VI. RITOS PROCESSUAIS NAS NOVOS LITÍGIOS SUJEITOS À COMPETÊNCIA MATERIALDA JUSTIÇA DO TRABALHO (EC n. 45/2004)
O presente tópico não diz respeito às implicações do «pacote republicano» no plano infraconstitucional (Leis ns. 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006, 11.280/2006, etc.), mas a algumas de suas implicações no plano constitucional (EC n. 45/2004), especialmente quanto à nova redação do artigo 114 da CRFB, que estendeu a competência material da Justiça do Trabalho para uma série de litígios que antes estavam afetos a outras jurisdições. Qual seria o procedimento aplicável ao processamento de tais litígios, que não são tipicamente trabalhistas porque não contrapõem, individual ou coletivamente, empregadores e trabalhadores?
Considerando-se que o rito da CLT serve originalmente "aos dissídios, oriundos das relações entre empregados e empregadores, bem como de trabalhadores avulsos e seus tomadores de serviços, em atividades reguladas na legislação social" (artigo 643, caput, da CLT), seria de se supor que, aos demais casos ― que não têm índole trabalhista "stricto sensu" ―, aplicar-se-ia o processo civil "in integrum" (e não subsidiariamente). O rito da CLT não teria, nesses casos, qualquer serventia.
Historicamente, porém, os juízes do Trabalho vinham estendendo o procedimento celetário ― notadamente o ordinário, dos artigos 837 a 852 ― às novas ações que foram se agregando à sua atividade judiciária, como, p. ex., as ações cautelares, as ações consignatórias em pagamento e as ações civis públicas. Assim é que, em todas essas ações, é hábito a contestação ser recebida em audiência, quando também se realizam atos de instrução (artigo 847 da CLT) e se colhem razões finais (artigo 850, caput, da CLT), ressalvados os casos de maior complexidade; e não é esse, consabidamente, o rito previsto no CPC e na Lei n. 7.347/85 para aquelas ações. O mesmo ocorreu com os litígios atípicos que passaram à competência da Justiça do Trabalho antes da EC n. 45/2004, como as ações entre portuários (trabalhadores vs. operadores ou Órgão de Gestão de Mão de Obra ― OGMO), nos termos do artigo 643, §3º, e 652, V, da CLT (ut MP n. 2.164-41/2001); e, bem antes isso, já era assim com as ações resultantes de contratos de empreitada de empreiteiro operário ou artífice (artigo 652, III, da CLT): o procedimento aplicável sempre foi o celetário, a despeito do silêncio do artigo 643 da CLT.
Agora, com o advento da EC n. 45/2004, não será diferente. O Tribunal Superior do Trabalho não tardou em editar a Instrução Normativa n. 27, de 22.02.2005, que "dispõe sobre normas procedimentais aplicáveis ao processo do trabalho em decorrência da ampliação da competência da Justiça do Trabalho pela Emenda Constitucional nº 45/2004". Consoante o artigo 1º da IN n. 27/2005,
As ações ajuizadas na Justiça do Trabalho tramitarão pelo rito ordinário ou sumaríssimo, conforme previsto na Consolidação das Leis do Trabalho, excepcionando-se, apenas, as que, por disciplina legal expressa, estejam sujeitas a rito especial, tais como o Mandado de Segurança, Habeas Corpus, Habeas Data, Ação Rescisória, Ação Cautelar e Ação de Consignação em Pagamento [73].
Da mesma forma, ainda nos primórdios da vigência da Emenda, os Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª e da 15ª Região sugeriram, em recomendação conjunta, a aplicação dos ritos da CLT às novas causas da Justiça do Trabalho, excepcionando apenas os remédios constitucionais, que têm ritos especiais em legislação própria. É o que ocorre com as ações previstas no artigo 114, IV, CRFB: o "habeas corpus" (com rito previsto no Código de Processo Penal ― artigos 647 a 667 ― e, a partir dele, nos Regimentos dos Tribunais Regionais e do Tribunal Superior do Trabalho), o "habeas data" (com rito previsto na Lei n. 9.507/97) e o próprio mandado de segurança (rito da Lei n. 1.533/51).
Revendo posição anterior, cremos hoje que essa interpretação justifica-se plenamente, sobretudo na perspectiva de uma abordagem garantista do processo, uma vez que os procedimentos celetários são mais céleres e atendem melhor aos princípios da imediatidade, da oralidade, da simplicidade e da celeridade (esse, agora, com dimensão constitucional). Preferirão, nesse aspecto, ao procedimento civil ordinário, sumário ou mesmo sumariíssimo, se não pela própria celeridade, também pelos instrumentos que dispõem à efetividade da jurisdição (pense-se, aqui, no instituto do depósito recursal, que poderia otimizar o cumprimento de sentenças em ações de reparação civil por danos decorrentes de relações de trabalho não-subordinado). Pela adoção dos ritos trabalhistas realizam-se melhor, dessarte, tanto o princípio da efetividade da tutela jurisdicional, já várias vezes citado, quando o princípio da celeridade; e, sendo ambos princípios constitucionais (aquele implícito ― cfr., supra, o tópico I ― e esse explícito, ut artigo 5º, LXXVIII, 2ª parte, CRFB), tratar-se-á, indelevelmente, de uma interpretação conforme a Constituição ("verfassungskonforme Auslegung"), por atender ao princípio hermenêutico da máxima efetividade das normas constitucionais, consoante os escólios de KONRAD HESSE e de GOMES CANOTILHO [74], entre outros. Preserva-se, outrossim, a identidade da Justiça do Trabalho; afinal, como bem pontuou MANOEL ANTONIO TEIXEIRA FILHO, admitir como regra a dualidade de ritos
acabaria por afrontar a própria tradição histórica da Justiça do Trabalho, que se veria convertida em uma espécie de departamento heterotópico da Justiça Comum, e, deste modo, revitalizando a idéia, há muito vogante, de extinção da Justiça do Trabalho, transferindo sua competência para a Justiça Comum que, para esse efeito, especializaria Varas e Câmaras [75].
