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O saneamento do processo e a preclusão

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Agenda 30/01/2007 às 00:00

A preclusão incide sobre as decisões relativas ao saneamento? Até que ponto a preclusão se aplica ao saneamento do processo? Para quem incide a preclusão?

Síntese: O texto trata do saneamento do processo e da incidência da preclusão sobre as decisões tomadas com esta finalidade.

Sumário: 1- Introdução. 2-A prendendo a Pensar o Processo. 3- Premissas Estruturais. 4- Saneamento do Processo. 5- Condições da Ação (Rectius: Condições para a obtenção da Tutela-Tipo pretendida) e Pressupostos Processuais no Saneamento. 6- Preclusão. 7- O Saneamento em sua Dinâmica e a Preclusão. 8- Conclusões. 9- Referências Bibliográficas.


1- INTRODUÇÃO

            No contexto das ciências jurídicas e seus vários quadrantes, observamos que algumas áreas se destacam pelo desenvolvimento alçado desde a estruturação científica do Direito. O Direito Civil, mais abrangente ramo do direito privado, e o direito processual civil relacionado às demandas que sobre aquele versam, foram estames que se caracterizam de forma particular pela extensão e quantidade de trabalhos científicos existentes.

            As causas deste fenômeno serão adiante analisadas mais amiúde. É certo, porém, que o direito processual apresenta um índice de desenvolvimento impar, pois enquanto o direito civil encontrou sólida base em ancestrais institutos e princípios que permeiam o seu trato desde Roma, o direito processual independente é uma realidade bem mais recente.

            Não obstante ser o ramo do direito que mais se desenvolveu recentemente, o processo civil ainda apresenta muitas questões insolúveis ou mal resolvidas. Tal se deve a sua extensão como disciplina individualizada e a sua complexidade, uma vez que envolve o exercício de um direito fundamental de envergadura constitucional (ação), e a formação de uma relação jurídica de natureza pública (relação processual) e dinâmica, ainda que o seu conteúdo seja eventualmente privado.

            Muitas destas questões ainda não satisfatoriamente resolvidas retornam à pauta de discussões quando passamos por um momento de revisão das matrizes hermenêuticas do processo civil, com o escopo de adequá-las à realidade de um constitucionalismo social e de uma sociedade solidarista.

            No centro deste movimento de revisão está a meta da busca da efetividade da jurisdição, que perpassa pela alteração das perspectivas processuais e das formas instrumentais, premissa para coadunar-se o instrumento aos novos direitos, aos novos conflitos, às novas necessidades.

            Pressuposto da efetividade é a celeridade, pois o processo deve promover a pronta prestação de jurisdição e não o engessamento do direito material que se quer ver efetivado. [01] Dentre os mecanismos que conferem celeridade ao processo, e figuram dentre os princípios basilares do moderno processo, está a preclusão, a qual assegura que o processo marche invariavelmente para frente, rumo ao seu escopo magno.

            Mas a preclusão, força motriz do procedimento, encontra ressalvas diante do caráter público da relação processual e das condicionantes que esta condição lhe impõe.

            Estas condicionantes tomam a forma de condições da ação e pressupostos processuais, cuja verificação e eventual suprimento de omissões e falhas ensejam a fase de saneamento do processo.

            O presente trabalho aborda exatamente os efeitos da preclusão frente às decisões oriundas do saneamento do processo. As questões fundamentais que se colocam são: 1) A preclusão incide sobre as decisões relativas ao saneamento? 2) Até que ponto a preclusão se aplica ao saneamento do processo? 3) Para quem incide a preclusão?

            Antes, porém, é imperativo que tracemos algumas premissas metodológicas que nos auxiliarão na abordagem da temática, inserindo-nos em um contexto mais amplo onde os questionamentos acima formulados se inserem.


2- APRENDENDO A PENSAR O PROCESSO

            Um dos aspectos positivos da crise da jurisdição que se instalou e vem se desenvolvendo há algumas décadas foi exatamente chamar a atenção para a necessidade de revisão na forma como compreendemos e ensinamos o processo.

