e) Extrafiscalidade e o aumento, redução ou manutenção da carga tributária
Outra classificação possível da extrafiscalidade diz respeito à carga tributária. Verifica-se extrafiscalidade nos agravamentos fiscais (com aumento da carga tributária) e nos benefícios fiscais (estes com redução - alívios fiscais - ou manutenção da carga tributária).
Esta classificação tem estreita relação com a apresentada no tópico anterior, pois quando se trata de elevação de tributos, há tendência a haver desestímulo a comportamentos; ao contrário, se se trata de redução de tributos, pensa-se intuitivamente em estímulos a condutas. Por fim, havendo manutenção de carga tributária, a tendência é de não haver estímulo nem desestímulo a comportamentos.
A correspondência não é absoluta, mas permite, de plano, uma comparação: um conceito restrito de extrafiscalidade seria incapaz de explicar institutos tributários que realizassem valores sem que houvesse aumento ou redução de carga tributária.
Vejamos o que se passa nos agravamentos fiscais e nos benefícios fiscais com ou sem redução da carga tributária.
Nos agravamentos fiscais, o fenômeno é de simples compreensão. Ocorre quando o legislador torna a carga tributária progressivamente mais elevada em razão do tempo do valor da base de cálculo. Ocorre, também, quando a tributação é seletivamente mais severa conforme a essencialidade ou a localização do objeto tributado ou conforme a intensidade de mão-de-obra utilizada pelo contribuinte. Com isso, visa, em regra, desestimular algum comportamento.
Quanto aos benefícios fiscais, são notórios os exemplos de extrafiscalidade com redução da carga, tais quais os que se operam mediante isenções, créditos presumidos, redução da alíquota ou da base de cálculo, entre outros.
Menos reconhecidos são os benefícios sem redução da carga tributária.
Para exemplificar, tratemos de dois institutos: o REFIS (que representa as demais formas de parcelamento) e o benefício fiscal à cultura (do art. 18 da Lei Rouanet e do art 3° da Lei 12.733/97 do Estado de Minas Gerais).
O REFIS (Lei nº 9.964/2.000) visa à regularização de crédito fiscal da União, mas permite a regularização fiscal de empresas devedoras. Fincado no valor da livre iniciativa, facilita que empresas em dificuldade se reorganizem, quando a seqüência ordinária de atos administrativos fiscais levaria à propositura da execução forçada dos débitos, cobrados de uma só vez, com a possível expropriação dos bens do devedor.
O REFIS, assim como os parcelamentos em geral, traz facilidades para que empresas devedoras se reestruturarem financeiramente, com a nítida vantagem em relação aos contribuintes adimplentes que sofreram a pressão de arcar com a pontualidade no cumprimento das obrigações tributárias.
Não obstante, o REFIS e, em regra, os parcelamentos, não reduzem a carga tributária. Implicam simplesmente a postergação do pagamento da tributação originária. Mesmo sem a diminuição da carga tributária, o efeito extrafiscal de recuperação da empresa devedora é evidente.
A pouca doutrina sobre essas formas de parcelamento, não aborda seus efeitos extrafiscais. A jurisprudência acerca do assunto também é rara. Porém, perpassando o tema, cita-se a decisão do STJ no RESP 396044 / RS que destaca, lado a lado, a modalidade de parcelamento do REFIS e sua "função social", deixando transparecer a extrafiscalidade do instituto [10].
Outro exemplo de extrafiscalidade sem a redução da carga tributária são leis de incentivo à cultura que apresentam o seguinte mecanismo.
De um turno, aborda-se a situação do agente cultural. Este elabora um projeto que se ajuste às finalidades previstas em lei e leva-o a apreciação da autoridade administrativa. Com o projeto aprovado, seu autor negocia com um ou mais contribuintes do tributo a que se relaciona o benefício a oportunidade de patrocinar o projeto, direcionando parte do imposto devido ao evento cultural. Feito o acordo, o agente cultural recebe do contribuinte a parcela do tributo e o aplica na realização do projeto.
De outro lado, verifica-se a situação do sujeito passivo da obrigação tributária.
