem precisão de emenda, a vinculação, para fins práticos, em boa medida vai-se insinuando, pé ante pé, sorrateiramente, como quem não quer nada, e não apenas em benefício de teses "sumuladas", senão até das simplesmente bafejadas pela preferência da maioria dos acórdãos.

            Emenda constitucional, para estabelecer que as Súmulas, sob certas condições, passarão a vincular outros órgãos judiciais? Ora, mas se já vamos além, e ao custo – muito mais baixo – de meras leis ordinárias (será que somente na acepção técnica da palavra?). O mingau está sendo comido pelas beiradas, e é duvidoso que a projetada emenda constitucional ainda encontre no prato o bastante para satisfazer seu apetite.... [73]

            Retomando, a propósito, o que se disse no início deste tópico, o curioso fenômeno observado por Carlos Maximiliano [74] e por Miguel Reale [75] foi reforçado pelas recentes reformas do CPC e inovações implementadas pela informática no cotidiano dos tribunais pátrios. A limitação física e os inconvenientes das demoradas consultas aos "índices alfabéticos" e "fichário de arestos dos tribunais superiores" já não representam dificuldade na propagação do denominado "fanatismo por acórdãos". A esse respeito, observa Barbosa Moreira:

            Em nosso país, quem examinar os acórdãos proferidos, inclusive pelos tribunais superiores, verificará que, na grande maioria, a fundamentação dá singular realce à existência de decisões anteriores que hajam resolvido as questões de direito atinentes à espécie sub judice. Não raro, a motivação reduz-se à enumeração de precedentes: o tribunal dispensa-se de analisar as regras legais e os princípios jurídicos pertinentes – operação a que estaria obrigado, a bem da verdade, nos termos do art. 458, nº II, do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos nos termos do art. 158 – e substitui o seu próprio raciocínio pela mera invocação de julgados anteriores. Escusado aditar que outro tanto vale, a fortiori, para os juízos de primeiro grau. [76]

            E é nesse contexto que surge a inesperada conduta do STJ em, utilizando-se do enunciado 83 de sua Súmula, revogar tacitamente a hipótese de cabimento do recurso especial pela alínea "a" do permissivo constitucional, deixando de conhecer do apelo em que se alega contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal apenas porque anteriormente já se pronunciou sobre o sentido da norma federal tida por violada.

            Inesperada conduta porque a redação do verbete sumular permanece a mesma desde sua aprovação na sessão da Corte Especial realizada no dia 18.06.1993: "não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida". [grifo nosso]

            Ora, por expressa disposição constitucional, o recurso especial "pela divergência" não é o da alínea "a", mas sim o da alínea "c" do art. 105, III, da Constituição Federal.

            Assim, os ministros do STJ caminham em sentido contrário à Constituição e ao ordenamento jurídico como um todo, ao aplicar um enunciado da Súmula do Tribunal a uma hipótese nele não prevista, revogando tacitamente o cabimento do recurso especial pela alínea "a" do permissivo constitucional.

            Essa conduta surpreende a parte recorrente, que interpôs seu recurso especial consciente de que estavam preenchidos os requisitos da lei e da Constituição Federal para que ele fosse conhecido. Demais disso, o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça prevê no § 1º do art. 125 que "qualquer dos Ministros poderá propor, em novos feitos, a revisão da jurisprudência compendiada na súmula, sobrestando-se o julgamento, se necessário." Providencia até hoje não tomada em relação ao enunciado n.º 83/STJ.

            Logo, ao invés de revogar implicitamente a hipótese de cabimento do recurso especial pela alínea "a" do permissivo constitucional, tal como tem sido feito, seria mais justo com as partes e atenderia ao princípio do devido processo legal alterar o enunciado n.º 83/STJ, substituindo a expressão "não se conhece" por "negar-se-á provimento", bem como para eliminar a referência à expressão "pela divergência".

            A nova redação, portanto, ficaria assim: "negar-se-á provimento ao recurso especial, quando a orientação do tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida".

            Essa alteração se faz necessária porque a imprecisão técnica aliada à automática referência ao enunciado n.º 83/STJ acarretam o imediato não-conhecimento do recurso especial, retirando do recorrente a via dos embargos de divergência, recurso previsto expressamente no inciso VIII do art. 496 do CPC e regulamentado no art. 266 do Regimento Interno do STJ, único remédio de que a parte dispõe para demonstrar que a alegada orientação firmada no Tribunal quanto ao sentido da norma federal tida por violada encontra divergência entre seus próprios órgãos julgadores.