            Ordinariamente não atentamos para o fato de que as ciências refletem, em quase todos os seus aspectos, um momento histórico. O conhecimento científico não é anódino, imparcial, neutro, não condensa verdades imutáveis. Há, na produção científica, uma carga ideológica que é inerente, inexorável. A filosofia aristotélico-platônica, que subjaz como fundamento do conhecimento ocidental moderno, parte da perspectiva de que a linguagem e o método lógico-científico podem captar e exprimir a realidade como ela efetivamente se apresenta, de forma que a aplicação da lógica sobre a realidade e sua expressão através da linguagem nos possa conduzir exata à representação da "verdade".

            O Iluminismo trouxe a era da razão à humanidade e produziu uma forma de compreender a realidade que se embasa no método lógico das ciências exatas. Isso sem dúvida representou um imensurável avanço para a humanidade, o qual hoje se faz presente em quase tudo o que nos rodeia, mas trouxe problemas também. O principal deles reside no fato de que nem todas as ciências podem ser estruturadas a partir de uma visão matemática da realidade. As ciências sociais têm um objeto dinâmico, sujeito a múltiplos fatores que alteram, de acordo com o momento histórico, as regras fundamentais do sistema.

            Por outro lado, a filosofia da linguagem hoje nos faz ver que o método e a linguagem não são neutros e interferem nas "verdades fundamentais" [02] que por eles se criam e se expressam.

            As ciências sociais, o Direito especialmente, e em particular o processo, sofreram as inflexões destes desvios, o que é ressaltado por Ovídio Baptista da Silva na seguinte passagem:

            "É singularmente curioso que, tendo nosso século motivos suficientemente poderosos para desconfiar da ingênua esperança de que a humanidade afinal atingiria, em nossos dias, a plenitude do uso da Razão, depois de ter assistido aos graves cataclismos sociais que marcaram o século XX, apesar de tudo, a supreendente realidade seja o fascínio pela incansável busca da verdade, como disse Friederich (Perspectiva histórica da Filosofia do Direito, p. 268), que persegue o jurista moderno, particularmente o processualista, com a mesma intensidade e obstinação com que os filósofos do século XVII procuravam as ‘verdade eternas’ do Direito, como se a experiência jurídica fosse intemporal e não histórica." [03]

            A estruturação científica moderna do Direito ocorreu exatamente no período que sucede imediatamente ao Iluminismo. No Direito penal, a revolução de Beccaria. No Direito Civil, a pandectística revisita o direito Romano. Surge a noção da ação e do processo, o direito comercial, o direito administrativo. Todos os estudos então conduzidos se valem dos princípios do método científico das ciências exatas. As disciplinas que nascem buscam a construção de sua base dogmática, com este norte.

            Como estamos no apogeu dos direitos individuais que defluem do constitucionalismo liberal, cuja origem é recentemente anterior a este período, e como estes direitos são enfocados pela perspectiva privada, não é de causar surpresa que o processo se volte ao direito privado e individual e sobre esta ótica construa seus dogmas, ritos e mitos. [04] Não há como se partir do infinito questionamento. Há que se partir de algum ponto, do dogma, cuja inquestionabilidade se socorre dos ritos e dos mitos, que suprimem o questionamento e instauram a intangibilidade.

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            Os dogmas do processo civil partem da perspectiva de sua finalidade voltada aos direitos privados, à solução da lide em sentido carnelutiano, o conflito de interesses qualificado pela pretensão resistida. A relação processual se corporifica concretamente sob a forma de um rito, o procedimento e o Direito se apresentam pontilhados de mitos.

            Desde então, é assim, que o Direito vem sendo compreendido e ensinado.

            A ritualística que em outros ramos das ciências aparece como fator incidental, no caso do processo se apresenta com invulgar força, porque o processo tem de exteriorizar-se concretamente por um procedimento e um rito, e o rito é supressão do questionamento, é a submissão à reprodução pura e simples.

            A mitificação do Direito, com invocação da linguagem específica, das fórmulas latinas, dos estereótipos, o tornou algo intangível ao homem comum, e serviu para que nós, profissionais do Direito, assegurássemos a nossa posição de senhores de um saber "oculto", difícil de ser alcançado. [05] Nos é conveniente que o Direito não faça pauta das discussões da sociedade.

            Desapreendemos a pensar o processo como aquilo que ele verdadeiramente é: uma funcionalidade teleológica, um instrumento voltado a um fim, uma existência condicionada a uma finalidade. [06]

            Nos termos olvidado de permanecer em questionamento contínuo e alerta nos conduziu à crise de jurisdição [07] que move as reformas processuais no processo civil brasileiro e de outros países que comungam da mesma origem histórica.

