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Hiperinflação legislativa:

um mal crônico no Brasil

Agenda 02/12/2006 às 00:00

O cidadão brasileiro certamente não pode reclamar que vive num país sem leis. Depois de dezoito anos da promulgação da Constituição Federal (outubro de 1988) constatou-se que foram produzidas no Brasil 3.510.804 novas normas jurídicas.

Essa hiperinflação legislativa talvez não encontre, no mundo, parâmetro comparativo similar. No levantamento de 2002 feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (Curitiba) achava-se em vigor no Brasil mais de 28.000 leis e constituições. Cerca de 10.000 eram leis ordinárias. Milhares de medidas provisórias. Da promulgação da Constituição Federal (05.10.88) até 28.02.02 foram editadas (nos três níveis da Federação: Federal, Estadual e Municipal) 1.787.248 normas (incluindo-se emendas constitucionais, leis, medidas provisórias, decretos e normas complementares, etc.). No âmbito federal, até 28.02.02, foram elaboradas: 6 emendas de revisão, 35 emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 55 leis complementares, 2.738 leis ordinárias, 653 medidas provisórias, 5.491 medidas reeditadas, 7.181 decretos e 78.422 normas complementares (portarias, instruções, atos normativos, ordens de serviço, etc.) (cf. O Estado de São Paulo de 14.04.02, p. A12).

Os números que acabam de ser descritos foram atualizados até a data de 04.10.06 (dia em que a CF completou dezoito anos). No âmbito federal são os seguintes: 1 Constituição Federal, 6 Emendas constitucionais de revisão, 52 Emendas constitucionais, 2 Leis delegadas, 63 Leis complementares, 3.701 Leis ordinárias, 940 Medidas Provisórias originárias, 5.491 Medidas Provisórias reeditadas, 8.947 Decretos federais, 122.568 normas complementares. Total: 141.771 normas jurídicas, ou seja, 21,57 normas por dia. Nos Estados foram publicadas (nos mesmos dezoito anos) 891.112 normas (135,55 normas por dia). Nos Municípios foram criadas 2.477.920 normas (376,93 normas por dia). Em média aprova-se no Brasil 783 novas normas jurídicas por dia útil. Setenta por cento delas emanam do Poder Executivo (cf. Valor Econômico de 6, 7 e 8 de outubro de 2006, p. E1).

Uma boa parcela dessa avalanche legislativa refere-se ao Direito penal. Desde a época das primeiras codificações até hoje nota-se um intenso e permanente processo de criminalização de condutas, sem preocupação com limites ou mesmo com requisitos materiais mínimos que devem envolver a criação de um tipo penal.

A Justiça criminal, ao se prestar à tarefa de aplicar sanções penais a ilícitos de pequena relevância social ou política, passou a conhecer (e a conviver com) o fenômeno da paralisante sobrecarga de trabalho, que conduz a conseqüências nefastas tanto do ponto de vista de sua funcionalidade (morosidade, descrédito, sensação de impunidade, de ineficácia da ameaça penal, a inoperatividade frente a delitos graves etc.), como do econômico (gasto com o aparato judiciário para julgar todas essas infrações de ofensividade escassa segundo os parâmetros procedimentais clássicos, no custo de sua execução e ao próprio condenado etc.).

A proliferação indiscriminada dos ilícitos administrativos com a etiqueta de ilícitos penais, criminalizando-se condutas de escassa (ou nenhuma) ofensividade (isso foi o que ocorreu abundantemente na lei ambiental – Lei 9.605/98), representa preocupação proeminente da Política criminal que atua no sentido da mínima intervenção, em razão, dentre outros, dos elevados custos decorrentes da utilização do Direito penal (sociais e individuais).

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Von Liszt, já no final do Século XIX dizia: "Nossa legislação atual faz da pena, como meio de luta, um emprego superabundante. Dever-se-ia pensar se não mereceria ser restaurado o antigo princípio "mínima non curat praetor", ou como preceito jurídico procedimental (quebra do princípio da legalidade ou obrigatoriedade da ação penal), ou como regra de direito material (impunidade por insignificância da infração). O emprego mais freqüente da multa, no domínio do Direito privado, faria supérflua mais de uma ação penal; o procedimento de reparação por meio de árbitros evitaria numerosas condenações. É de suma importância a separação das contravenções do domínio das infrações (Unrecht) criminais."

A natural conseqüência (e esse é outro aspecto do mesmo fenômeno) da hipertrofia do Direito penal consiste em causar sua inoperatividade, com os decorrentes prejuízos para a prevenção geral (e a própria eficácia e reputação do Direito penal).

Hiperinflação legislativa e inoperatividade são, assim, duas marcantes características do "moderno" Direito penal, ou seja, do Direito penal herdado dos últimos séculos. Ambas, lamentavelmente, tendem a se agravar na era da globalização. Isso não explica em sua total dimensão o problema, mas contribui para entender porque o sistema punitivo, na atualidade, cumpre mais (dis) funções (promocionais e simbólicas) do que as funções ideais (sobretudo a função instrumental de tutela de bens jurídicos relevantes).

Uma forma de reduzir o sistema penal seria por meio de uma ampla descriminalização (retirando-se o caráter de ilícito ou de ilícito penal de uma grande quantidade de incriminações). Dir-se-ia que no Brasil algo já foi feito com as Leis 9.099/1995 (lei dos juizados especiais criminais), 10.259/2002 e 11.313/2006 (estas últimas ampliaram o conceito de infração de menor potencial ofensivo para dois anos). Um grande passo já foi dado, sem sombra de dúvida. Mas ainda é pouco, porque o legislador brasileiro até aqui vem perseguindo a despenalização (soluções alternativas, sanções alternativas, sem tocar no caráter penal das infrações) quando o adequado, frente a uma quantidade enorme de infrações penais, é a descriminalização, que constitui a via adequada para a paralisação do incontrolável processo de expansão do Direito penal, que é muito evidente no nosso país.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Hiperinflação legislativa:: um mal crônico no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1249, 2 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9234. Acesso em: 22 nov. 2024.

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