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A Lei da Arbitragem: análise à luz dos princípios gerais de direito

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4. A declaração incidenter tantum da inconstitucionalidade da Lei

Ademais disso, como princípio e garantia fundamental assegurado a todos os cidadãos que o é, mister salientar que, como dito anteriormente, o direito de ação ou de acesso ao judiciário, por ser indisponível, não pode ser objeto de renúncia por qualquer das partes, razão pela qual, nesta mesma linha de raciocínio, cabe-nos considerar que muito embora o Excelso Supremo Tribunal Federal ainda não tenha se manifestado, pela via concentrada de controle da constitucionalidade, acerca da atual lei de arbitragem, o Eminente Ministro Sepúlveda Pertence, ao relatar o Agravo Regimental em Sentença Estrangeira n.º 5206-7, não perdeu a oportunidade de declarar incidenter tantum a inconstitucionalidade de alguns artigos da atual lei de arbitragem, fundamentando sua decisão exatamente no fato da irrenunciabilidade do direito fundamental de acesso ao judiciário; referido voto, devido sua clareza e precisão, merece ser ora transcrito:

"Mas, a renunciabilidade da ação - porque direito de caráter instrumental - não existe in abstracto: só se pode aferi-lo em concreto, pois tem por pressuposto e é coextensivo, em cada caso da disponibilidade do direito questionado, ou melhor, das pretensões materiais contrapostas, que substantivam a lide confiada pelas partes à decisão arbitral.

Segue-se que a manifestação de vontade da qual decorra instituição do juízo arbitral - onde exista a garantia constitucional da universalidade da jurisdição judicial e, pois, do direito de ação - não pode anteceder à efetiva atualidade da controvérsia a cujo deslinde pelo Poder Judiciário o acordo implica renunciar. Vale dizer, que não prescinde da concreta determinação de um litígio atual (...)

Por isso mesmo é que a doutrina firmada antes da lei de arbitragem repeliu, quase à unanimidade, a possibilidade da execução judicial específica da cláusula compromissória, como demonstrado, de modo definitivo, por José Carlos Barbosa Moreira (ob. loc. cits.) (...)

Penso, entretanto, que, no ordenamento brasileiro, há obstáculo intransponível, no ponto, à aplicação da lei nova.

Viu-se, com efeito, que o empecilho à incidência, na hipótese, da regra geral do art. 639 do C. Pr. Civ., é a impossibilidade, nos termos do dispositivo, de o juiz substituir pela própria a vontade da parte recalcitrante, ´regulando matéria estranha ao conteúdo do negócio preliminar´ - qual é, em relação à cláusula compromissória, a determinação da lide a ser submetida à arbitragem.

Ora, essa impossibilidade não a pode suprir a lei ordinária, sem ferir a garantia constitucional de que ´ a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito´ (CF, art. 5ª, XXXV) (...)

Na cláusula compromissória, entretanto, o objeto dessa opção, posto que consensual, não são lides já determinadas e concretizadas, como se dá no compromisso: serão lides futuras e eventuais, de contornos indefinidos; quando muito, na expressão de Carnelutti (ob. Cit. ,p. 550), lides determináveis pela referência ao contrato de cuja execução possam vir a surgir.

A renúncia, com força de definitiva, que ai se divisasse à via judicial já não se legitimaria por derivação da disponibilidade do objeto do litígio, que pressupõe a sua determinação, mas, ao contrário, consubstanciaria renúncia genérica, de objeto indefinido, à garantia constitucional de acesso à jurisdição, cuja validade os princípios repelem.

Sendo a vontade da parte, manifestada na cláusula compromissória, insuficiente - dada a indeterminação do seu objeto - e, pois, diversa da necessária a compor o consenso exigido à formação do compromisso, permitir o suprimento judicial seria admitir a instituição de um juízo arbitral com dispensa da vontade bilateral dos litigantes, que, só ela, lhe pode emprestar legitimidade constitucional: entendo nesse sentido a lição de Pontes (ob. cit. ,XV/224) de que fere o princípio invocado - hoje, art. 5º, XXXV, da Constituição - atribuir, ao compromisso que assim se formasse por provimento judicial substitutivo do assentimento de uma das partes, ´ eficácia fora do que é a vontade dos figurantes em se submeterem.