            Surgiram novos direitos, de cunho público, positivando genuínas obrigações carreadas ao Estado [08]. Mas o processo e a visão dos seus estudiosos e aplicadores continuam os mesmos. Por este motivo, surgiu a necessidade de reformas, que adequassem a abstração que é o processo à realidade sobre a qual ele volta sua aplicação. [09]

            Mas qual o motivo destas pontuações? Salientar a necessidade de olharmos o Direito, e, principalmente, o processo, sob um prisma instrumental. Quando estudamos o processo civil, temos de analisar criticamente a validade das premissas metodológicas utilizadas, das conclusões alcançadas a partir delas e dos resultados a que conduzem. Um exemplo concreto elucidará o questionamento.

            Veja-se o exemplo da antecipação de tutela. Os processos sempre demandaram algum tempo. Já no começo do século XX se observou a necessidade de uma tutela de urgência para aplacar os efeitos colaterais da demora do processo, concebendo-se a tutela cautelar. Mas esta não poderia ser antecipação do direito material, não deveria se voltar a resguardar diretamente o direito material, mas sim a eficácia processual de futura demanda ou de uma demanda já em curso da qual seria incidente. Na prática não tardou a que o processo cautelar se hipertrofiasse e desbordasse das funções para as quais inicialmente fora pensado, passando a ter caráter satisfativo, o que passou a existir especialmente através do uso do poder geral de cautela e das cautelares inominadas.

            Mas o que impediu que fosse criada anteriormente uma forma de tutela liminar, escudada em cognição sumária, e de caráter satisfativo? Simples, uma a ancestral tradição de condicionar a execução à cognição exauriente (a actio romana que suplanta o interdictum e se torna tutela-tipo), à certeza jurídica (fundamento do método científico).

            Ora, nada impedia que já em 1973 o legislador tivesse previsto a antecipação dos efeitos da tutela. Não o fez porque ainda estava impregnado pelos valores de um século antes. O questionamento de premissas e conclusões nos conduziu à necessidade de admitir execução com cognição sumária. Outro exemplo na mesma linha reside na introdução da ação monitória.

            Vejamos exemplos em outra espécie de tutela, a executiva. Por muito tempo firmou-se o dogma da impossibilidade de cognição no processo de execução que não fosse aquela estritamente relacionada aos seus incidentes processuais internos. A certa altura, a não muito tempo, escudando-se em estudos de Pontes de Miranda, passou-se a admitir a exceção de pré-executividade, sem necessidade de embargos. Hoje, em vista da Lei nº 11.232/05 rompeu-se com o dogma da necessidade dos embargos, criando-se a impugnação, e afastando-se a necessidade de ajuizamento da actio judicati.

            Isso alterou substancialmente a natureza das atividades executivas? Não, elas apenas se simplificaram. Mas por que estas alterações não haviam sido implementadas antes? Havia fundamento apreciável que o impedisse? Não.

            Estas medidas foram implementadas, dentre outras, tendo-se em mira uma verdadeira instrumentalidade do processo, e escudando-se em uma verdadeira revisitação dogmática do processo.

            Neste ponto, quero chamar a atenção para este fato. Os operadores jurídicos, os estudantes e os professores devem reaprender a pensar o processo pela visão da instrumentalidade, que implica na consideração, como fator preponderante, dos resultados práticos. Se determinados dogmas ou praxes não nos estão mais conduzindo a um processo efetivo, devem ser revistos e, se for o caso, substituídos.

            Esta visão também deve orientar a interpretação dos institutos e regras do processo. Cada regra, cada princípio e cada instituto devem encontrar uma razão de ser dentro do sistema e a partir das finalidades a que este sistema se propõe. Por outras palavras, temos de valorizar uma abordagem teleológica e pragmática.

            No caso dos nossos temas específicos, a preclusão e o saneamento do processo, as considerações acima tecidas são plenamente válidas e presentes. A compreensão e a aplicação tanto de um como de outro instituto deve ser feita a partir da consideração de sua funcionalidade sistemática.

            A premissa que se extrai deste tópico é a que de que devemos (re)aprender a pensar o processo, tendo em linha de conta a nossa realidade histórica e permanentemente verificando a validade teleológica de nossas bases dogmáticas, porque a sociedade é dinâmica e o Direito não pode ficar estagnado sob pena de comprometimento de sua eficácia, e geração de um déficit de legitimidade.


