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O CDC e o STJ

Agenda 19/11/2006 às 00:00

Devido à técnica legislativa de "cláusulas gerais", o STJ, incumbido de harmonizar a jurisprudência infraconstitucional brasileira, ganha uma importância ímpar na efetivação da defesa do consumidor.

SUMÁRIO: I – Introdução II - Caracterização da relação de consumo III- Desconsideração da personalidade jurídica IV – Práticas comerciais abusivas V – Cláusulas abusivas VI - Temas processuais VII – Conclusão.


I – Introdução

As modificações no mercado de consumo ocorrem de forma muita rápida, e, a cada dia, novas práticas comerciais e cláusulas contratuais são inseridas no mercado de consumo.

Atento a esse cenário, e com receio de se criar um diploma legislativo que em pouco tempo poderia ficar obsoleto, "engessado", o legislador fez a opção de conceder um amplo poder à jurisprudência para a fixação do alcance das normas do CDC ao longo do tempo.

Assim, foi adotada, no CDC, e posteriormente no CC/02, a técnica legislativa denominada de "cláusulas gerais", na qual são utilizados conceitos jurídicos cuja completa determinação caberá à atividade criadora do Juiz.

É importante ressaltar que a expressão "cláusulas gerais" tem dois significados distintos no Direito do Consumidor. O primeiro, enquanto técnica legislativa. Já o segundo significado diz respeito ao fenômeno das condições gerais dos contratos, no qual a expressão "cláusulas contratuais gerais" abarca as cláusulas pré-elaboradas pelo fornecedor de maneira unilateral, uniforme e abstrata. A expressão que ora utilizo diz respeito tão-somente ao primeiro significado da expressão.

Essa tendência de utilização de "cláusulas gerais" enquanto técnica legislativa é observada em vários Estados que utilizam o sistema romano-germânico (dentre outros: Alemanha, Itália e Portugal).

Em outras palavras, o legislador, ciente da velocidade na qual ocorrem as mudanças sociais, transfere ao Juiz, limitado pela própria lei e pelos princípios do sistema jurídico no qual ela está inserida, a tarefa de delimitar precisamente o âmbito de aplicação da lei.

Nesse contexto, o STJ, incumbido pela Constituição Federal de harmonizar a jurisprudência infraconstitucional brasileira, ganha uma importância ímpar na efetivação da defesa do consumidor.

E a discussão sobre o papel do STJ na construção da jurisprudência brasileira sobre direito do consumidor cabe, não somente aos ministros que compõem o denominado Tribunal da Cidadania, mas à sociedade, e especificamente aos aplicadores do direito, pois a "jurisprudência é, na verdade, a fonte viva do direito" (Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1995, p. 136).

Devido à impossibilidade de ser esgotado o tema da palestra em curto período de tempo, selecionei alguns tópicos que, acredito, serão de interesse dos presentes.


II – Caracterização da relação de consumo

Como sabido, para a aplicação da normas protetivas do CDC é necessária a caracterização da relação de consumo. Para tanto, nos pólos da relação jurídica devem existir um consumidor (ou ente equiparado) e um fornecedor.

a) Caracterização do fornecedor

Não existem grandes polêmicas a respeito da caracterização do fornecedor.

Registre-se que o STJ tem admitido inclusive a aptidão de associações e sociedades sem fins lucrativos para figurarem como fornecedor (Resp’s n. 436.815 e n. 519.310, de minha relatoria, dentre outros).

Com efeito, quando elas exercem atividades remuneradas no mercado de consumo como uma sociedade empresária (ex: contratos de mútuo, de prestação de serviços médicos), não será a natureza jurídica delas que excluirá a aplicação das normas protetivas do CDC em favor dos consumidores, pois os critérios para a caracterização dos fornecedores previstos no art. 3º do CDC são puramente objetivos.

b) Caracterização do consumidor

Uma grande controvérsia existente hoje é a possibilidade de o empresário (pessoa física ou jurídica) ser caracterizado como consumidor.

A controvérsia surge das diversas interpretações referentes à expressão "destinatário final", que consta do art. 2º do CDC (conceito de consumidor).

De início, a doutrina se dividiu em duas teorias: a finalista (ou subjetiva) e a maximalista (ou objetiva).

