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O crime falsidade ideológica e a averiguação posterior

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04/07/2021 às 15:30

Resumo:


  • O crime de falsidade ideológica, previsto no artigo 299 do Código Penal brasileiro, protege a fé pública, exigindo que o conteúdo de documentos seja verdadeiro e confiável, sob pena de se configurar o delito quando há inserção de declaração falsa com o fim de prejudicar direito ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.

  • Existe um entendimento nos tribunais superiores de que a possibilidade de averiguação posterior da veracidade das informações em um documento pode levar à atipicidade da conduta, não configurando o crime de falsidade ideológica, especialmente em casos onde as declarações são passíveis de confirmação ou impugnação.

  • Para determinar se um escrito pode ser considerado um documento para fins penais, deve-se analisar se ele possui força probante por si só, sem depender de verificações obrigatórias posteriores. Caso contrário, não se configura o crime de falsidade ideológica, mesmo que o conteúdo do escrito seja falso.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O artigo pondera sobre o crime de falsidade ideológica no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no que tange à sua configuração quando o conteúdo de um documento possa ser objeto de averiguações posteriores.

Introdução

A advertência acerca da possível prática do crime de falsidade ideológica é corriqueira em vários documentos e requerimentos assinados diariamente, os quais, geralmente em sua parte final, alertam os subscritores acerca da possibilidade de incorrer na prática de tal crime em caso de falsidade de algum dado informado.

Por outro lado, a efetiva configuração do crime de falsidade ideológica depende da concorrência de diversas circunstâncias, acerca das quais nem sempre há consenso entre os juristas. Entre estas situações problemáticas, merece destaque a divergência acerca da existência do crime de falsidade ideológica quando as declarações presentes em certo documento sejam passíveis de averiguação posterior.

Nesse contexto, o presente artigo visa efetuar algumas ponderações sobre o crime de falsidade ideológica no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no que tange à sua configuração quando o conteúdo de um documento possa ser objeto de averiguações posteriores.

Inicialmente será efetuada breve análise do crime de falsidade ideológica para, após, com amparo nas posições jurisprudenciais dos tribunais superiores e na doutrina, traçar alguns parâmetros aptos a adoção de um posicionamento sobre o tema.


1. Noções Gerais sobre o Crime de Falsidade Ideológica

O crime de falsidade ideológica está previsto no artigo 299 do Código Penal, in verbis:

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular.

Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.

Tipificam-se as condutas relacionadas aos meios de fazer constar falso conteúdo1 em um documento (omitir, inserir, fazer inserir). Assim, o documento é materialmente (formalmente) verdadeiro, mas os dados neles presentes são falsos, seja por omissão dolosa, quando há deliberada ausência de alguma informação que nele deveria constar, seja pela inserção de informação diversa daquela que devia constar.

Nessa linha, a doutrina costuma referir que na falsidade ideológica há o denominado falso ideal, moral ou intelectual. Nelson Hungria esclarece que

Fala-se em falsidade ideológica (ou intelectual), que é modalidade do falsum documental, quando à genuinidade formal do documento não corresponde a sua veracidade intrínseca. O documento é genuíno ou materialmente verdadeiro (isto é, emana realmente da pessoa que nele figura como seu autor ou signatário), mas o seu conteúdo intelectual não exprime a verdade. Enquanto a falsidade material afeta a autenticidade ou inalterabilidade do documento na sua forma extrínseca e conteúdo intrínseco, a falsidade ideológica afeta-o somente na sua ideação, no pensamento que as suas letras encerram. 2

Ou seja, enquanto nos delitos relacionadas às falsidades materiais busca-se tutelar a autenticidade do documento, na falsidade ideológica a preocupação é com a veracidade de seu conteúdo. Sylvio do Amaral elucida que