3- PREMISSAS ESTRUTURAIS

            Na esteira dos apontamentos acima tecidos e tendo em vista, ainda, urdir um quadro que sirva de suporte à análise da questão da preclusão em relação ao saneamento do processo, impõe-se uma revisão das estruturas do processo à luz de uma visão plenamente consciente de que a feição do processo é, antes de tudo, fruto de opções do legislador.

            A partir de uma visão pautada por esta ótica, somos capazes de reduzir o processo ao que ele efetivamente tem de essencial, ao seu núcleo funcional intangível, sem o qual ele perde sua funcionalidade mínima e sua razão de existir. Esclareço que isso se faz necessário para que possamos compreender o motivo da existência da preclusão e de uma atividade saneadora no processo, aquilatando, ao mesmo tempo, os respectivos papéis frente a este núcleo funcional do processo.

            A criação de uma noção categorial dentro de uma ciência decorre da utilidade que dela se possa extrair, e pode encontrar como óbice o estado de desenvolvimento desta ciência. A independência dogmática do processo decorreu exatamente destes dois fatores, ou seja, de um lado a utilidade em se promover o estudo do processo de forma separada do direito material, e, de outro, o desenvolvimento científico que permitiu constatar a existência de um fenômeno processual que não se confunde com a dimensão do direito material. Esta independência é relativamente recente, pois até o século XIX temos o processo como o "direito material vestido para a guerra", em expressão cunhada pela pandectística.

            Do caminho que se inicia com a independência do direito material e vai até a concepção da teoria eclética de Liebman, decorreu a estruturação do estudo do processo sobre um tripé composto por jurisdição, ação e processo. A visão que ainda prepondera nos diplomas legislativos preconiza uma supremacia da ação sobre os demais elementos. Trata-se de uma visão centrada na matriz hermenêutica que decorre do constitucionalismo liberal-iluminista e da supremacia do direito privado. É a visão do indivíduo no centro do sistema, que implica conceber a atividade jurisdicional como uma decorrência da obrigação de dar concretude ao direito de ação. Modernamente esta concepção vai paulatinamente sendo substituída por outra, na qual a jurisdição encontra-se ao centro do sistema, de forma que a ação existe em função da jurisdição, e não o inverso.

            A colocação da jurisdição ao centro do sistema decorre da tomada de uma posição que prestigia o coletivo, a perspectiva do exercício da jurisdição como elemento fundamental da estrutura do Estado Contemporâneo, nos termos da teoria clássica da divisão de poderes. A existência do Estrado somente se justifica diante de presença de finalidades e objetivos, dentre os quais está a função de administrar a justiça, vale dizer, de fazer valer o corpo normativo que assegura que outras finalidades e objetivos sejam atingidos. Conforme escrevi em outra oportunidade, isso traz profundas implicações:

            "Ocupando a jurisdição centro da teoria processual enquanto exercício do poder estatal, amplia-se o horizonte do processo (stricto sensu) para abranger manifestações antes tidas como não-jurisdicionais, concebendo-se então uma larga margem de abrangência para uma Teoria Geral do Processo." [10]

            A ação e o processo (entendido aqui como relação processual), a partir deste ponto de vista, não são inarredavelmente essenciais ao exercício da jurisdição, senão que são institutos concebidos a partir de opções do legislador, ou seja, mecanismos que se voltam a dar concretude ao que há de fundamental, que é atividade jurisdicional do Estado. A jurisdição não mais se limita a ser uma atividade substitutiva a das partes.

            A ação surge como um direito subjetivo de envergadura constitucional. Como em um Estado Democrático de Direito deve viger a rigorosa igualdade entre os cidadãos e como o Poder Judiciário exerce função primordial no mecanismo de freios e contrapesos, a rigor, o direito de ação deveria ser ilimitado. Qualquer pessoa deveria ter o direito de invocar a prestação jurisdicional, sendo a limitação a este direito condição que periclita uma das bases do Estado de Direito. A doutrina, porém, criou, e a legislação agasalhou expressamente (artigos 257, inciso VI, e 295, incisos II, III, e parágrafo único, inciso III, do CPC), limitações ao direito de ação, corporificadas nas denominadas condições da ação [11], ensejando sua ausência a "carência de ação".