A principal diferença entre elas decorre da circunstância de a doutrina finalista não considerar como consumidor a pessoa que utiliza um produto ou serviço na sua atividade profissional, ou seja, para a teoria finalista a pessoa que adquire um bem ou serviço com o intuito de lucro não é considerada consumidora.

A 2ª Seção do STJ, no julgamento do CC 41.056/SP (DJ: 20/9/2004), em acórdão de minha relatoria, considerou como consumidora uma farmácia que celebrou contrato com sociedade empresária que administrava serviços de pagamento por meio de cartão crédito (Visanet).

Na oportunidade, ao adotar a teoria maximalista, fiz questão de ressaltar a vulnerabilidade da farmácia, e o fato de que nem ela nem o contrato tinham porte econômico ou financeiro expressivo.

Já no julgamento do REsp 541.867 (julgado em 10/11/2004), rel. p/ acórdão Min. Barros Monteiro, a 2ª Seção do STJ adotou a teoria finalista e entendeu não haver relação de consumo entre uma sociedade empresária revendedora de tintas e uma administradora de cartão de crédito. Também nessa oportunidade, houve discussão quanto a hipossuficiência da revendedora de tintas.

Como se vê, a questão é polêmica não somente na doutrina como também na jurisprudência.

Mas, independentemente do posicionamento que vier a ser pacificado no STJ, tenho que nunca poderá ser esquecido o princípio do CDC, talvez o maior, de reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (art. 4º, I). Ou seja, o CDC sempre deverá ser interpretado de forma teleológica, e os seus dispositivos somente serão aplicados para proteger a parte mais fraca da relação jurídica (o vulnerável, hipossuficiente).

Coerente com essa linha de interpretação, está o REsp n. 258.780 (Rel. Min. Barros Monteiro), no qual não foi considerado "como consumidor o empresário que toma vultuosa importância empresta junto a uma instituição financeira para instalar um parque industrial".

Nesse sentido, ainda que não tenha havido discussão expressa sobre vulnerabilidade, poderia também ser incluído o REsp 231.208 (Rel. Min. Ruy Rosado), no qual se decidiu que o "CDC incide sobre contrato de financiamento celebrado entre a CEF e o taxista para aquisição de veículo".


III – Desconsideração da personalidade jurídica

A Teoria da desconsideração da personalidade jurídica surgiu no Brasil, inicialmente, por meio da doutrina de Rubens Requião e foi paulatinamente incorporada pela nossa jurisprudência.

No plano legislativo, após uma profunda pesquisa inclusive de direito comparado realizada pelos autores do anteprojeto, o CDC, em seu art. 28, avançou muito no tema.

No STJ, a questão foi proficuamente debatida no julgamento do REsp 279.273/SP (DJ: 29/3/2004). Esse processo cuidou de uma ação civil pública, proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, na qual se buscava indenização por danos materiais e morais sofridos pelas vítimas do desabamento do Shopping Center de Osasco/SP.

A controvérsia surgiu no STJ quanto às hipóteses de cabimento de desconsideração da personalidade jurídica. Para a primeira tese, a desconsideração somente poderia ocorrer nas hipóteses taxativas previstas no caput do art. 28, ou seja, para esse posicionamento, o § 5º desse artigo não teria autonomia. Já para a segunda tese, a desconsideração poderia ocorrer com base nesse § 5º do art. 28 do CDC, independentemente da ocorrência de alguma das hipóteses previstas no caput.

A tese que defendi, e que se sagrou vencedora, foi a segunda, como se percebe do seguinte trecho da ementa:

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"- A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).

- A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

- Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.

- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."


IV - Práticas comerciais abusivas

a) Serviços de telefonia

Uma situação que ocorre comumente no mercado de consumo, e que a jurisprudência do STJ já identificou como prática abusiva, insere-se na cobrança de valores decorrentes dos serviços denominados de 0900, e especificamente em relação ao chamado "tele-sexo".

São veiculadas publicidades na televisão, muitas vezes com o objetivo de persuadir, de forma clandestina, crianças e adolescentes a ligarem para esses serviços.

Os pais, posteriormente, recebem a conta de telefone com valores exorbitantes, causando um enriquecimento indevido dos prestadores desses serviços.

Atento à realidade, o STJ já decidiu que, para a cobrança desses valores, é necessária a prévia solicitação (ou aceitação) por parte do titular da linha telefônica, pois o CDC, em seu art. 39, III, veda ao fornecedor de produtos ou serviços "enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço".

