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Inconstitucionalidade da extinção dos Tribunais de Alçada de São Paulo

Com a promulgação da Emenda nº 8, de 20.05.99, publicada no DOE de 21.05.99, foi alterada a Constituição do Estado de São Paulo transformando os Tribunais de Alçada em seções do Tribunal de Justiça e, uma vez mantida a nova redação do texto constitucional, os atuais Juizes serão guindados a Desembargadores, observada a ordem de antigüidade. Na prática, a promulgação da citada Emenda Constitucional pela Assembléia Legislativa Paulista, que inclusive já teve sua eficácia suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal, vem extinguir os Tribunais de Alçada e promover a desembargadores os Juizes de Alçada, suscitando divergências entre os próprios magistrados, trazendo em seu bojo duas questões que merecem maior reflexão se confrontadas com os ditames constitucionais e regimentais que versam a matéria. São elas: a competência para se propor a alteração da estrutura do Poder Judiciário Estadual e a promoção dos Juízes de Alçada a Desembargadores do Tribunal de Justiça.


Antes porém, julgamos pertinente um breve relato sobre a criação dos Tribunais de Alçada e para tanto partiremos da transcrição do art. 124, II da Constituição de 1946 que assim dispunha:

"Art. 124 – Os Estados organizarão a sua justiça com observância dos arts. 95 a 97 e também dos seguintes princípios: (...)

II – poderão ser criados tribunais de alçada inferior à dos Tribunais de Justiça;"

Tal previsão constitucional visando um incremento da administração e distribuição da Justiça, propiciou ao Estado de São Paulo, em ato pioneiro, a edição da Lei nº 1.162, em 1951, que criou o Tribunal de Alçada, com sede na Capital do Estado e jurisdição em todo o território paulista, contando à época com quinze juizes indicados pelo Tribunal de Justiça e nomeados pelo Governador, que compunham duas Câmaras Civis e duas Criminais.

Com o aumento do número de demandas judiciais passou a haver uma natural sobrecarga de processos junto ao Tribunal de Alçada, sobrecarga esta incondizente com a eficiência necessária a toda prestação jurisdicional. Assim, em 1965 a Lei nº 9.125 determina o tresdobramento do Tribunal de Alçada em Primeiro Tribunal de Alçada Civil (1º TAC); Segundo Tribunal de Alçada Civil (2º TAC) e Tribunal de Alçada Criminal (Tacrim), todos os três com suas competências devidamente delimitadas por esta lei que os instituiu e determinou que o preenchimento das vagas dos Tribunais de Alçada seria feito nos termos dos incisos IV e V do art. 124 da Constituição Federal de 1946, apurada a antigüidade entre os Juizes de Direito da mais alta entrância, sendo válido o mesmo critério para fins de promoção para o Tribunal de Justiça.

É necessário que se destaque que a citada Lei 9.125/65 já continha em seu corpo duas disposições que nos propiciam antever que a competência para se propor a alteração da estrutura do Poder Judiciário Estadual é do Tribunal de Justiça (TJSP). A primeira disposição presente em seu art. 6º determinava que "Por proposta do Tribunal de Justiça poderão ser alterados o número de ministros dos Tribunais de Alçada, sua jurisdição e competência, bem como criados outros Tribunais."(grifamos), e a segunda inserta em seu art. 18 dispunha que "Aos ministros dos Tribunais de Alçada é assegurado o direito de remoção de um Tribunal para outro, mediante prévia aprovação do Tribunal de Justiça." (grifamos). Note-se que em ambas as passagens o legislador atribuiu ao TJSP, afastando de plano a interferência de qualquer outro poder, a incumbência de se manifestar, propondo e aprovando as alterações no número de juizes do Alçada, denominados ministros à época, suas competências, jurisdição e eventuais remoções.