(...) Na falsificação ideológica não há rasura, emenda, acréscimo e/ou subtração de letra ou algarismo. Há, apenas, uma mentira reduzida a escrito através de documento que, sob o aspecto material, é de todo verdadeiro, realmente escrito por quem seu teor indica. No falso ideal, o agente forma um documento até então inexistente, para, através dele, fraudar a verdade. O documento assim elaborado pelo falsificador é extrinsecamente verdadeiro, pois quem o escreve é efetivamente quem aparece no texto como seu autor; o que há nele de inverídico é o conteúdo ideológico, pois seu texto é falso ou omisso em relação à realidade que devia consignar. 3

Assim, o sujeito ativo “tem legitimidade para emitir o documento, mas acaba por inserir nele um conteúdo sem correspondência com a realidade dos fatos”4. Quanto a este conteúdo, além de falso deve ser minimamente razoável, passível de receber alguma credibilidade, excluindo-se as declarações absurdas e facilmente reputadas como inverossímeis, pois “assim como a falsidade material grosseira não constitui crime, porque não tem potencialidade de dano, pela mesma razão é impunível a falsidade ideológica que afirma fato ou circunstância incomponível com a realidade de todos conhecida”.5

Há no tipo legal elemento subjetivo específico (especial fim de agir), qual seja, a finalidade de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. Caso o agente apresente documento falso, mas cujo conteúdo seja irrelevante para influir no ato jurídico, a conduta será atípica.

O bem jurídico tutelado pelo crime é a fé pública, entendida esta como o “bem jurídico transindividual que se refere à confiança e à credibilidade depositada pelos indivíduos nos documentos utilizados para atestar ou provar relações jurídicas ou sociais. Portanto, o crime de falsidade não lesiona apenas o destinatário imediato do documento, mas agride a convicção coletiva de que os documentos utilizados como essenciais à determinada finalidade são verídicos e confiáveis.” 6 Há, também, tutela da segurança jurídica, buscando-se reforçar a necessidade de veracidade e confiança nos documentos, características imprescindíveis às relações jurídicas. Trata-se, ademais, de necessidade imperiosa para a simplificação das relações jurídicas e procedimentos, possibilitando que algumas diligências sejam substituídas por declarações, as quais, por consequência, devem ser verdadeiras. Merece destacar que as fraudes documentais são a base para a prática de inúmeras outras infrações penais, “gerando um estado de insegurança jurídica, caracterizado pela desconfiança coletiva na legitimidade do documento, público ou particular, enquanto instrumento probatório no universo jurídico”7.

A falsidade será exteriorizada por meio de um documento, sendo este conceituado como "uma peça que tem possibilidade intrínseca (e extrínseca) de produzir prova, sem necessidade de outras verificações"8. Cleber Masson refere que o documento é “o escrito elaborado por pessoa determinada e representativo de uma declaração de vontade ou da existência de fato, direito ou obrigação, dotado de relevância jurídica e com eficácia probatória”9. Julio Fabbrini Mirabete, por sua vez, refere que:

Por documento se entende aquilo que se costuma chamar de prova escrita, pré-constituída ou acidental, seja autossuficiente ou dependa de complementação, requisitos não encontrados no simples requerimento ou petição, o requerer, ainda que no pedido conste alguma informação inverídica, não leva à caracterização do delito previsto no artigo 299 do CP. 10

Dessa forma, estão excluídos do conceito de documentos petições, teses, entre outros similares, os quais, embora normalmente sejam atos escritos, tratam primordialmente de alegações e exposições diversas, sem pretensão probatória. Os tribunais superiores já possuem entendimento consolidado segundo o qual petições não se enquadrarem no conceito de documento previsto no tipo penal11.

Trata-se, por fim, de crime formal, que se consuma sem que haja a necessidade de produção de quaisquer resultados, ou seja, “prescinde-se, portanto, da ocorrência efetiva do dano, bastando a capacidade de lesar terceiro”12. O documento geralmente será utilizado para a prática de certo ato jurídico, não sendo necessário que tal ato seja efetivamente praticado para o que crime se consume, dada sua classificação de crime formal.