Os precedentes:

"CONSUMIDOR - SERVIÇOS DE "900" - "DISQUE PRAZER" - COBRANÇA - NECESSIDADE DE PRÉVIA SOLICITAÇÃO - CDC, ART. 39, III.

- A cobrança de serviço de "900 - disque prazer" sem a prévia solicitação do consumidor constitui prática abusiva (CDC, art. 39, III). Se prestado, sem o pedido anterior, tal serviço equipara-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento (CDC, art. 39, parágrafo único).

- Recurso provido." (REsp 318.372/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ: 17/5/2004)

"TELEFONE. SERVIÇO "900". "Disque prazer". Código de Defesa do Consumidor.

O serviço "900" é oneroso e somente pode ser fornecido mediante prévia solicitação do titular da linha telefônica.

Recurso conhecido e provido." (REsp 258.156/SP, Rel. Min. Ruy Rosado, DJ: 21/09/2000)

b) Cadastros de inadimplentes

b.1) Indevida inclusão ou manutenção de nome e indenização por danos morais

Sem embargo do importante papel exercido pelos bancos de dados de maus consumidores (Ex: SPC, Serasa), algumas práticas relacionadas com esses serviços já foram consideradas abusivas pelo CDC, principalmente em relação aos fornecedores que enviam os nomes dos consumidores.

Imaginemos a situação na qual o consumidor paga pontualmente todas as prestações mensais que lhe foram incumbidas, mas, mesmo assim, o fornecedor envia o nome do consumidor para algum cadastro de inadimplentes. Ou, a situação na qual o consumidor, inadimplente, quita suas dívidas, mas o fornecedor se omite durante meses na retirada do nome dele de cadastros de inadimplentes.

Perante essas situações, o STJ firmou o entendimento de que: da indevida inclusão (ou manutenção) de nome de consumidor em cadastro de inadimplentes existe a presunção de um dano moral indenizável, ou seja, o consumidor não precisa fazer a prova de que houve abalo à sua honra ou reputação para conseguir indenização, pois a existência de dano, nessas situações, é presumida (dentre outros: REsp 419.365/MT, de minha relatoria, DJ: 11/11/2002; e REsp 432.177/SC, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ: 28/10/2003).

b.2) Discussão judicial do débito e cadastro de inadimplentes

No julgamento do REsp n. 527.618/RS, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, a 2ª Seção do STJ pacificou o entendimento de que a restrição à inclusão ou manutenção do nome de devedor em cadastros de inadimplentes exige, necessária e concomitantemente, a presença dos seguintes requisitos:

a) que haja ação proposta pelo devedor discutindo a existência integral ou parcial do débito;

b) que haja efetiva demonstração de que as alegações estão amparadas na aparência do bom direito e em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;

c) sendo a discussão relativa a apenas parte do débito, que o devedor deposite o valor referente à parte tida por incontroversa, ou preste caução idônea, ao prudente arbítrio do magistrado.


V – Cláusulas abusivas

a) Plano e seguro de saúde

A Lei 9.656/98 veio a estabelecer várias regras a respeito dos contratos de plano e seguro de saúde.

Na atualidade, esses contratos podem ser divididos em duas espécies (com dois diferentes regimes jurídicos): aqueles que foram firmados antes da vigência da Lei 9.656/98, e os que foram firmados após.

Essa lei trouxe vários avanços para os consumidores desses serviços. Registre-se que alguns desses avanços foram conquistas da jurisprudência, posteriormente incorporados pela lei.

Em situação mais delicada estão aqueles contratos firmados antes da vigência dessa lei.

Quanto a estes, o STJ recentemente editou a Súmula 302: "É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado."

Outro tema interessante foi apreciado pela a 3ª Turma do STJ recentemente. O consumidor afirmou que mudou de plano de saúde, pois a nova operadora de plano de saúde, por meio do corretor, havia lhe informado que o tempo de carência já cumprido no contrato anterior, seria aproveitado no novo contrato.

Sucedeu que o consumidor precisou utilizar os serviços do novo plano de saúde, o que foi negado pela operadora sob o argumento de que não havia transcorrido o período de carência.

O consumidor propôs uma ação em juízo, para obter a condenação da operadora ao pagamento das despesas médico-hospitalares que teve, e pleiteou a produção de prova testemunhal para comprovar o alegado.

