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A fundamentação analítica como pressuposto de racionalidade e legitimidade das decisões judiciais

Agenda 29/11/2021 às 15:00

Somente com uma justificação que observe as regras de argumentação (coerência, congruência, linguagem acessível) e de exposição do contexto do conjunto probatório, a sentença torna-se ato controlável socialmente, evitando a reprodução de discursos vazios e arbitrários.

Resumo: O presente artigo almeja problematizar o tratamento conferido à fundamentação da sentença pelo novo Código de Processo Civil. A garantia de motivação das decisões judiciais, prevista no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, constitui direito fundamental do jurisdicionado. A partir das discussões doutrinárias e da legislação pertinente, veremos que o artigo 489, §1º, do CPC/15, embora não seja novidade, qualificou a exigência constitucional, relacionando o dever de fundamentar ao contraditório participativo e ao modelo cooperativo de processo. Desse modo, buscou-se compreender o conceito de fundamentação analítica, suas funções dentro e fora da relação processual e as repercussões práticas daí advindas.

Palavras-chave: Fundamentação; Direito fundamental; Contraditório; Nulidade.


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem o objetivo de analisar e problematizar um dos elementos essenciais da sentença, a saber, a fundamentação (CPC/15, art. 489, II). Erigido como um dos pilares do novo processo civil brasileiro, ao lado do contraditório e da publicidade (CPC/15, arts. 7º, 9º, 10 e 11) o dever de fundamentar é inerente ao Estado de Direito, constituindo verdadeiro direito fundamental do jurisdicionado.

Prevista constitucionalmente (CF/88, art. 93, IX), a garantia da motivação impõe ao magistrado, o dever de expor suas razões de decidir. Se o relatório delimita a controvérsia e representa a fase preparatória do julgamento, a fundamentação é a etapa na qual o magistrado, analisando os fundamentos fáticos e jurídicos da demanda, expõe concretamente o raciocínio desenvolvido para alcançar as conclusões do dispositivo.

Nesse contexto, o novo Código de Processo Civil ao reforçar a necessidade de uma fundamentação analítica por meio do artigo 489, §1º, gerou diversas repercussões teóricas e práticas que serão objeto de algumas reflexões nos tópicos subsequentes.

A REGRA DA FUNDAMENTAÇÃO E A LEGITIMAÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL

Para que o juiz possa examinar e decidir as questões fáticas e jurídicas apresentadas pelas partes, e desse modo, pôr fim ao conflito, ele precisa formar sua convicção quanto aos aspectos colocados em discussão no processo, mormente no tocante às provas da existência ou não dos fatos alegados.

Todavia, daí não se pode concluir que o convencimento judicial teria como escopo descobrir a essência da verdade e como fundamento sempre um juízo de verossimilhança. Ao revés, o magistrado, a fim de definir o litígio, deve estar convicto a respeito da verdade construída a partir de um determinado contexto.

Não há mais como supor que a decisão jurisdicional encontre apenas fundamento na verdade absoluta. A convicção do juiz se faz a partir da argumentação e das provas trazidas ao processo inclusive as determinadas de ofício, o que gera uma verdade reconstruída a partir das narrativas formuladas no processo. (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 434).

Nesse sentido, emerge a necessidade de exposição dos motivos aptos a sustentar a convicção e a decisão do julgador e, por conseguinte, a exigência de fundamentação das decisões judiciais, a qual constitui direito fundamental do jurisdicionado, podendo ser pensada sob dois prismas.

De proêmio, no âmbito interno do processo, a motivação possibilita, de um lado, que autor e réu, tomando conhecimento das razões de decidir, verifiquem se o magistrado realizou um exame acurado da lide, a fim de elaborar eventual recurso e, de outro, sendo este interposto, revela-se imprescindível para análise, pelos órgãos superiores, do desacerto ou não da decisão atacada.

Noutro tanto, para além do processo, a fundamentação permite o controle crítico da sentença pela coletividade, em cujo nome a atividade jurisdicional é exercida, constituindo uma forma de legitimar politicamente a decisão judicial (NEVES, 2016, p. 185).