Posteriormente o Decreto-Lei Complementar nº 3 de 27.8.69, que instituiu o Código Judiciário do Estado de São Paulo, além de repetir as previsões da lei de 1965, dispôs em seu art. 99 que o disciplinamento daquelas matérias é atribuição exclusiva do TJSP. Logo, se legalmente determinou-se que a competência para tratar de certas matérias é exclusiva de uma entidade, há a automática exclusão das demais, inexistindo até mesmo a possibilidade de sua delegação.

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Hoje, tanto o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, quanto a própria Constituição Paulista determinam que a este órgão, mediante iniciativa de seu Presidente, compete nomear, promover, remover, aposentar e colocar em disponibilidade os juizes de sua Jurisdição, incluindo-se aqui os que atuam nos Tribunais de Alçada.


Portanto, afigura-se-nos de duvidosa constitucionalidade a Emenda nº 8, promulgada pela Mesa da Assembléia Legislativa, que, ao dar nova redação ao art. 78 da Constituição Estadual, transformou os Tribunais de Alçada em seções do TJSP, sem que tenha havido uma propositura de lei formalmente emanada pela Presidência daquele Tribunal, que de fato detém competência para fazê-lo, ocorrendo desta maneira frontal ofensa ao Princípio da Independência e Harmonia entre os poderes insculpido no art. 2º da Constituição Federal. Sabe-se que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário exercem suas funções típicas e atípicas. Tipicamente a função do Poder Judiciário é a de julgar é claro, porém, quando do exercício de suas funções atípicas administra e legisla: administra, por exemplo, ao organizar suas secretarias e serviços auxiliares (art. 96, inc. I, alínea "b" da CF); legisla, quando propõe a criação de novas varas judiciárias (art. 96, inc. I, alínea "d" da CF), ou ainda quando propõe ao Poder Legislativo respectivo a alteração do número de membros dos tribunais inferiores, ou a criação ou extinção dos tribunais inferiores (art. 96, inc.II, alíneas "a" e "c" da CF). Outro dispositivo constitucional que reflete a função legislativa do Poder Judiciário é o § 1º do art. 125 que determina que a lei de organização judiciária será de iniciativa do Tribunal de Justiça. Diante destas previsões constitucionais pergunta-se: Poderia uma Emenda à Constituição Estadual extinguir os Tribunais de Alçada e promover a desembargadores os Juizes de Alçada ? Seguramente a resposta é negativa. E isto porque as Emendas Constitucionais somente ingressam no mundo jurídico se obedecerem às disposições pré-determinadas pelo art. 60 da Constituição Federal ou pelo art. 22 da Constituição Paulista, sendo que neste processo não há previsão de participação do Poder Judiciário, o que é um requisito indispensável em se tratando de extinção de Tribunais ou promoção de Juizes.

Registre-se que o Supremo Tribunal Federal já se enfrentou a questão ao julgar a Adin nº 2.741-PE, cuja ementa pedimos vênia para transcrever: " Tribunal de Justiça. Composição. Aumento de desembargadores pela Assembléia Constituinte Estadual independente de iniciativa do Judiciário. Inconstitucionalidade. É inconstitucional o aumento do número de desembargadores sem proposta do Tribunal de Justiça. A regra, que decorre do princípio da independência e harmonia entre os poderes e é tradicional no direito republicano, aplica-se tanto à legislatura ordinária, como à constituinte estadual, em razão do que prescreve a Constituição Federal, art. 96, II, b e d."