            Conforme já expressei em outra oportunidade, a meu juízo, se estabeleceu uma contradição lógica invencível no juízo de carência ação. É que se o postulante é carente de ação, qual o direito por ele exercido até aquele momento e que justifica a manifestação do Estado-Juiz? Se ele não tinha o direito de ação, com base em que exerceu direito a uma manifestação jurisdicional? [12]

            Diz-se então, que na verdade as condições da ação são condições para o julgamento de mérito, o que não afasta a contradição, pois ainda resta sem explicação falar-se em carência de ação naqueles casos onde o mérito não fosse apreciado. Ter ou não sido proferido julgamento de mérito não pode ser o fator diferencial para que tenha sido ou não exercido o direito de ação, porque uma manifestação jurisdicional vai existir de qualquer forma. Falar-se, por outro lado, em um direito processual de ação em contraposição a um direito constitucional de ação, sendo o primeiro decorrente da presença das condições da ação, é um sofisma. O fato é um só, as denominadas condições da ação deveriam chamar-se condições para obtenção da tutela-tipo, e não condições da ação. Ação há sempre que houver postulação e manifestação jurisdicional. É um direito constitucional fundamental de estrutura unitária, natureza que não se coaduna com a concepção de um direito processual de ação, de origem infraconstitucional e que tem por fundamento a presença ou não de determinados requisitos.

            Estas condições de julgamento de mérito, ou dir-se-ia melhor, condições de obtenção da tutela-tipo pleiteada [13], pois não há jurisdição somente em caso de julgamento (pois se assim fosse, como ficaria a tutela executiva a qual ninguém nega a natureza jurisdicional?), constituem uma filtragem que tem em vista exatamente a utilidade da prestação jurisdicional. Aqui encontramos um paradoxo. Note-se que as condições são ditas da ação, mas sua finalidade não resguarda aquele que exerce este direito, ou este direito em si, mas tem em linha de conta a utilidade da atividade prestada pelo Estado, ou seja, voltam-se a resguardar a função jurisdicional. São condições que limitam, mas não excluem, o espectro desta atividade, que ao invés de deitar-se sobre o direito material concretamente posto em apreciação, vai tomá-lo abstratamente (in statu assertionis) para limitar-se a dizer que não é conveniente, porque não é útil, o Estado-Juiz prestar a tutela-tipo pretendida naquele caso, seja porque quem postula não titula este direito ou não está autorizado a exercê-lo (legitimidade), seja porque a atividade jurisdicional não será útil efetivamente e demandará ônus ao Estado-Juiz (legítimo interesse), seja, por fim, por que a tutela é legalmente vedada na hipótese (possibilidade jurídica do pedido).

            O fato de limitações, que resguardam a utilidade da atividade do Estado-Juiz (jurisdição), terem sido concebidas como condições da ação (direito individual subjetivo público) denota, a meu ver, mais um reflexo do desvio que coloca a ação ao centro do sistema.

            Outra nítida influência deste pensamento reside em associar o exercício de jurisdição à composição de litígios, à lide, chegando-se a afirmar que sem a presença de lide (quando há jurisdição voluntária), não há realmente exercício de jurisdição, mas atuação administrativa do Poder Judiciário. A respeito, pondera Ovídio Baptista da Silva que "segundo a opinião dominante na doutrina brasileira, a chamada jurisdição voluntária não é verdadeira jurisdição, mas autêntica atividade administrativa exercida pelo juiz. Costuma-se dizer, em verdade, que a jurisdição voluntária nem é jurisdição e nem é voluntária, desde que os interessados estão obrigatoriamente a ela submetidos por imposição da lei". [14]

            Esta posição pode ser visualizada na síntese de Nelson Nery Júnior, in verbis:

            "Também denominada pela doutrina majoritária de jurisdição graciosa, ou, ainda, de ‘administração pública de interesses privados’, a jurisdição voluntária vem regulada no CPC 1103 a 1210. É jurisdição somente na forma. Não é jurisdição pura porque o juiz não diz o direito substituindo a vontade das partes, mas pratica atividade integrativa do negócio jurídico privado administrado pelo Poder Judiciário. Esse negócio jurídico, contudo, não tem validade se não integrado pelo juiz, donde é lícito concluir não ser voluntária essa ‘jurisdição’, mas sim, forçada. Nela não há processo, mas procedimento; não há lide, mas controvérsia; não há partes, mas interessados; não incide o princípio dispositivo, mas sim o inquisitório; não há legalidade estrita, pois pode o juiz decidir por eqüidade (CPC 1109)." [15]

            No mesmo sentido, apostila Humberto Theodoro Júnior:

            "Jurisdição contenciosa é a jurisdição propriamente dita, isto é, função que o Estado desempenha na pacificação ou composição dos litígios. Pressupõe controvérsia entre as partes (lide), a ser solucionada pelo juiz.

