Conclusão
O crime de falsidade ideológica busca tutelar a veracidade do conteúdo de certo documento, entendido este, para fins penais, como aquele escrito que pretende, por si só, comprovar a prática de certo ato, sem depender de outros documentos ou de verificações obrigatórias posteriores.
Conquanto vários precedentes jurisprudenciais apontem para a consolidação de entendimento segundo o qual a possibilidade de averiguação posterior do teor de um documento afastaria a prática do crime de falsidade ideológica, tem-se que a possibilidade de comprovação da falsidade do fato é elemento intrínseco à existência do crime de falsidade ideológica, na medida em que a impossibilidade de demonstrar a falsidade da afirmação inviabiliza a comprovação da falsidade ideológica.
O enquadramento de escritos diversos no conceito de documento deve ser analisado caso a caso, mas sempre tendo como referência a necessidade de que bastem, por si só, para fins os comprobatórios pretendidos. Tal análise deve ter como parâmetro as exigências relacionadas ao ato que se pretende praticar.
Dessa forma, os escritos que obrigatoriamente terão seu conteúdo verificado por procedimento previamente estabelecido não constituem documentos para fins de configuração do crime de falsidade ideológica. Por outro lado, o escrito que, por si só, baste para a prática de certo ato, mas cujo conteúdo gera alguma suspeita e averiguação posterior, se enquadra no conceito de documento apto a configurar o crime de falsidade ideológica, desde que preenchidas as demais elementares do tipo e elementos integrantes do conceito de crime.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Sylvio do. Falsidade documental. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
ÁVILA, Marcelo Henrique de. Fraude Documental: Uma ameaça transversal à Segurança Nacional. Trabalho de conclusão de Curso apresentado à Escola Superior de Guerra, como exigência parcial para a obtenção do título de Especialista em Altos Estudos em Defesa. Brasília: Escola Superior de Guerra. Ministério da Defesa, 2020.
CAPEZ, Fernando; PRAZO, Stela. Código penal comentado. 3. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012.
MASSON, Cleber. Direito Penal : parte especial arts. 213 a 359-h 8. ed. - São Paulo: Forense, 2018.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2007, v. III, p. 229.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado.15. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.
Notas
1 Não se ignoram as discussões filosóficas relacionadas à verdade e suas teorias, as quais, entretanto, não serão objeto de análise.
2 Apud MASSON, p. 554.
3 AMARAL, 1989. p. 57/58.
4 CAPEZ, 2012, p. 481.
5 AMARAL, 1989, p. 75.
6 Recurso Especial Eleitoral nº 4931, Acórdão, Relator(a) Min. Edson Fachin, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Data 25/10/2019.
7 ÁVILA, 2020.
8 NUCCI, 2015, p.1341.
9 MASSON, 2018, p. 533.
10 MIRABETE, 2007, p. 229.
11 HC 222.613/TO, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), SEXTA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 07/05/2012.
12 CAPEZ, 2012, p. 482.
13 HC 473.351/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 11/12/2018, DJe 19/12/2018; RHC 47.023/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 09/10/2018, DJe 15/10/2018; RHC 49.437/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 24/02/2015, DJe 04/03/2015; RHC 43.993/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 03/05/2016, DJe 16/05/2016; AgRg no AREsp 1498840/GO, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 02/09/2019; HC 379.353/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/02/2017, DJe 15/02/2017.