            É que, em tal situação, como não foi analisada nenhuma tese jurídica, dado o não-conhecimento do recurso especial, a Corte Especial do STJ firmou orientação no sentido de que sejam rejeitados liminarmente os embargos de divergência versando sobre a questão:

            [...] limitando-se este Tribunal a manter decisão de indeferimento do Recurso Especial, apoiada em precedentes desta C. Corte Superior, não há ensejo à oposição de Embargos de Divergência, consoante posicionou-se a Eg. Corte Especial [...]. [77]

            De outro lado, abstraindo dos aspectos controvertidos que envolvem a questão atinente aos poderes do relator, e centrando apenas na previsão normativa dos arts. 544, § 2º e 557, caput e § 1º-A do CPC, no que se refere à possibilidade de utilização da jurisprudência dominante como óbice ao conhecimento do recurso especial fundado na alínea "a" do permissivo constitucional, cumpre esclarecer que a diferença da utilização desses dispositivos legais, quando comparada com a utilização do enunciado n.º 83/STJ, é sutil e diz respeito às conseqüências para o direito das partes de acesso ao Poder Judiciário.

            Assim, caso o relator, referendado posteriormente pelo órgão colegiado, negue seguimento ao recurso especial, sob o fundamento de que, no tocante à norma federal questionada, o acórdão recorrido se encontra em harmonia com a jurisprudência do STJ, estará aberta ao recorrente a via dos embargos de divergência, do recurso extraordinário – se desse entendimento acarretar violação direta ao texto da Constituição Federal – e, ainda, de eventual ação rescisória.

            Do contrário, se o relator, com base no mesmo entendimento, não conhece do recurso especial mediante a utilização do enunciado n.º 83/STJ, será quase impossível ao recorrente comprovar que houve pronunciamento quanto ao mérito da tese jurídica deduzida no recurso especial, pois a observação da jurisprudência do STJ revela que se invocará a literalidade do citado enunciado como óbice ao conhecimento dos embargos de divergência e ao seguimento de eventual recurso extraordinário para o STF e, por último, de ação rescisória, na linha, aliás, do que tem feito a Corte Especial, como demonstrado no precedente antes transcrito.

            Há que se analisar, ainda, a situação à luz do princípio da economia processual, escudo que tem servido de proteção a condutas tais como a adotada pelo STJ com a aplicação do enunciado n.º 83 de sua Súmula ao recurso especial da alínea "a". No particular, registra Márcia Dometila Lima de Carvalho, em artigo que, embora se referisse a outros enunciados da Súmula do STJ, aplica-se integralmente ao objeto deste estudo:

            O princípio da economia processual não tem aplicação no caso porque ofenderia a lei e outros que lhe são hierarquicamente superiores. [...] e nem se argumente, vale repisar, que o princípio da economia processual, de cunho meramente instrumental, estaria prestigiando as súmulas em questão. Este há de ser aplicado em consonância com princípios outros de Direito, devendo ser, necessariamente, afastado quando colide com princípios de cunho constitucional, material, princípios de garantia, como são os princípios do acesso à justiça, da legalidade, da obrigatoriedade da prestação jurisdicional, do devido processo legal, da independência dos poderes, todos feridos por esse acréscimo feito à lei pelas súmulas sob comento.

            [...]

            O fato, até aqui descrito e demonstrado, é grave e coroa uma série de interpretações dos Tribunais Superiores que criando, já no dizer doutrinário, armadilhas, evitam o conhecimento, por eles, de litígios de partes menos favorecidas e que, pela Constituição, teriam direito a vê-los examinados seja pelo ângulo da legalidade, no caso do Superior Tribunal de Justiça, seja pelo ângulo da constitucionalidade, no caso do Supremo Tribunal Federal.

            [...]

            O certo é que, como está, o acesso aos Tribunais Superiores tornou-se luxo de alguns e não direito dos cidadãos comuns. Se o volume de recursos para aqueles Tribunais tornou as suas prestações jurisdicionais inviáveis, que essa inviabilidade seja resolvida de outra forma, mais democrática, jamais com a criação de dificuldades que elitizem o seu acesso, afastando os cidadãos menos favorecidos, os quais, (quem sabe, já que os seus direitos não se quis conhecer?); talvez, no mérito das suas lides, sumariamente espancadas, estivessem com o melhor direito. [78]

            Patente, portanto, que a utilização do enunciado n.º 83 da Súmula do STJ como óbice ao conhecimento do recurso especial interposto com fundamento na contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal – alínea "a" do permissivo constitucional – viola o princípio constitucional do devido processo legal, entre outros, conforme citado no artigo acima transcrito.

Sobre o autor
Edson da Silva Santos

servidor público federal do Superior Tribunal de Justiça, assistente jurídico no gabinete do ministro Francisco Peçanha Martins

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Edson Silva. Enunciado nº 83 da Súmula do STJ.: Aplicação ao recurso especial do art. 105, III, "a", da Constituição Federal. Violação ao devido processo legal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1226, 9 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9143. Acesso em: 15 nov. 2024.

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Monografia jurídica elaborada como requisito para a conclusão do curso de bacharelado em Direito do UniCEUB.

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