Contudo, tanto o Juiz quanto o Tribunal de Justiça negaram a produção da prova, sob o argumento de que essa "alteração contratual" somente poderia ser comprovada por meio de prova escrita.

No STJ, em acórdão de minha relatoria, a 3ª Turma, com fundamento, entre outros, no art. 30 do CDC ("Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado"), deu provimento ao recurso especial interposto em favor do consumidor. Veja-se a ementa:

"Sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, as informações prestadas por corretor a respeito de contrato de seguro-saúde (ou plano de saúde) integram o contrato que vier a ser celebrado e podem ser comprovadas por todos os meios probatórios admitidos.

Recurso especial parcialmente conhecido e provido." (REsp 531.281, DJ: 23/8/2004)

b) Multa moratória superior a 2%

Recentemente, o STJ solucionou uma polêmica existente sobre o limite da multa moratória de 2% prevista no § 1º do art. 52 do CDC (com a redação dada pela da Lei 9.298/96).

A polêmica estava em saber se esse limite se aplicava apenas aos contratos que envolvessem outorga de crédito ou concessão de financiamento, pois o caput do art. 52 do CDC dispõe sobre esses contratos.

No julgamento do REsp 476.649 (DJ:25/2/2004, unânime), afirmei que a interpretação do § 1º do art. 52 do CDC não poderia ficar presa à sua mera posição topológica em detrimento da uma interpretação sistemática e teleológica, e que, de toda forma, o Juiz poderia, com fundamento nos arts. 6º, V, e 51, IV e XV do CDC, utilizar o percentual de 2% como parâmetro para estabelecer o necessário equilíbrio entre os contratantes.

O julgamento foi assim ementado:

"Consumidor. Contrato de prestações de serviços educacionais. Mensalidades escolares. Multa moratória de 10% limitada em 2%. Art. 52, § 1º, do CDC. Aplicabilidade. Interpretação sistemática e teleológica. Eqüidade. Função social do contrato.

- É aplicável aos contratos de prestações de serviços educacionais o limite de 2% para a multa moratória, em harmonia com o disposto no § 1º do art. 52, § 1º, do CDC.

Recurso especial não conhecido."

c) Contratos bancários

c.1) Aplicabilidade do CDC

Inicialmente, ressalte-se que foi sumulado o entendimento de que "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras" (Súmula 297/STJ).

Realmente, o CDC é expresso quanto à inclusão dos serviços bancários sob a sua égide (§ 2º do art. 3º) e, por ser lei principiológica, o CDC será aplicado sempre que houver uma relação de consumo, exista ou não uma lei específica que cuide do negócio jurídico.

c.2) Da abusividade da cláusula que estabelece taxa de juros

Admitida a aplicação do CDC aos contratos bancários, o STJ também já posicionou sobre a possibilidade de declaração de abusividade da cláusula que dispõe a respeito da taxa de juros.

Segundo a jurisprudência atualmente dominante na a 2ª Seção do STJ, a cláusula que estabelece juros em contrato bancário poder ser considerada abusiva em duas situações: a) se, no contrato celebrado, a taxa comprovadamente discrepar, "de modo substancial, da média do mercado na praça do empréstimo, salvo se justificada pelo risco da operação" (REsp’s 407.097/RS e 420.111/RS, Rel. p/ acórdão Min. Ari Pargendler, DJ:29/9/2003); ou b) "diante de uma demonstração cabal da excessividade do lucro da intermediação financeira, da margem do banco, um dos componentes do spread bancário, ou de desequilíbrio contratual" (REsp 271.214/RS, Rel. p/ acórdão Min. Menezes Direito, DJ: 4/8/2003).


VI - Temas processuais

a) Da competência

Encontra-se sedimentada na jurisprudência do STJ a possibilidade de o Juiz declarar a nulidade da cláusula de eleição de foro inserida em um contrato de consumo.

Com efeito, o CDC estabelece, como direitos básicos do consumidor, o acesso à Justiça e a facilitação da defesa de seus direitos (art. 6º, VII e VIII). Registre-se o precedente:

"Competência. Código de Defesa do Consumidor. Cláusula de eleição de foro. Contrato de adesão. Cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, de que resulta dificuldade para a defesa do réu. Tratando-se de ação derivada de relação de consumo, em que deve ser facilitada a defesa do direito do consumidor (Art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor), impende considerar como absoluta a competência do foro do domicílio do réu, não se exigindo, pois, exceção de incompetência. Conflito conhecido." CC 17.735, Rel. p/ acórdão Min. Costa Leite, DJ: 16/11/1998

b) Da inversão do ônus da prova

b.1) Não é automática

No tocante à inversão ao ônus da prova, inicialmente é importante ressaltar que não é em todo processo decorrente de relação de consumo que ocorrerá a inversão do ônus da prova, é necessário que exista decisão judicial para tanto.