Importante ressaltar ainda, que o art. 95 da Constituição Federal prevê que os magistrados gozam de certas garantias imprescindíveis para lhes conferir a segurança e imparcialidade necessárias ao livre exercício de suas atribuições. São elas: a vitaliciedade, a inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público e a irredutibilidade de subsídio. Além destas garantias os magistrados gozam ainda das prerrogativas ( que não se confundem com privilégios) elencadas no art. 33 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Considerando-se que pela vitaliciedade o membro do Poder Judiciário não é destituído de seu cargo por ato estranho ao Poder que integra, teremos outro argumento apto a reforçar a idéia de que o Poder Legislativo Estadual, sponte propria, não poderia "determinar" a extinção dos cargos de Juizes de Alçada decorrente da extinção dos Tribunais em que judicavam. Quando do julgamento da supracitada Adin 2.741-PE, o Sr. Ministro Carlos Velloso, que atualmente preside o STF, assim se pronunciou: "Ao Tribunal de Justiça, pois, compete, por expressa disposição constitucional, propor a criação ou a extinção de seus cargos. Ora, se propõe a extinção, está propondo a alteração para menos; se propõe a criação, está propondo a alteração para mais. Porque a ele, Tribunal, compete fazer tais proposições, segue-se que a alteração do número de seus membros somente poderá por proposta sua ao Poder Legislativo. (...) Ora, é o próprio tribunal que deve decidir a respeito da conveniência da alteração de seus membros. A aceitação de afirmativa contrária esvaziaria a autonomia dos tribunais, em termos de autogoverno, o que resultaria tratar mal o princípio da separação dos Poderes (...)". (cf. RDA 202/206).

Mais gravosa ainda, a nosso ver, é a conseqüência acessória surgida à partir desta unificação, qual seja, a súbita promoção dos Juizes de Alçada a Desembargadores do TJSP, prevista na redação atribuída ao art. 79 da Constituição do Estado de São Paulo pela polêmica Emenda Constitucional. Sem entrarmos no mérito do merecimento destas promoções atribuídas aos eméritos juizes que compõem os Tribunais de Alçada, queremos significar que tais promoções vêm a ocorrer com total inobservância das atuais normas regimentais e constitucionais insertas em nosso ordenamento jurídico.

De acordo com o art. 4º do Regimento Interno do TJSP "O Tribunal se compõe de cento e trinta e dois desembargadores, promovidos e nomeados na forma da Constituição e da lei". A expressão "nomeação na forma da Constituição" diz respeito à forma de provimento à função jurisdicional de segundo grau conhecida por "quinto constitucional" previsto tanto em nossa Constituição Federal (art. 94), quanto na Constituição Paulista (art. 63), determinando que um quinto dos lugares do Tribunal de Justiça (dentre os demais lá previstos) deverá ser composto de advogados e membros do Ministério Público, de notório saber jurídico e reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional ou de carreira, indicados em lista sêxtupla, pelos órgãos de representação das respectivas classes, no caso, a Seção Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil ou o Ministério Público. Já a "promoção" regrada pelo art. 93, inc. II da CF e pelo art. 61 da Constituição Paulista, também com previsão no já mencionado art. 4º do Regimento Interno do TJSP, caracteriza-se por ser a forma de provimento derivado ao cargo de Desembargador e somente ocorre mediante a observância dos critérios alternados de merecimento e de antigüidade previstos no art. 126 e seguintes das normas regimentais do TJSP.

Tanto a nomeação, pelo quinto constitucional, quanto a promoção, por antigüidade e merecimento, estão inseridas na competência institucional do próprio Tribunal de Justiça e pressupõem a existência obrigatória de cargos que estejam vagos quer pela promoção (vacância sem a extinção do vínculo), quer pela aposentadoria ou morte de seus ocupantes (vacância com a extinção do vínculo para seu antigo ocupante). Ressalte-se que a extinção ou não do vínculo diz respeito exclusivamente à pessoa de seu antigo ocupante. Os cargos anteriormente ocupados continuam existindo, uma vez que foram legalmente criados, porém, agora estão vagos em virtude de eventual promoção, aposentadoria ou morte daqueles que os ocupavam. Caso inexistam cargos vagos as promoções ficarão suspensas até que, por intermédio de lei em sentido formal sejam criadas novas vagas passíveis de serem futuramente providas. E, como afirmamos acima, a criação de cargos (incluindo-se os de Desembargadores), bem como a criação ou extinção dos Tribunais inferiores, nos termos do art. 96, inc. II, alíneas "b" e "c" da Constituição Federal, respectivamente, é competência que parte privativamente do Tribunal de Justiça, no caso em pauta (e esta competência também foi prevista pela Constituição Estadual em seu art. 70). Portanto, somente a este Tribunal compete encaminhar ao respectivo Poder Legislativo proposta tendente a alterar o número de Desembargadores. A propósito o parágrafo único do art. 4º do Regimento Interno do TJSP prescreve que o número de 132 Desembargadores só poderá ser alterado por proposta motivada do Tribunal, se o total de processos distribuídos e julgados, durante o ano anterior, superar o índice de trezentos feitos por juiz.

