4ª PARTE
Promessas ou saídas possíveis?
Soem como promessas, soem como saídas realmente possíveis, o que importa é não concluirmos esta discussão pelas alegações quer sejam do Terrorismo de Estado, quer sejam do Estado de Exceção.
Vimos como foi preciso superar a luta por autoconservação e ver sua transformação na luta intersubjetiva por reconhecimento, uma vez que é como se Maquiavel e Hobbes tivessem descrito a idade da pedra do Estado Moderno e, com a teoria do Estado de natureza, tivessem pintado de preto e branco o homem pré-histórico [32].
Já no âmbito da luta por reconhecimento, chegamos ao Iluminismo do século XVIII e a alguns herdeiros de segunda ordem, mas de igual grandeza: "...a filosofia social de Marx, de Sorel e de Sartre representa o exemplo mais significativo de uma corrente de pensamento que, contra Hobbes e Maquiavel, carregou teoricamente os conflitos sociais com as exigências do reconhecimento, mas sem nunca poder penetrar realmente sua infra-estrutura moral" (Honneth, 2003, p. 228).
Todavia, o fato é que temos de enfrentar aquele ponto de inflexão da modernidade, subsumindo a ratio em razão instrumental ou em desrazão. Como vimos, no lugar do raciocínio por hipóteses, impôs-se o uso/abusivo do método indutivo e, por isso, parte desta batalha também deve ser a afirmação do método dedutivo.
Ouvindo-se os sujeitos e não só perscrutando o objeto em sua validez, esta seria, indubitavelmente, uma maneira de reaviver as vítimas da razão: "As vítimas da razão instrumental submetem-se ao pensamento lógico, revivendo o ritual mítico do sacrifício, só que agora a vítima se inverte na apoteose do ‘escolhido’; na ciência moderna a natureza como um todo se converte em um conjunto de objetos disponíveis e manipuláveis pela vontade de saber que é vontade de poder" (Matos, 2006, p. 92).
O que levaria esse Outro, enquanto sujeito do conhecimento de si mesmo (da autocrítica à autonomia), a postar-se reflexivamente, criticamente contra a lógica e a manipulação mecânica da razão instrumental (Matos, 2006, p. 93).
Este novo sujeito do conhecimento integrado, global, formar-se-ia a partir do "sujeito homem-natureza"; superando-se o "homem-máquina" reificado pela razão instrumental: "A visão de Adorno é a da não separação sujeito-objeto, no sentido de o homem se relacionar com a natureza entendida, ela mesma, como ‘sujeito" (Matos, 2006, p. 97).
Isto equivaleria, na atual fase da modernidade tardia, a reverter o ponto de inflexão da modernidade precursora (da ratio à desrazão) e, assim, propor um novo e outro ponto de reflexão: "A crítica à razão das Luzes é o melhor serviço que a Razão pode prestar à razão que se alienou de toda significação espiritual em seus procedimentos e conquista da natureza" (Matos, 2006, p. 98).
Este reconciliar-se com a natureza é como perceber-se diante da fragilidade e da prudência da lebre — e mesmo que o homem só se reconheça mais facilmente pela primeira condição, é preciso urgentemente aplicar-se à segunda. Caso contrário, ainda iremos conviver por muito tempo com este estado de exceção latente, fabricando e sendo fabricados por inimigos — desrealizando o real e o Outro:
Já que existe um "estado de exceção em permanência" na contemporaneidade – as guerras tecnológicas desrealizantes – é por haver um "estado de exceção das almas" – em estado de guerra com "inimigos" a serem eliminados. O inimigo é sempre o Outro projetivo, o não-idêntico, o dessemelhante, o bode-expiatório do mal-estar da civilização (Matos, 2006, p. 99).
Deste modo, se passamos a pensar pela via das lutas intersubjetivas por reconhecimento, então, sempre é preciso superar o momento das negatividades (e ainda que se tenha de pontuá-las muitas vezes, visualizá-las em profundidade). Por isso, pensamos em indicar algumas tarefas necessárias, como utopias possíveis, como práxis social sustentada em verbos afirmativos:
- Reinquirir pelo sentido mais amplo possível da idéia-base que sustenta o "direito a ter direitos" (Bobbio, 1992);
- Reconhecer e estimular a essência da luta intersubjetiva por reconhecimento, como parte da luta mais austera e sincera em prol da afirmação do "princípio da sociabilidade";
- Expandir o confronto para todos os âmbitos em que ainda vigore algum suspiro deste famigerado "direito à exclusão";
- Desativar todas as prerrogativas que procuram se transformar em motes de exceção e que, conjuntamente, alimentam todas as formas de Estado de não-Direito (Canotilho, 1999);
- Despromover toda luta por autoconservação que não venha mediada, cotejada pela premissa da intersubjetividade e balizada pelas lutas sociais em favor da promoção da autonomia humana;
- Combater qualquer forma de terror;
- Cercear toda tentativa de banalização do mal;
- Priorizar a solidariedade e a Justiça Social;
- Reestruturar o espaço público, agora não mais como extensão da esfera privada (Habermas, 2003);
- Debelar todo tipo de estranhamento mais ofensivo ao mundo do trabalho e que possam obstaculizar o desenvolvimento dos suportes da vida social;
- Desbaratar a coisificação presente, mas detectada há muito tempo [33];
- Superar os entraves calcados nas formas de colonização da vida social atual;
- Fortalecer as bases sociais, culturais e políticas dos movimentos, das frentes e das lutas populares que requerem reconhecimento e legitimidade;
- Investir maciçamente na educação para a República.