O contribuinte realiza o fato gerador – de tributo, em regra, lançado por homologação – e calcula o montante devido. Torna-se devedor da Fazenda Pública por enquadrar-se na norma tributária impositiva independentemente da existência da norma de benefício. Ao negociar com o agente cultural o patrocínio do evento devidamente aprovado, o contribuinte enquadra-se nas previsões da norma de benefício, momento em que se transforma sua obrigação tributária.
Originariamente, a obrigação consistia em pagar todo o tributo devido aos cofres públicos. Após a incidência da norma de benefício fiscal, a obrigação passa a ser de pagar parte do tributo aos cofres públicos e parte dele ao agente cultural. O pagamento ao agente cultural não reduz a obrigação tributária, posto que, eventualmente, a lei utilize-se do termo "desconto", nem há mudança na natureza jurídica da obrigação. Não há qualquer desconto na obrigação tributária, senão porque o Fisco torna-se credor de um valor menor do que se tornaria não fosse o benefício. A lei permite que o contribuinte pague parte do tributo ao agente cultural e parte dele ao Fisco e assim extingue integralmente sua obrigação. A natureza da obrigação permanece tributária e o agente cultural recebe, efetivamente, tributo.
É o que se passa no art 18 da Lei Rouanet (Lei 8.313/91) e no art 3° da Lei 12.733/97 do Estado de Minas Gerais.
Sem que o contribuinte tenha redução em seu custo tributário, podendo, eventualmente, ter despesa maior com o projeto cultural que o benefício correspondente, é inegável que se trata de benefícios fiscais que não importam redução do dever tributário.
Há, pois, extrafiscalidade com acréscimo e redução de ônus tributários, mas também extrafiscalidade que se viabiliza com a manutenção da carga tributária.
Conclusão
Tendo em vista esta breve exposição, adotamos o conceito amplo de extrafiscalidade a significar o uso de tributos para realizar direta ou indiretamente valores constitucionais e classificamos o fenômeno segundo quatro critérios: o valor constitucional perseguido; o aspecto da norma de que decorre; a interferência no comportamento dos destinatários da norma; e a interferência na carga tributária.
A extrafiscalidade classifica-se conforme o valor constitucional buscado. Assim, existe a extrafiscalidade social, econômica, política, cultural etc.
Conforme o aspecto da norma tributária, há a extrafiscalidade no fato gerador ou na destinação do produto arrecadado. A extrafiscalidade do fato gerador será aquela para a qual a incidência for vocacionada. Por exemplo, a incidência sobre renda será apta a distribuição de renda, a incidência sobre o consumo será apta a afetar preços relativos e a incidência sobre o comércio exterior será apta a proteger o mercado interno. De outro giro, a extrafiscalidade na destinação do produto arrecadado terá a feição da finalidade prestigiada pela norma tributária (social, econômica etc).
Segundo o critério comportamental, há extrafiscalidade sem ingerência em comportamentos e extrafiscalidade com indução ou repressão a comportamentos.
A extrafiscalidade pode, também, ser representada por normas que aumentam - elevação da alíquota - ou reduzem - isenções - tributos, ou por normas que não interferem na carga tributária, como os parcelamentos e o benefício do art. 18 da Lei Rouanet de incentivo a cultura.
Bibliografia
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
FANUCCHI, Fábio. Curso de direito tributário brasileiro. São Paulo: Resenha Tributária, 1976.
GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.
NOGUEIRA. Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1986.
SPAGNOL, Werther Botelho. As contribuições sociais no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
Notas
01 FANUCCHI, 1976, p 54 e seg.
02 NOGUEIRA. 1986, p 197 e seg.
03 DERZI, em atualização a BALEEIRO, 2003a, p. 233.
04 NABAIS, 1998, p 629.
05 TORRES, 2001, p. 167.
06 GOUVÊA, 2006, p. [80].
07 NABAIS: 1998.
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08 SPAGNOL, 2002, p. 72 et seq.
09 SPAGNOL, 2002.
10 RESP 396044 / RS; Ministro Luiz Fux; Primeira Turma; DJ 27/05/2002; no mesmo sentido: AGRESP 450052 / RS; Ministro Luiz Fux; Primeira Turma; DJ 04/08/2003.