Não posso fugir, desse modo, à declaração da inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 6º e do art. 7º da lei de arbitragem e, em conseqüência, dos outros dispositivos que delas derivam, isto é, no art. 41, da nova redação dada aos arts. 267, VII, e 301, XI, do C. Pr. Civil (que estendem a qualquer modalidade de convenção de arbitragem - e, pois, a hipótese de simples cláusula compromissória - a força impeditiva da constituição ou da continuidade do processo judicial sobre a mesma lide objeto do acordo arbitral), o art., 42, que acrescenta um novo inciso, n. VI ao art. 520 C. Pr. Civil para incluir no rol dos casos de apelação com efeito só devolutivo, o da interposta contra a sentença ´que julgar procedente o pedido de instituição da arbitragem.´ ". (grifamos e sublinhamos)

Portanto, concluímos que a decisão acima transcrita, extraída do voto do Eminente Ministro Sepúlveda Pertence está a reforçar a tese aqui assumida de que é inconstitucional a inserção de cláusula compromissória nos contratos, tendo-se em vista ser esta cláusula considerada uma renúncia genérica ao direito de ação que, dada sua natureza jurídica de direito indisponível, é absolutamente irrenunciável.

A fim de colocar-se verdadeira pá de cal a respeito da adequada interpretação e aplicação dos princípios e garantias fundamentais do cidadão no Estado Democrático de Direito, previstos em nossa "Lex Superior"- tais quais os princípios do juízo legal, da inafastabilidade da jurisdição e do devido processo legal -, não poderíamos deixar de nos referir à brilhante lição esposada pelo mestre Paulo Bonavides, in verbis:

"Os direitos fundamentais são a bússola das Constituições. A pior das inconstitucionalidades não deriva, porém, da inconstitucionalidade formal, mas da inconstitucionalidade material, deveras contumaz nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, onde as estruturas constitucionais, habitualmente instáveis e movediças, são vulneráveis aos reflexos que os fatores econômicos, políticos e financeiros sobre elas projetam. O Estado padece com relação ao controle desses fatores um déficit de soberania, tanto interna como externa, perdendo assim, em elevado grau, a sua capacidade regulativa. Isto, que já ocorria desde muito com patente força, aumentou de intensidade a partir da globalização e do neoliberalismo. Tanto na doutrina como na praxis política, as formas liberais e globais não só a desarmam, senão que enfraquecem o Estado, obrigando-o a evacuar o espaço de fomento e proteção de direitos fundamentais... .Tudo por obra dos sobreditos fenômenos - globalização e neoliberalismo -, derivados do sistema capitalista em sua fase mais recente de expansão. Fase, sem dúvida, sombria para o futuro dos direitos fundamentais, mormente tocante ao capítulo se sua interpretação nos países de periferia desse sistema. Cabe, por conseguinte, reiterar: quem governa com grandes omissões constitucionais de natureza material menospreza os direitos fundamentais e os interpreta a favor dos fortes contra os fracos. Governa, assim, fora da legítima ordem econômica, social e cultural e se arreda da tridimensionalidade emancipativa contida nos direitos fundamentais da segunda, terceira e quarta gerações" (Curso de Direito Constitucional, 8ª edição, Malheiros Editores, pág. 583 e seg.)

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5. Reflexão: Das inovações trazidas ao risco do "Darwinismo Social".

Sob a ótica do aqui exposto, não podemos deixar de concluir que parece ser exasperador a muitos "espertos" - assim nos referimos àqueles que desrespeitando direitos e garantias fundamentais dos cidadãos encontram obscuras maneiras para sobrepor os seus próprios interesses -, o gravame na Constituição Federal do nosso País de dispositivos claramente propícios ao desenvolvimento de uma sociedade que encarne o Estado democrático de direito, principalmente os enumerados no art. 5º, e de maneira particular necessário repisar aqui os princípios da inafastabilidade da jurisdição e a imprescindibilidade do devido processo legal.