Conseqüentemente, é preciso ter uma nova dimensão ou visualizar uma outra dimensão para nossa realidade — muitas vezes é preciso retornar ao passado, aos clássicos, para ali encontrar mais motivação, inspiração e "correição" dos atos que nos faltam. Por isso, é preciso:
- Pensar uma nova Antropologia da modernidade, como uma retomada da antiga ligação entre filosofia e medicina (como medicina da alma), como uma filosofia para a vida toda e não só como instrumento de dominação (quer seja dominação do conhecimento instrumental, quer seja da natureza e dos outros homens). Nesta que é uma eterna luta contra a coisificação, o consumismo de si mesmo com a decorrente tecnocracia da vida, planificação dos sentimentos:
O tecnocrata não está interessado em compreender as coisas por si mesmas em função do entendimento em si mesmo, mas sim em função de ajustá-las {ao quadro do presente}, não importando o quanto este seja alheio à estrutura interior dessas coisas; isso se aplica tanto aos seres vivos quanto às coisas inanimadas [...] O seu comando decidido transformará os homens num conjunto de instrumentos sem objetivos próprios. As forças econômicas adquirem o caráter de poderes naturais cegos que o homem, a fim de poder preservar a si mesmo, deve dominar, ajustando-se a eles [34] (Matos, 2006, p. 36).
- Superar o medo à liberdade, como La Boétie e, portanto, desafiar a lógica da Razão de Estado em nome da sociedade. Diferentemente do "homem de poder", o homem virtuoso [35] é o que busca intersubjetivamente a liberdade. (É preciso entender a resposta dada por La Boétie a Hobbes):
A "servidão voluntária" é índice e expressão de um medo. Mas não é medo da morte física, como queria Hobbes, pois, diz La Boétie, os homens se apressam a dar a vida por uma causa, um chefe, uma guerra. Se o medo não é da morte, qual é ele então? Se medo há, é medo da indeterminação que nos habita e que tem, precisamente, sua origem na nossa liberdade. Liberdade de pensamento e vontade de verdade respondiam, no contexto grego, à busca do homem virtuoso, para o quê o exame dialético – o diálogo – era uma Paidéia (Matos, 2006, p. 39).
- Retomar o humanismo e a tradição da Paidéia (formação de espíritos) e voltar ao pensamento germinal, para aderir ou para tecer críticas: "Clássico: pensamento datado e não datado, que orientava os homens como um fio entre gerações" (Matos, 2006, p. 42).
- Superar esse estágio em que o irracional (como o exemplo claro do "direito à exclusão") ocupa o lugar do racional — superando esta fase de imbecilidade em que estamos imersos:
Se a televisão utiliza um vocabulário de "no máximo 300 palavras", o "Decálogo do Jornalista" prevê um leitor com capacidade intelectual de "dez anos" (Matos, 2006, p 42).
- Dar tempo à formação , no dizer de Adorno [36], deixando para trás os "lacaios do instante", a "demagogia da facilidade", a "barbárie estilizada" (Matos, 2006, p. 43).
- Reafirmar a formação de uma solidariedade realmente sólida, robusta e firme — que tenha o mesmo status que o próprio Estado.
- Retomar o humanismo como "educação para a emancipação"; combater vigorosamente a burrice solene, daquele que não percebe a própria ignorância e que não vê perigo na razão; combater a adoração ou o ufanismo pela "Ordem e Progresso":
O nazismo – como emblema do mundo administrado – não é um acidente de percurso político, mas o resultado do vitorioso desenvolvimento da ratio, cuja matriz é a ciência moderna – desde Bacon vinculada ao desenvolvimento industrial agressivo, sob auspícios expressamente materiais [37]. Há barbárie, diz Adorno, sempre que se retrocede à violência física e diversas regressões da sociedade (Matos, 2006, p. 44).
- Combater vigorosamente qualquer possibilidade e sobrevida da intolerância proto-fascista.