2. A possibilidade de Averiguação Posterior como causa de Atipicidade da Falsidade Ideológica

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento acerca da atipicidade da conduta de utilizar, em juízo, endereço que não corresponda à realidade dos fatos, bem como declaração de hipossuficiência que posteriormente se comprove ser inverídica13.

Os trechos de algumas ementas, abaixo transcritos, resumem o entendimento hoje dominante nos tribunais superiores:

- (...) É atípica a conduta de utilizar, em juízo, endereço que não corresponda à realidade dos fatos, em razão da possibilidade de confirmação da veracidade da informação contida na inicial. (precedentes) (...)

(HC 318.518/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 14/04/2015, DJe 23/04/2015)

- (...) 1. Somente se configura o crime de falsidade ideológica se a declaração prestada não estiver sujeita a confirmação pela parte interessada, gozando, portanto, de presunção absoluta de veracidade. 2. Esta Corte já decidiu ser atípica a conduta de firmar ou usar declaração de pobreza falsa em juízo, com a finalidade de obter os benefícios da gratuidade de justiça, tendo em vista a presunção relativa de tal documento, que comporta prova em contrário. 3. Ordem concedida para trancar a ação penal.

(HC 218.570/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 16/02/2012, DJe 05/03/2012)

- (...) Na espécie, a conduta daquele que insere endereço equivocado em petição inicial, declaração de hipossuficiência e procuração, per se, não se amolda ao delito tipificado no art. 299 do CP, uma vez que a inserção de endereço diverso constitui fato juridicamente irrelevante, sujeito, portanto, a impugnação ou comprovação posterior por outros meios de prova. (Precedentes). (...). (RHC 49.437/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 24/02/2015, DJe 04/03/2015)

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, merecem destaque os julgamentos dos HC 85976 e 82605:

Falsidade ideológica: afirmação de fato inverídico em petição: hipótese de atipicidade. 1. A petição em processo judicial ou administrativo só faz prova do seu próprio teor; não, porém, da veracidade dos fatos alegados. 2. Por isso, de regra - isto é, salvo nos casos excepcionais em que a lei imputa ao requerente o dever de veracidade - a inserção em petição de qualquer espécie da alegação de um fato inverídico não pode constituir falsidade ideológica. 3. Caso, por outro lado, em que a veracidade ou não da questionada afirmação de fato era indiferente ao deferimento da petição de simples vista de processo administrativo para extração de cópias que interessassem à defesa do peticionário.

(HC 82605, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 25/02/2003, DJ 11-04-2003 PP-00038 EMENT VOL-02106-03 PP-00630)

FALSIDADE IDEOLÓGICA. DECLARAÇÃO DE POBREZA PARA FINS DE GRATUIDADE JUDICIÁRIA. Declaração passível de averiguação ulterior não constitui documento para fins penais. HC deferido para trancar a ação penal.

(HC 85976, Relator(a): ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 13/12/2005, DJ 24-02-2006 PP-00051 EMENT VOL-02222-02 PP-00375 RT v. 95, n. 849, 2006, p. 490-491)

Há, ainda, precedente do Supremo Tribunal Federal do ano de 1966 no mesmo sentido:

FALSIDADE IDEOLOGICA. PETIÇÃO DE ADVOGADO, DIRIGIDA AO JUIZ, CONTENDO A RETRATAÇÃO DE UMA TESTEMUNHA, E POR ESTA ASSINADA, NÃO E DOCUMENTO PENALMENTE PROTEGIDO. O ESCRITO SUBMETIDO A VERIFICAÇÃO NÃO CONSTITUI O FALSUM INTELECTUAL. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. RECURSO DE HABEAS CORPUS PROVIDO.

(RHC 43396, Relator(a): EVANDRO LINS, Primeira Turma, julgado em 22/08/1966, DJ 05-02-1967 PP-00181 EMENT VOL-00679-01 PP-00504)

Todos os casos citados utilizam a “possibilidade de averiguação posterior” como fundamento para atipicidade da conduta, seja de forma de isolada, seja de forma conjunta com outros elementos. Merece destaque, também, que os casos se referem, em sua maioria, a falsidades praticadas por meio de petição ou de escrito que não se enquadra no conceito de documento, conforme já exposto.