Todavia, para que seja possível alcançar essa dupla finalidade é preciso que o magistrado, durante a apreciação da prova, justifique o seu convencimento de modo racional, a partir da observância das regras de argumentação (coerência, congruência, linguagem acessível) e de exposição do significado e do contexto do conjunto probatório, bem como dos métodos utilizados nessa avaliação (CPC/15, art. 371). Somente assim, a sentença torna-se ato controlável socialmente evitando, por conseguinte, a reprodução de discursos vazios e arbitrários.

A FUNDAMENTAÇÃO E O CONTRADITÓRIO PARTICIPATIVO NO NCPC

Conforme já mencionado, a Constituição Federal prevê em seu artigo 93, inciso IX, o princípio da motivação das decisões judiciais e administrativas, cominando pena de nulidade para sua inobservância. Entretanto, ainda que assim não fosse, o dever de fundamentar não perderia a natureza de direito fundamental do jurisdicionado, uma vez que advém do próprio Estado de Direito, constituindo em um dos corolários do devido processo legal.

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O novo Código de Processo Civil consagrou expressamente em seu artigo 11 que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Além disso, trouxe um rol exemplificativo de situações em que a decisão judicial (seja ela interlocutória, sentença ou acórdão) não pode ser considerada juridicamente fundamentada (CPC/15, art. 489, §1º).

Nesse sentido, embora não seja uma novidade, já que a previsão constitucional é suficiente, não se pode negar que o novo Código representou um aprimoramento em relação ao CPC/73, sendo severo e minucioso na repulsa à tolerância com que os tribunais vinham compactuando com verdadeiros simulacros de fundamentação, em largo uso na praxe dos juízos de primeiro grau e nos tribunais superiores (THEODORO JR., 2015 p. 1045).

Aliás, conforme se extrai da leitura conjunta dos artigos 10 e 489 do NCPC, o legislador concedeu especial atenção à fundamentação analítica da sentença no que concerne à interpretação do direito no caso concreto, relacionando-a diretamente ao contraditório efetivo, enquanto direito de influência, e ao modelo cooperativo de processo (CPC/15, art. 6º).

Todavia, o §1º, do citado artigo 489 foi alvo de polêmica e repúdio por setores da magistratura que chegaram a pugnar pelo veto, sob o argumento de que seu conteúdo impactaria de modo negativo a celeridade da prestação jurisdicional (VASCONCELLOS; ROVER, 2015), razão pela qual convém tecer algumas considerações acerca das hipóteses nele arroladas.

Conforme cediço, prevaleceu durante muito tempo a ideia de que a sentença seria resultado de um silogismo: premissa maior (lei), premissa menor (o caso em apreço) e a conclusão (solução). Em outras palavras, o juiz seria mero autômato preso à busca pelo sentido exato do texto normativo (DIDIER JR., 2015, p. 327).

Contudo, compreender o ato decisório como uma simples operação dedutiva, seria algo como tornar o Direito uma ciência exata. Para pôr fim à lide, o julgador precisa interpretar as alegações expostas pelas partes, analisando se, de que modo e por que determinado enunciado normativo aplica-se ao caso lhe submetido a exame.

Nesse particular, os incisos I e II do §1º, do artigo 489 são de suma importância, pois exigem que além de demonstrar o sentido atribuído à norma e aos conceitos vagos (como, por exemplo, excessivamente onerosa art. 478, CC proceder de modo temerário art. 80, V, CPC), o juiz exteriorize as razões pelas quais a causa ou questão decidida nele se enquadra, rechaçando, assim, a prática tão comum de simplesmente indicar, reproduzir ou parafrasear o texto legal.

A mesma observação vale para os casos em que o debate dos autos envolve aplicação ou não de precedente ou enunciado sumular. Não basta a mera transcrição do julgado, é preciso que haja a exposição da equivalência entre a hipótese sub examine e a ratio decidendi que sustenta aquele (CPC/15, art. 489, §1º, inciso V), sendo que caso o fundamento do precedente não tenha sido levantado ou discutido no processo, o magistrado, com fulcro na perspectiva do contraditório substancial (CPC/15, artigos 9º e 10), deverá intimar as partes para se manifestarem.