Ou seja, mesmo nas lides que versam sobre relação de consumo, incide a regra prevista no art. 333 do CPC, a qual poderá ser afastada se o Juiz verificar o preenchimento dos requisitos previstos no art. 6º, VIII, do CDC (verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor). Nesse sentido:

"A inversão ou não do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII da Lei nº 8.078/90, depende da análise de requisitos básicos (verossimilhança das alegações e hipossuficiência do consumidor), aferidas com base nos aspectos fático-probatórios peculiares de cada caso concreto." (REsp 435.572/RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ: 16/8/2004)

"A inversão do ônus da prova está no contexto da facilitação da defesa, sendo o consumidor hipossuficiente, nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, dependendo, portanto, de circunstâncias concretas, a critério do Juiz." (REsp 541.813/SP, Rel. Min. Menezes Direito, DJ: 2/8/2004)

b.2) Inversão do ônus da prova e antecipação de pagamento de despesas processuais

Uma questão ainda não pacificada no STJ diz respeito à antecipação de despesas processuais quando há a inversão do ônus da prova.

Suponhamos que houve inversão do ônus da prova e o autor-consumidor pleiteou a produção de alguma prova, admitida pelo Juiz. O fornecedor deverá antecipar essa despesa processual?

Para a 4ª Turma do STJ, a "inversão do ônus da prova significa também transferir ao réu o ônus de antecipar as despesas de perícia tida por imprescindível ao julgamento da causa" (REsp 383.276/RJ, Rel. Min. Ruy Rosado, DJ: 18/06/2002).

Já para a 3ª Turma do STJ, a "inversão do ônus da prova não tem o efeito de obrigar a parte contrária a pagar as custas da prova requerida pelo consumidor, mas, sofre as conseqüências de não produzi-la" (REsp 435.155/MG, Rel. Min. Direito, DJ: 11/02/2003).

Observem que, nos dois posicionamentos, procurou-se sempre proteger o consumidor, seja determinando ao réu-fornecedor o pagamento da produção da prova, seja expressamente imputando a ele as conseqüências processuais da não realização dessa prova.

b.3) Momento de inversão do ônus da prova

Uma questão importante a respeito da inversão do ônus da prova, e que ainda não foi apreciada de forma explícita pelo STJ, diz respeito ao momento em que deve ocorrer a inversão.

Percebe-se que a doutrina e a jurisprudência dos tribunais de justiça dividiram-se em duas linhas: a) para uns, a inversão do ônus da prova é regra de julgamento, e poderia ocorrer inclusive no proferimento da sentença ou do acórdão da apelação; b) já para outros, o momento processual adequado para a inversão seria no saneamento do processo, de maneira a possibilitar ao fornecedor o devido processo legal.

Acredito que, em momento próximo, haverá o desenlace desse ponto no STJ.

c) Da intervenção de terceiros

No tocante à intervenção de terceiros, impõe lembrar que, de forma explícita, o CDC apenas veda: a) a denunciação da lide quando se discute responsabilidade do comerciante por fato do produto (art. 88); b) a integração do contraditório pelo Instituto de Resseguros do Brasil (art. 101, II).

E o CDC expressamente permite o chamamento ao processo do segurador (art. 101, I).

Excluídas as mencionadas exceções, entendo pela possibilidade de intervenção de terceiro em processo que cuida de relação de consumo, desde de que não haja prejuízo processual para o consumidor ou retardamento do processo.

Registre-se o precedente, de minha relatoria:

"Processual Civil e Direito do Consumidor. Indenização por acidente de trânsito. Sentença condenatória prolatada em favor do consumidor. Intervenção de terceiro que prejudicaria a consecução imediata do direito material do consumidor. Enaltecimento do princípio da vulnerabilidade do consumidor. Ordem pública.

- Não deve ser admitida a intervenção de terceiro quando já proferida sentença, na medida em que a anulação do processo, para permitir o chamamento da seguradora, acabaria por retardar o feito, prejudicando o consumidor, o que contraria o escopo do sistema de proteção do CDC.