            Mas ao Pode judiciário são, também, atribuídas certas funções em que predomina o caráter administrativo e que são desempenhadas sem pressuposto do litígio. Trata-se da chamada jurisdição voluntária, em que o juiz apenas realiza gestão pública em torno de interesses privados, como se dá nas nomeações de tutores, nas alienações de bens de incapazes, na execução do usufruto ou do fideicomisso etc.

            Aqui não há lide nem partes, mas apenas negócio jurídico processual envolvendo o juiz e interessados." [16]

            Os argumentos em favor da separação entre jurisdição voluntária e contenciosa são afastados conforme lembra Ovídio Baptista da Silva, com certa facilidade, não se sustentado frente a uma análise criteriosa. [17]

            Não há sentido algum em efetuar esta divisão apenas pela presença de algumas características na denominada jurisdição voluntária que, se por um lado a diferenciam do dito processo contencioso, não lhe alteram a substância de atuação jurisdicional quando colocada a jurisdição a centro do sistema.

            Quando o processo figura como um dos vértices de tripé que sustenta a teoria processual, ele está significando relação jurídica processual. Se há direito de ação, ele deve ter necessariamente um pólo a que corresponde uma obrigação de prestação jurisdicional, ficando estabelecido um vínculo jurídico entre quem pede e quem deve prestar. Este vínculo jurídico é a relação processual.

            A relação jurídica é um vinculo que apresenta especializações, requisitos estabelecidos pela própria legislação, já que é uma relação abstrata. A relação processual é uma relação de natureza pública, dinâmica, complexa, e autônoma em relação ao direito material posto em juízo, e que envolve as partes e o Estado-Juiz.

            Como relação jurídica, a relação processual estabelece direitos, faculdades, ônus e obrigações entre seus envolvidos. A dinâmica com que estes elementos interagem deu azo a três teorias acerca da estruturação da relação processual.

            A teoria linear, concebida por Köhler, defende a presença de uma ligação entre as partes exclusivamente. Obviamente incorre na falta de considerar o papel do juiz, que não se diminui em importância em relação ao das partes.

            Este aspecto não foi olvidado pela teoria triangular, de Wach, a qual considera relações entre partes e juiz e entre elas mesmas.

            Por fim, a teoria angular de Hellwig alvitra a existência de relações entre as partes e o juiz, mas não entre elas de forma direta. É a mais adotada.

            Como as demais relações jurídicas, a relação processual está sujeita à requisitos de existência, validade e eficácia. Estes requisitos constituem os chamados pressupostos processuais.

            Também se desenvolve a partir do desencadeamento de uma série de atos, das partes e do juiz, que forma um todo complexo, o que permite, porém, definir no plano lógico uma divisão em fases, quais sejam, a postulatória, a saneadora, a instrutória e a decisória.

            Na fase postulatória, as partes, através da demanda e da contestação, definem o "objeto litigioso do processo". No processo de execução, ainda que hoje reduzido o espectro da actio judicati, há também uma fase postulatória, limitada, no entanto, à propositura da demanda. O réu, ao contestar, também pede tutela jurisdicional.

            A fase de saneamento, que nos interessa mais de perto, será vista mais adiante. A fase de instrução comporta uma série de atos preparatórios à prestação da tutela pleiteada e não é exclusividade do processo de conhecimento. Também o processo de execução tem atos instrutórios

            A fase decisória comporta a tutela-tipo do processo de conhecimento, que é a sentença declarando, constituindo, condenando, legitimando atos executivos (sentença executiva) ou determinando providência impassível de execução sub-rogatória (sentença mandamental).

            No caso do processo executivo, a fase decisória é substituída pela fase satisfativa.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. O saneamento do processo e a preclusão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1308, 30 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9441. Acesso em: 22 nov. 2024.

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