Estes, especialmente hoje, favorecidos com o discurso monolítico de favorecer o que é mais moderno, o menos retrógrado, não se dão conta do risco, hoje mais que nunca presente, de estarem facilitando o crescimento da cultura de maior adaptabilidade ao mais forte.

Paladinos modernos do "darwinismo social", se alguma classificação lhes devesse ser dada em função das idéias que pregam, sem se aperceberem, espera-se - no sentido de lhes conceder um tempo para que um dia em breve se convençam do pernicioso que praticam - propõem, travestidas de modernidade, o que Herbert Spencer teve coragem de estender aos homens aquilo que Darwin descobrira como importante fator seletivo entre os organismos de modo geral: a sobrevivência dos mais aptos, dos mais fortes. De modo que, no mundo competitivo que apregoam como necessário hoje, aquela sociedade que estiver mais organizada em favor dos interesses dos mais fortes, dos mais espertos terá vantagens, enquanto os pobres, os miseráveis, de preferencia devem sucumbir, pois sua incapacidade em competir, provada pela miserabilidade em que vivem, os coloca como fardo indesejável para os "mais evoluídos".

Incapazes de entenderem a sociedade humana como algo que deve ser construído a partir da evolução que já ocorreu; não entendem o homem como é proposto, por exemplo, além de muitos outros autores, pelo emérito professor Goffredo Telles Júnior, em "Ética - Do mundo da célula ao mundo da cultura", 1988, Editora Forense. Afinal, o ilustre jurista explica como as moléculas presentes nos seres vivos se agrupam, se organizam até ao homem como é visto hoje, com potencial de evolução para chegar ao estágio de todos iguais, todos produtos do mesmo tronco evolutivo, e portanto todos irmãos, de modo que "não seria de surpreender que, em meio do deslumbramento que nos ilumina, nossos lábios se ponham a murmurar ... ´Pai nosso que estás nos céus´...". No lugar disso aquelas pessoas - os espertos a que nos referimos - querem pronunciar apenas aquilo que a sabedoria popular já conhece bem, ou seja, o "venha a nós o vosso reino e seja feita a minha vontade"; descrença com os que devem decidir, com os que devem assumir responsabilidade social.

Nestas duas situações acima, o Direito, como bem explica o Professor Goffredo Telles, quando fala da primeira, repita-se, o Direito tem toda a razão de ser, é fundamental. Estará exercendo a sua essência: Justiça, igualdade. Parece que na segunda, na do "venha a nós o vosso reino e seja feita a minha vontade" estará legitimando aquilo que os animais inferiores já o fazem seguindo seus instintos primários. O Direito estaria sendo descartado, bem como toda a evolução de milhares de anos da espécie humana.

Lamentável que em situação de litígio, em circunstâncias adversas, uma das partes, inferiorizada, tenha que se submeter aos ditames de lei que, eventualmente, possa servir a tais propósitos de exclusão, pois ancorada em base "anti-ética" - para se dizer o mínimo -, a negação da Ciência do Direito.

Portanto, seja do ponto de vista filosófico, metafísico ou mesmo científico, travestida de modernidade, a lei em comento nos reduz aos primórdios da civilização humana ou mesmo "quase humana", posto que ao positivar um sentimento ou uma intenção de imposição da consagração legal do "darwinismo social" faz tábula rasa de todo o processo civilizatório que culminou com o moderno Estado Democrático de Direito, empreendendo-se o caminho do retorno à lei dos mais fortes, ou mesmo, a uma lei para os mais fortes, e pior, muito pior, um Poder Judiciário para os mais fortes.

E não seria por este caminho que se explicaria que a Lei n.º 9307/96, ao estabelecer a possibilidade da arbitragem, apesar de não ser feita no ambiente e por profissional do Direito, ter sua decisão produzindo os mesmos efeitos como se no interior do Direito houvesse sido tomada?

Embora não se quede aqui a explicitar supostas segundas intenções de terceiros pretende-se, com o acima exposto, praticar a sábia recomendação de Kant quando diz em seu "Projeto de Paz Perpétua": "Uma intenção que não pode ser divulgada e só pode ser concretizada de maneira encoberta ameaça de injustiça a coletividade e os indivíduos".