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Tais constatações são importantes, pois afastam a conclusão de que todos os documentos cuja averiguação posterior possibilite confirmar a falsidade da declaração apresentada não são aptos a configurar o crime de falsidade ideológica. Ou seja, impedem que o argumento da “averiguação posterior” seja utilizado isoladamente.

Isso porque a possibilidade de comprovação da falsidade do fato é elemento intrínseco à existência do crime de falsidade ideológica. Ou seja, caso não puder ser demonstrada a falsidade de uma afirmação, sequer haverá a configuração do crime, tendo em vista a inviabilidade da comprovação da falsidade. A ampliação desmedida de tal entendimento tornaria letra morta o crime de falsidade ideológica, na medida em a quase totalidade dos documentos pode sofrer alguma espécie de averiguação posterior. Essa constatação, ao mesmo tempo que afasta certos documentos do crime de falsidade ideológica, em relação aos quais não há como afirmar sua falsidade, implica que aqueles cuja falsidade possa ser demonstrada constituam objeto material do delito em estudo.

Aliás, os próprios tribunais superiores possuem decisões nas quais são ratificadas condenações pela prática de falsidade ideológica de fatos cuja verificação posterior pode confirmar a falsidade. Cite-se, por exemplo, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça indicando que a inserção de laranjas em contrato social é conduta idônea a configurar o crime de falsidade ideológica14.

Por outro lado, em alguns casos percebe-se que o argumento da possibilidade de averiguação posterior é utilizado isoladamente como causa de atipicidade de certas condutas15.

Esse contexto demonstra a necessidade de serem adotados critérios mais específicos para definir quais documentos podem constituir o objeto material do crime de falsidade ideológica, conforme a seguir exposto.


3. Proposta de Critério

O bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade ideológica aponta para a necessidade de serem traçados limites ao entendimento citado anteriormente. A possibilidade de verificação posterior não constitui elemento essencial à existência do crime de falsidade ideológica, devendo a tipicidade deste ser analisada a partir da efetiva ofensa ao bem jurídico tutelado, bem como das elementares e circunstâncias previstas.

A criminalização da conduta possui como objetivo justamente evitar a necessidade de averiguações posteriores, mesmo que estas sejam possíveis. Busca-se reforçar a confiança nos documentos, evitando-se a realização de diligências para sua confirmação, de forma que estas, caso realizadas, apenas reforçam que ocorreu a lesão ao bem jurídico. Assim, mostra-se necessário delimitar o âmbito de aplicação de tal entendimento.

Alguns parâmetros podem ser estabelecidos a partir do voto da ministra Ellen Gracie no julgamento do HC 85976, que, por sua vez, tem base nas lições de Nelson Hungria:

Ocorre, entretanto, que o crime de falsidade ideológica somente se caracteriza quando a declaração falsa inserida no documento é dotada de força probante, por si só, independente de comprovação ulterior. É o que deixou assentado o saudoso Ministro desta Corte e ilustre penalista Nelson Hungria, na lição lembrada na inicial: “Cumpre notar que a declaração prestada pelo particular deve valer, por si mesma, para a formação do documento. Se o oficial ou funcionário que recebe a declaração está adstrito a averiguar, propis sensibus, a fidelidade das declarações o declarante, ainda que falte com a verdade, não cometerá ilícito penal”.

Desse julgado pode ser extraído que: a) o documento deve ter força probante por si só, independente de comprovação ulterior; e b) a declaração deve valer por si mesma, sem necessidade de averiguação por terceiro de sua veracidade.

O primeiro item, referente à necessidade de o documento ter força probante por si só, não implica maiores esclarecimentos. Afasta-se a relevância de documento que depende de outro ato para ter valor, salvo se ambos tiverem seu conteúdo alterado, ou mesmo quando o documento não foi idôneo para comprovar a situação almejada.