- A possibilidade de decorrer prejuízo pelo retardamento da prestação jurisdicional é suficiente, por si só, para se deixar de discutir o cabimento da intervenção de terceiro, quando a pendência de sua apreciação é atingida pela superveniente prolação da sentença." (AGA 184.616/RJ, DJ: 28/5/2001)

Coerente com essa linha de entendimento, no julgamento do REsp 485.742/RO (DJ:8/3/2004), Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, a 4ª Turma do STJ apreciou um processo no qual uma vítima (consumidora) buscava indenização de determinada fabricante de cerveja em decorrência de explosão de garrafa que veio a ferir a vítima na face.

Nessa oportunidade, o STJ afastou o fundamento utilizado no Tribunal de Justiça (de que, em se tratando de relação de consumo, não poderia haver nunca a denunciação), porém não a admitiu sob os seguintes fundamentos:

"É que, em primeiro, a jurisprudência do STJ tem ressalvado o direito de regresso, de modo que mesmo que não efetuada a denunciação, não perderá a ré a possibilidade de cobrar de terceiros, se responsáveis forem, pelas despesas feitas com o ressarcimento ao autor.

Em segundo, também não se admite a instauração de uma lide paralela, entre a cervejaria e o fornecedor da garrafa, ou entre a primeira ou os dois e o vendedor direto do produto ao consumidor final, quando, na verdade, a relação jurídica instaurada entre a fábrica da bebida e o autor é plenamente identificável e independente das demais. Causaria imenso retardo à ação, se se fosse possibilitar trazer ao processo todas as discussões paralelas, que a ela não servem diretamente, senão secundariamente e no mero interesse da ré, não do autor lesado".

Por último, registre-se o entendimento firmado no STJ, em se tratando ou não de relação de consumo, de indeferir a denunciação da lide com fundamento no art. 70, III, do CPC ("àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda"), "se o seu desenvolvimento importar (...) na necessidade de o denunciado invocar fato novo ou fato substancial distinto do que foi veiculado na defesa da demanda principal (...), não estando o direito de regresso comprovado de plano, nem dependendo apenas da realização de provas que seriam produzidas em razão da própria necessidade instrutória do feito principal" REsp 299.108/RJ, Rel. p/ acórdão Min. Cesar Asfor Rocha, DJ: 5/6/2001.

d) Da possibilidade de declaração, de ofício, de nulidade de cláusulas contratuais

Conforme se sabe, o processo civil brasileiro é regido por alguns princípios, dentre os quais se encontram o "da adstrição do Juízo ao pedido da parte" e "da vedação de reforma para pior".

A doutrina majoritária que se debruçou sobre o tema, entende que, nas lides que versam sobre relação de consumo, esses princípios são relativizados, pois o Juiz pode, de ofício, declarar a nulidade de cláusulas contratuais abusivas, em decorrência de as normas do CDC, de ordem pública e interesse social (art. 1º), estabelecerem nulidades de pleno direito.

Contudo, há também aqueles que entendem que os mencionados princípios devem prevalecer sempre.

Percebe-se que essa também é uma questão controvertida e está sendo atualmente debatida pela 3ª Turma do STJ (REsp 612.470/RS, de minha relatoria).


VII – Conclusão

Embora com mais de uma década de vigência, o CDC ainda pode ser considerado um diploma legal novo em virtude das importantes modificações que trouxe no nosso ordenamento jurídico.

Os aplicadores do direito têm, ao seu lado, um importante instrumento para a consecução do objetivo de existência de transparência e harmonia nas relações de consumo.

Várias questões polêmicas já se delinearam, algumas resolvidas e outras não, e, em decorrência do caráter "aberto" do CDC, inúmeras outras ainda surgirão.

Desse modo, decorre para todos nós a responsabilidade pela construção de uma jurisprudência que realmente efetive os direitos dos consumidores.

Sobre a autora
Fátima Nancy Andrighi

ministra do Superior Tribunal de Justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRIGHI, Fátima Nancy. O CDC e o STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1236, 19 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9176. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Texto originado de palestra proferida pela autora e publicado na Biblioteca Digital Jurídica (BDJur) do Superior Tribunal de Justiça (<a href="http://bdjur.stj.gov.br">http://bdjur.stj.gov.br</a>). Reproduzido mediante permissão da autora e do site.

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