Conseqüentemente, fazemos coro com os tribunais quanto à aplicação dos procedimentos trabalhistas (o ordinário, o sumário ― artigo 2º da Lei n. 5.584/70 ― e o «sumaríssimo» dos artigos 852-A a 852-I da CLT) às novas causas de competência da Justiça do Trabalho (EC n. 45/2004). Mas esse coro é, diga-se, relativo. A "relatividade" deve-se aos condicionamentos que nos parecem indispensáveis e que, na verdade, vão ao encontro das exceções previstas na parte final do artigo 1º da IN n. 27/2005. É de se admitir o emprego dos procedimentos trabalhistas nos litígios atípicos subordinados à competência material da Justiça do Trabalho, desde que sejam sucedâneos rituais objetivos dos correspondentes procedimentos comuns cíveis antes aplicáveis à espécie (o ordinário, dos artigos 282 a 331 do CPC; o sumário, dos artigos 275 a 281 do CPC; ou o «sumaríssimo», da Lei n. 9.099/95); ou, excepcionalmente, quando realizarem melhor as garantias do processo justo (notadamente o princípio da efetividade da tutela jurisdicional), em comparação com os procedimentos especiais cíveis que lhes estão normalmente afetos. Esse critério exclui, a nosso ver, todos os remédios constitucionais ("habeas corpus", "habeas data", mandados de segurança, mandados de injunção), que possuem ritos mais céleres e garantistas; e, a par disso, fornece um balizamento científico para uma opção que, até agora, tem se pautado indevidamente no pressuposto da hierarquia judiciária.
VI. CONCLUSÕES
Poderíamos aproveitar este epílogo para abusar da paciência do leitor e repisar, item por item, todos os posicionamentos incorporados ao nosso texto. Não seria, então, uma verdadeira "conclusão", mas um resumo tópico, como tantas vezes fizemos.
Dessa vez, porém, não o faremos. Preferimos exortar, e somente exortar.
Exortar os operadores jurídicos, e especialmente os juízes do Trabalho, a reconhecerem nas normas processuais e nos procedimentos um instrumento para a realização dos direitos materiais postos em causa. Mas exortá-los também a reconhecer que o legislador democraticamente eleito tem um papel a cumprir, legitimando o regime político republicano e compondo a alma desse nosso "Estado Democrático de Direito" ― expressão que amiúde gostamos de repetir, altaneiros, nas sentenças, entrevistas e artigos. Já por isso, o conteúdo da lei processual deve merecer, por princípio, o respeito e o acatamento daqueles mesmos operadores; e não porque esse é também o Estado da "lei" («dura lex, sed lex»), ou da tecnoburocracia, mas porque é direito fundamental do réu somente ser privado de sua liberdade ou de seu patrimônio ao ensejo de um devido processo... legal.
Nem sempre o processo "legal" será constitucional; e, nesse caso, abre-se ao intérprete a ocasião de adaptá-lo, aperfeiçoá-lo ou mesmo repudiá-lo, até para servir-se de outro que pareça mais adequado. Não se pode, contudo, banalizar essa condição, sob pena de criar insegurança jurídica e engendrar argumentos retóricos que erodem as próprias bases do sistema republicano ― e, como tais, podem ser apropriados por qualquer ideologia. Há que argumentar, sim; mas argumentar convincentemente, sempre na perspectiva jusfundamental (ALEXY), fazendo valer, por juízos sérios de ponderação, os princípios maiores a cuja primazia o intérprete se rendeu. E tendo-se em conta, que, à argumentação sólida, retidão e medida são essenciais.
O processo do trabalho tem sido negligenciado pelo Poder Legislativo Federal. Mas, a despeito disso, continua sendo um instrumento formidável de realização de Justiça social. A ele não renunciemos simplesmente, mesmo que o "novíssimo" processo civil nos pareça, hoje, o caminho mais curto para a satisfação dos interesses alimentares dos reclamantes. Talvez não o seja; nem sempre o será. Sobre isso ― e agora falo em primeira pessoa ― arrisco-me a transcrever estrofe de uma canção punk que me acompanhou em idos tempos e há dias voltou-me à memória, quando refletia sobre esse tema. Diz a letra:
Vigiai o teu juízo,
Nossa mente é tão astuta
O sabor do paraíso
Está sempre em outra fruta... [76]
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