Já quanto ao item “b” acima, são necessários alguns esclarecimentos. A necessidade de averiguação posterior da validade do documento por terceiros somente impede este de ser objeto material do crime quando tal procedimento for antecipadamente previsto. Dito de outra forma, quando se sabe que o conteúdo de um documento será obrigatoriamente averiguado, não haveria de se falar em crime de falsidade ideológica. Nestes casos, falta ao documento o valor probante necessário para configurar a tipicidade do crime. Pode-se referir, utilizando-se dos termos do tipo legal, que tais documentos não “prejudicam direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”, pois somente terão validade após posterior verificação. Percebe-se que este critério se relaciona com o anterior, pois neste caso o documento não prova “por si só”, mas apenas após sua averiguação16. Aliás, considerando a necessidade de imprescindível verificação, sequer poderiam ser considerados documentos em um sentido técnico, exigido pelo tipo penal, conforme entendimentos doutrinários acerca do conceito de documento, expostos acima.

Em sentido similar à posição exposta pode-se encontrar a lição de Guilherme de Souza Nucci, referindo que

havendo necessidade de comprovação – objetiva e concomitante –, pela autoridade, da autenticidade da declaração, não se configura o crime, caso ela seja falsa ou, de algum modo, dissociada da realidade. Ex.: declaração falsa de endereço, quando se exige o acompanhamento de documento comprobatório, como conta de luz ou água. Nessa hipótese, de maneira objetiva e imediata, pode o funcionário conferir o endereço antes de providenciar a expedição do documento que interessa ao agente17.

Nesse contexto, afastam-se dessa hipótese os casos em que o documento possua força probante, mas seu conteúdo gera alguma desconfiança, ensejando, então, averiguações posteriores para fins de verificação de sua veracidade. Caso constatada a falsidade, resta presente a aptidão para configurar o crime. A diferença do caso tratado no parágrafo anterior é que aqui o procedimento de verificação não é algo já previsto anteriormente, mas sim efetuado a partir de alguma suspeita decorrente do teor do documento. Destaca-se que, segundo esta posição, alguns casos mencionados nas ementas do item 02 teriam potencial para configurar o crime de falsidade ideológica, exceto aqueles referentes às petições, pois, conforme visto antes, essas não são documentos.

Veja-se, por exemplo, o caso da falsa declaração de hipossuficiência efetuada em processo judicial. Partindo-se da premissa de que exista um conceito claro de situação de hipossuficiência - algo nem sempre ocorre - e verificada a falsidade na declaração, haveria aptidão18 da citada declaração para configurar o crime de falsidade ideológica. Isso porque o Código de Processo Civil se contenta com a simples declaração assinada como meio de comprovação da situação de hipossuficiência e, ao fazê-lo, a eleva à categoria de documento, pois se mostra idôneo “a produzir prova, sem necessidade de outras verificações”. As verificações podem ocorrer a partir de alguma suspeita, oriunda de diversos fatores, gerando a averiguação posterior, mas isso não altera o fato de que tal documento era idôneo, por si só, a ensejar o deferimento do benefício da justiça gratuita19.

Percebe-se, portanto, que o possível enquadramento de escritos diversos no conceito de documento deve ser analisado caso a caso, mas tendo como referência a necessidade de que bastem, por si só, para fins comprovatórios. Tal análise deve ter como parâmetro as exigências relacionadas ao ato que se pretende praticar. Caso uma declaração assinada baste para a prática de certo ato, trata-se de documento cuja falsidade pode configurar o crime do artigo 299 do Código Penal. O fato de a falsidade ser passível de comprovação posterior não altera tal contexto, pois o crime de falsidade ideológica, então, já estará consumado.

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Sobre o autor
Daniel Reschke

Delegado de Polícia Federal; foi Delegado de Polícia Civil no RS (2010-2014). Pós-graduado em Direito Público; Teoria e Filosofia do Direito; e Processo Penal e Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESCHKE, Daniel. O crime falsidade ideológica e a averiguação posterior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6577, 4 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91579. Acesso em: 22 dez. 2024.

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