14 PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS. FALSIDADE IDEOLÓGICA. LAVAGEM DE DINHEIRO. CRIME ANTECEDENTE. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA ESPECIALIZADA EM CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR. PIRÂMIDE FINANCEIRA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE GENERALIDADE NA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. Verifica-se o delito de falsidade ideológica quando os acusados, na elaboração de contrato social de empresa, inserem falsamente o nome de terceira pessoa na condição de sócia, mediante a promessa de pagamento da quantia mensal pelo "empréstimo do nome", com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, isto é, a condição de verdadeiros sócios e proprietários da empresa. 2. Não há falar em ausência dos requisitos mínimos quando a inicial acusatória, ao imputar o delito de lavagem de dinheiro, narra a ocultação e a dissimulação da origem de dinheiro proveniente das atividades da empresa Embrasystem, consubstanciado no valor de R$ 245.000,00, descrevendo, para tanto, o emaranhado de empresas utilizadas para disfarçar a origem ilícita do montante advindo da organização criminosa especializada em crime contra a economia popular - pirâmide financeira - descrevendo o montante obtido com os fatos criminais antecedentes, que são objeto de ação civil pública além de persecuções criminais em desfavor dos pacientes e corréus. 3. Encontrando-se devidamente demonstrados os indícios mínimos de materialidade e autoria da imputação de falsidade ideológica e ocultação de bens, não se verifica a presença de quaisquer das situações que ensejam o trancamento da ação penal. 4. Habeas corpus denegado. (HC 436.024/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 12/06/2018, DJe 19/06/2018)
15 Veja-se, por exemplo, o seguinte caso: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. ATESTADO E RELATÓRIOS MÉDICOS IDEOLOGICAMENTE FALSOS. CP, ART. 299. DOCUMENTO SUJEITO À VERIFICAÇÃO. ATIPICIDADE. RECURSO IMPROVIDO. 1. Não existe falso ideológico em documento sujeito à verificação (TRF/1ª Região, RT 792/722). Se depender de comprovação ou de verificação, não é idônea para a configuração do delito em apreço. 2. Recurso em sentido estrito improvido. (RSE 0035902-14.2012.4.01.3400, DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1 27/10/2015 PAG 254.)
16 Cabe diferenciar a possibilidade de confirmação da autenticidade com a obrigatoriedade de verificação do teor de documento. Apenas esta, em nossa visão, afasta a tipicidade do crime. Isso porque várias certidões, por exemplo, podem ter sua autenticidade confirmada por diversas formas, mas, caso seu conteúdo seja alterado, isso não altera a falsidade anterior, tampouco constitui obrigatória verificação. Cite-se que tais confirmações dificilmente ocorrem e a exigência da certidão é justamente para evitar a realização desses atos posteriores.
17 NUCCI, 2015, p. 1341.
18 Referimo-nos à aptidão pois a configuração do crime dependerá da presença dos demais elementos exigidos pelo tipo penal, além de uma série de outros fatos. Discorda-se, entretanto, que tal declaração não se enquadre no conceito técnico de documento.
19 Veja-se, em sentido similar, o voto do desembador André Nabarrete no julgamento do RESE no processo 2002.61.81.001936-8 (TRF3, 03/05/2004): “Portanto, basta àquele que requerer assistência judiciária gratuita afirmar a sua falta de condições para arcar com as custas do processo para, em princípio, receber tal benefício. Ressalte-se apenas a impugnação da parte contrária ou, evidentemente, o juiz poderia fazer esse controle, desde que manifesta a contraposição da afirmação com os dados contidos nos autos, já que estão envolvidos recursos do Estado em substituição à carência do requerente. Ademais, toda declaração, obviamente, é sujeita à verificação. Se maior ou menor a sua capacidade de vincular terceiros aos quais ela se endereça, podem eles procurar ou não a sua verificação. Qualquer declaração, então, pode ser posta à contraprova. No entanto, há distinção entre requerer o benefício da assistência judiciária e declarar em apartado que não se tem como arcar com as despesas processuais, declaração pura e simples que gera efeitos imediatos, em princípio. O caso dos autos não é de requerimento em que dependeria da verificação de um funcionário. A declaração de pobreza gera efeitos e só é desfeita mediante demonstração probatória pela parte ou pelo juiz, em casos excepcionais. Sob esse aspecto, se existem elementos convincentes de que a declaração não corresponde à realidade, estaria configurada a tipicidade.”