Nesse ponto, ganha relevo a utilização das técnicas de distinguishing (distinção) e de overrulling (superação) CPC/15, art. 489, inciso VI. Através delas o julgador afasta a aplicação de um precedente, com base nas diferenças fáticas do caso concreto (distinguishing) ou devido à ocorrência de alteração legislativa, mudança cultural ou política que imponha a superação da tese jurídica até então dominante, adequando, assim, a hermenêutica jurídica à realidade social.

Noutro tanto, ao considerar não fundamentada a decisão que invoca motivos que se prestariam a justificar qualquer decisão (CPC/15, art. 489, §1º, inciso III) e que não enfrenta todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão do julgador (CPC/15, art. 489, §1º, inciso IV), o diploma processual civil, em nome da segurança jurídica e da garantia do contraditório, refletiu a ideia de que a escolha interpretativa do julgador deve ser pautada nos moldes delineados pelas partes a partir de suas manifestações, vedando, portanto, a prolação de decisões-surpresa, bem como de decisões modelo.

Desse modo, violam a exigência de motivação sentenças que acolhem o pedido do autor sem analisar todos os fundamentos da defesa, julgam improcedente pleito indenizatório por falta de preenchimento dos pressupostos do dever de indenizar ou deixam de valorar determinada prova que beneficiaria a parte vencida, por exemplo.

Ainda reforçando o dever de motivação, o §2º do artigo 489 estabelece a necessidade de justificar o uso da ponderação para a solução de conflitos entre normas. Em que pese a impropriedade do dispositivo, pois essa técnica deve ser utilizada na colisão entre princípios, certo é que, independente do postulado (proporcionalidade, razoabilidade ou ponderação), o magistrado sempre terá que expor os critérios adotados, sob pena de violação ao dever de fundamentação analítica.

Sob o ângulo exposto, sendo a motivação elemento que confere legitimidade à sentença, deixando a conforme a Constituição, sua ausência representa vício gravíssimo que permite a anulação por recursos ou a rescisão mediante o ajuizamento de ação rescisória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz do novo CPC e com fulcro na perspectiva do contraditório substancial, enquanto direito de influência, a sentença por ser construída a partir de um diálogo tridimensional entre juiz, autor e réu, deve conter as razões pelas quais os argumentos e as provas produzidas por uma das partes são rejeitados em prol da outra.

De consectário, motivações meramente formais, genéricas ou deficientes são inconstitucionais e representam desprezo para com as partes, terminando por subordiná-las a uma injustificada procrastinação da entrega da prestação jurisdicional.

Em vista disso, conquanto o artigo 489, §1º, do novo Código de Processo Civil, não seja propriamente uma novidade, pois apenas detalhou a previsão constitucional sobre o tema, nota-se que esse dispositivo, ao reforçar o dever de fundamentação analítica, representou um avanço em relação ao antigo diploma, permitindo um efetivo controle da atividade jurisdicional pelos seus destinatários.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei nº 13.015 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 17 mar. 2015 Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 13 de abr. 2017.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: . 13 de abr. 2017.

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarna; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: volume 02. 10ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil Volume 2 Tutela dos direitos mediante procedimento comum. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016.

THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: volume 01. 56ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

VASCONCELLOS, Marcos; ROVER, Tadeu. Juízes pedem veto a artigo que traz regras para fundamentação de decisões. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2015-mar- 04/juizes-pedem-veto-artigo-cpc-exige-fundamentacao.> Acesso em: 13 de abr. 2017.

Sobre a autora
Patrícia Gonçalves de Faria Barbosa

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás, Regional Goiás (2018) e especialista em Direito Constitucional pela Faculdade CERS (Complexo de Ensino Renato Saraiva - 2020). Atualmente é Assistente de Juiz de Direito no Juizado Especial Cível e Criminal de Jaraguá/GO. Foi Assistente de Juiz de Direito perante a Vara de Família e Sucessões, Infância e Juventude, Cível e Juizado Especial Cível da Comarca de Itapuranga/GO (2018-2020).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Patrícia Gonçalves Faria. A fundamentação analítica como pressuposto de racionalidade e legitimidade das decisões judiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6725, 29 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95188. Acesso em: 21 nov. 2024.

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