Consoante isto e diferentemente do que se pode interpretar das idéias dos que se colocam como mais modernos, como vistas acima, quiseram nossos Constituintes, garantir direitos indistintamente a todos, explicitando princípios, mormente, preocuparam-se em garantir ao Estado o arcabouço jurídico para tal fim necessário. Pode-se dizer que estiveram particularmente preocupados em possibilitar na prática do Estado o que o notável jurista italiano Mauro Cappelletti, professor por muitos anos na Universidade Stanford (EUA) e autor de importantes trabalhos de direito comparado, como "O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado" e "Acesso à Justiça", diz com sabedoria: "Sob a ponte da Justiça passam todas as dores, todas as misérias, todas as aberrações, todas as opiniões políticas, todos os interesses sociais. Justiça é compreensão, isto é, tomar em conjunto e adaptar os interesses opostos: a sociedade de hoje e a esperança do amanhã".

E, embora seja consenso a necessidade de reformas no Judiciário, o que se pretende com elas é justamente aperfeiçoar os pontos onde justamente as práticas do Judiciário, além de outros, em prioridade não permitem o acesso por igual de todos à Justiça, como também, vale lembrar, dadas as circunstâncias presentes no caso atual, dever-se-á excluir o formalismo excessivo que acarreta prejuízo para a essência do Direito.

No entanto, cremos nós, tais mudanças necessárias certamente serão no sentido de aumentar a credibilidade do sistema jurídico e dos princípios constitucionais e gerais do Direito, base do Estado Democrático de Direito, e excluído o "facilitatório" - pois, o "mais fácil" é a pretensão que está presente na lei 9307/96 que trata da Arbitragem - que, travestida de "modernismo", legalize o poder do mais forte, o exercício da antítese da Ciência do Direito, ou pior, a introdução no arcabouço jurídico de uma Nação de um Poder Judiciário de "primeira classe", "célere", "sofisticado", técnico" para legitimar negócios ou solucionar controvérsias entre empresas ou grupos de empresas a latere do poder estatal, este, no entender dos "modernos", irrecuperável como instrumento de adequação da resolução das lides neste mundo globalizado.

Parece-nos que tal quadro é a realidade concreta proposta pela nova lei de arbitragem, qual seja, a criação de um Poder Judiciário privado, ou mesmo, um Estado apropriado privatisticamente dentro do Estado. Aos demais co-cidadãos, fica a prestação jurisdicional tradicional, "lenta", "difícil", "inadequada" e ineficaz" aos reclamos dos autos negócios globalizados. Seria cômico se não fosse trágico o fato de que esta usurpação de poder se faz às escancaras e com o beneplácito de parte de consciência jurídica nacional. É com tristeza que constatamos a inércia de parte do Poder Judiciário nacional na defesa de suas próprias prerrogativas, não como serviço público, mas como poder de Estado, o qual o Judiciário o é, ou pelo menos, ainda o é. No mais, é melancólica a constatação de que no crepúsculo deste nosso combalido século, se constate a materialização do pesadelo Orweliniano proposto por esta nova lei, ou seja, todos são iguais perante a lei, porém alguns mais iguais que os outros são.


BIBLIOGRAFIA

1. Bobbio, Norberto, Teoria do Ordenamento Jurídico, ed. Polis c/ ed. Universidade de Brasília, 1991;

2. Bonavides, Paulo, Curso de Direito Constitucional, Malheiros Editores, 8ª edição;

3. Canotilho, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora Almedina, 1997;

4. Cintra, C. Antônio; Grinover, Ada; Dinamarco, Cândido, Teoria Geral do Processo, Malheiros Editores, 10ª edição;

5. Mello, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editora, 10ª edição;

6. Satta, Salvatore, Manual de Derecho Procesal Civil, volume I, Ediciones Juridicas Europa-america.

Sobre os autores
João Piza Fontes

advogado em São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, João Piza; AZEVEDO, Fábio Costa. A Lei da Arbitragem: análise à luz dos princípios gerais de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/921. Acesso em: 23 dez. 2024.

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