- Vencer a falta de coragem ou de decisão para se servir do entendimento sem a tutela de outrem, pois não somos educados para a emancipação.
- Instigar talentos para a emancipação, com um tipo de aprendizado com base em estímulos e motivação — o próprio Adorno (1995) citava que sua formação se deveu a ter "pensamentos não-assegurados". Daí a idéia de se desacreditar o "fetiche do talento" e a "crença romântica na genialidade". Ou, o que é mais grave, a "glorificação da heteronomia".
- Enfraquecer a "crença" ou a simples aceitação dos papéis, funções ou representações impostas por força da heteronomia [38]:
...já no próprio conceito de função ou papel, derivado do teatro, prolonga-se a não-identidade dos seres humanos consigo mesmos. Isto é, quando a função é convertida em um padrão social, por essa via se pergunta também que os homens não são aqueles que eles mesmos são, portanto que eles são não-idênticos. Considero repugnante a versão normativa do conceito de papel, e é preciso contrapor-se a ele com todo vigor (Adorno, 1995, p. 178).
- Ultrapassar os limites da educação reificada, porque o que se vê, em regra, não é uma "pedagogia da emancipação", mas sim o culto à autoridade — ensina-se mais a lutar pela autoconservação, do que a lutar pelo reconhecimento da autonomia. Deveríamos educar para a auto-consciência, para a autolegislação [39].
- Orientar ações para que se tenha uma "educação para a contradição e para a resistência" — vivemos numa época, séculos XX e XXI, em que "o mundo quer ser enganado".
- Moldar uma educação para atacar o "nojento" e para se "tornar infecto". Afinal, uma educação de qualidade é uma educação para os clássicos, em que:
...houvesse visitas conjuntas a filmes comerciais, mostrando-se simplesmente aos alunos as falsidades aí presentes; e que se proceda de maneira semelhante para imunizá-los contra determinados programas matinais ainda existentes nas rádios, em que nos domingos de manhã são tocadas músicas alegres como se vivêssemos num "mundo feliz", embora ele seja um verdadeiro horror [...] ou então que um professor de música, não oriundo da música jovem, proceda a análises dos sucessos musicais, mostrando-lhes por que um kit da parada de sucessos é tão incomparavelmente pior do que um quarteto de Mozart ou de Bethoven ou uma peça verdadeiramente autêntica da nova música (Adorno, 1995, p. 183).
- Superar a uniformização e a administração dos sentidos da vida; rejeitar toda recaída, tentação ou regressão à barbárie e ao arcaísmo.
- Defender vigorosamente o "direito à diferença". O projeto mais ambicioso do nazismo foi ter protocolado solenemente o "direito à exclusão". Ironicamente, este "direito à exclusão", base do Estado de Exceção, está fundamentado no fundamentalismo da identidade de origem ou também chamado "princípio da igualdade":
Genocídios, racismo, tortura, miséria espiritual e material, fundamentalismos religiosos e guerras constituem-se na cultura fundada sobre o princípio de igualdade e seu aliado – o de origem. Havendo sempre algo de primeiro e uno, cada grupo se vê como o legítimo representante da origem – cujo correlato é identidade sedentária. A origem, no sentido dado pela palavra alemã Herkunft, é, para Nietszche, o tronco de uma raça, uma proveniência; é o antigo pertencimento a um grupo – de sangue, de tradição (Matos, 2006, p. 45).
- Reescrever o "direito à razão", com mais lógica e inteligência do que até agora.
- Identificar identidade e autonomia (para além de qualquer soberania — a não ser que se trate da "soberania do sujeito", portanto, para além da máquina do Estado): "Medo da autonomia e servidão voluntária se encontram" (Matos, 2006, p. 48).
- Retomar citações para o bem:
Citações não contém apenas um saber para ser lido ou ouvido, mas para ser escutado e seguido, constituindo índice de orientação no pensamento. O "conhece-te a ti mesmo" socrático ressoa no "Que sais-je" de Montaigne [...] Sentenças escritas, citações desenhadas: nas primeiras, a autoritas, nas segundas, o exemplum. Em seu entrecruzamento, a máxima moral, arte de buscar a justa vida e o bem viver (Matos, 2006, p. 49).
Sem querer a pretensão de esgotar assuntos tão vastos e complexos, mas salientando suas configurações e contradições, tão envolventes quanto a própria modernidade, nosso objetivo foi apenas de indicar algumas pistas valiosas para o estudo aprofundado desses temas: lutas sociais por reconhecimento; liberdade e autonomia; Razão de Estado; Estado de Direito; Estado de Exceção; Terrorismo de Estado. Ficam, enfim, pistas ou dicas para que se aprofunde esta iniciativa de uma dialética do direito à exclusão.