Ressalte-se que todos estes dispositivos nos dão a clara certeza de que em hipótese alguma estaria a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, legitimada, por ato de sua iniciativa, a determinar a fusão dos Tribunais de Alçada com o Tribunal de Justiça Estadual, nem tampouco, "promover" repentinamente os 201 Juizes que compõem os três Tribunais de Alçada, ao cargo de Desembargadores.

No quadro organizacional do Tribunal de Justiça Paulista certamente não há vagas legalmente criadas e que estejam disponíveis para serem providas por todos os Juizes dos "extintos" Tribunais de Alçada. Deste modo, pelo critério de merecimento e antigüidade (art. 126 do RITJSP), e dependendo do número de cargos vagos no TJSP, somente alguns dos mais antigos Juizes do Alçada passarão a ocupar cargos de Desembargadores do TJ, observando-se ainda o critério do "quinto constitucional". E quanto aos demais ? Ora, uma vez extintos os cargos de juizes do Alçada, cremos que seus antigos ocupantes ficarão em disponibilidade remunerada até que sejam criados novos cargos junto ao TJSP, aplicando-se-lhes o disposto no art. 41, § 3º da CF que assim dispõe: "Extinto o cargo ou declarada a sua desnecessidade, o servidor estável ficará em disponibilidade, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu adequado aproveitamento em outro cargo". A par da grande discussão em torno da natureza jurídica dos membros do Poder Judiciário (se agentes políticos ou servidores públicos), entendemos que este mandamento constitucional também é aplicável aos magistrados quando da extinção ou declaração de desnecessidade dos cargos que ocupam. Assim, enquanto não haja a criação de novos cargos junto ao Tribunal de Justiça (que também deverá, por intermédio de seu Órgão Especial, elaborar sua proposta orçamentária, encaminhando-a, por seu Presidente, ao Poder Executivo, para inclusão no projeto de lei orçamentária - cf. art. 56 da Constituição Paulista) os Juizes dos Tribunais de Alçada estarão percebendo suas respectivas remunerações proporcionais ao tempo de serviço, fato que se contrapõe ao objetivo visado por aqueles que apoiam a unificação dos Tribunais Paulistas, qual seja, o de conferir maior agilidade processual com imediata economia orçamentária.


Com estas breves considerações, não queremos deixar transparecer discordância à referida unificação das Cortes de Justiça do Estado de São Paulo. Se tal unificação demonstrar-se benéfica deve ser posta em prática, porém, com ampla e total observância dos procedimentos constitucionais e regimentais que norteiam a matéria.

A propósito é de se noticiar que a Procuradoria Geral da República, valendo-se da competência que lhe é constitucionalmente assegurada pelo art.103, inc. VI, propôs junto ao Supremo Tribunal Federal, em 08 de junho do corrente, uma ADIN - Ação Direta de Inconstitucionalidade (nº 2011-1) em face das disposições da citada Emenda Constitucional, que em julgamento da medida liminar realizado em 30 de junho, teve sua eficácia suspensa por 10 votos a 1.

Sobre os autores
Diogenes Gasparini

Falecido em 23 de janeiro de 2009. Foi advogado em São Paulo, mestre e doutor pela PUC/SP, professor titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo

Marcello Rodrigues Palmieri

advogado em São Paulo, gerente da Consultoria NDJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPARINI, Diogenes; PALMIERI, Marcello Rodrigues. Inconstitucionalidade da extinção dos Tribunais de Alçada de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/926. Acesso em: 23 dez. 2024.

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