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Estupro marital: abordagem histórica, jurídica e contemporânea

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3. A MANCHETE - VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: ESTUPRO MARITAL - MEU MARIDO ME AMEAÇOU COM UMA FACA E ME VIOLENTOU POR HORAS (UNIVERSA - UOL)

Apesar de pouco falado e documentado, o estupro marital, ainda é presente no cotidiano de muitas mulheres, eles representam 13.15% dos crimes de estupro do Brasil, conforme o Atlas da Violência publicado em 2018. Mas segundo especialistas, esse número é muito maior.

O pensamento machista continua enraizado em muitas famílias, e com isso, dificulta o fim de tais atos. As vítimas de estupro ganharam mais voz nos últimos tempos, sendo mais debatido e conversado em público, porém, dentro do próprio lar não é falado, e não é reconhecido como estupro, e sim, apenas uma divergência entre marido e mulher.

A dificuldade da mulher é perceber que aquele ato do próprio companheiro é um estupro, a sociedade como um todo, coloca o ato sexual como um dever da mulher, um débito conjugal como era reconhecido no direito canônico, através de interpretação do texto bíblico referido na primeira epistola de Paulo aos Coríntios:

O marido cumpra o dever conjugal para com a esposa, e cada mulher faça o mesmo em relação ao seu marido. A mulher não dispõe de seu corpo: mas é o marido que dispõe. E da mesma forma o marido não dispõe de seu corpo: mas é a mulher que dispõe. (I Coríntios 7,3-4).

Mesmo após séculos, recentemente, em 1999, o professor, árbitro, escritor e desembargador Carlos Roberto Gonçalves ainda atribuiu o ato sexual, como um débito conjugal da mulher.

O cumprimento desse dever pode variar, conforme as circunstâncias. Assim, admite-se até a residência em locais separados, como é comum hodiernamente. Nele se inclui a obrigação de manter relações sexuais, sendo exigível o pagamento do debitum conjugale. Já se reconheceu que a recusa reiterada da mulher em manter relações sexuais com o marido caracteriza injúria grave, sendo causa de separação litigiosa. A vida em comum desenvolve-se no local do domicílio conjugal. A fixação deste competia ao marido. (GONÇALVES, 1999, p. 47)

Com isso, podemos entender melhor porque após tanto tempo, na era da fácil informação, muitas mulheres sofrem caladas em seus lares, sentindo vergonha, e culpando a si mesma por atos tão repulsivos. E mesmo as mulheres que conseguem reconhecer a violência que estão sofrendo e sair do relacionamento, sentem vergonha. Somente uma minoria consegue denunciar e falar sobre assunto.

É o caso de uma vítima de estupro marital que não quis se identificar, porém, deu seu relato contando o que viveu. O até então marido, já usava de violência constantemente, mas foi após 29 anos de casamento, que ela sofreu o estupro, como relata:

"Ele tapou minha boca com uma mão, para eu não gritar, e, com a outra, colocou uma faca no meu pescoço. Me levou para o quarto, me estuprou por horas e de todo jeito que você possa imaginar". (I.M.S., 51)

A vítima conseguiu se divorciar e recebeu a ajuda de uma advogada voluntária para abrir um processo contra o ex-marido. Além da vergonha e o medo existe também, a dependência financeira como uma mulher de 57 anos, vítima do estupro marital, relatou para uma advogada integrante do projeto Bem Querer Mulher, ligado a ONU que ajuda mulheres vítimas de violência doméstica.

"Ela pedia que o homem fosse comprar a 'mistura' das crianças, e ele só ia se ela tivesse relação com ele. Ou seja, é estupro", diz. (Alexandra Nuzzo, Universa UOL)

As mulheres encontram-se sob pressão financeira, além da social e de gênero. E assim, pensando em sua família e no bem estar de seus filhos, além de não denunciar o agressor, acaba cedendo às suas imposições e ameaças, ficando cada vez mais presas naquela situação e com seu psicológico abalado.

O que diz a Luana Silva, Oficial para a Equidade de Gênero, Raça e Etnia do Fundo de População da ONU:

O imaginário construído sobre o papel social a ser desenvolvido pelas mulheres ajuda a perpetuar a crença de que estas pertencem aos seus parceiros, dificultando desde a decisão de formalizar a denúncia até a revitimização enfrentada pelas mulheres nos órgãos públicos. Pode se passar muito tempo, até que as mulheres consigam se desvincular da situação de violência e percebam que estão sendo violentadas. Este é um assunto que precisa urgentemente deixar a esfera doméstica e ser discutido em todos os âmbitos, (Luana Silva, Nações Unidas Brasi 2021l)

Um outro dado que chama atenção é que até 2005, a mulher casando-se com o estuprador, o crime era anulado.

"Quando essa lei foi criada, em 1940, o problema que o legislador via no estupro era que a mulher não conseguiria mais casar, por não ser mais virgem. Então, se casasse com o agressor, a questão estaria resolvida, na visão da época." (Maíra Zapater, Universa UOL)

A professora Maira ainda relata que antes da Constituição de 1988, alguns juristas entendiam que se o marido estuprasse a mulher, mas não fizesse o uso de grave violência, aquilo não seria considerado crime.

Se no Brasil a situação é ruim, em alguns países tornam- se ainda mais preocupantes, segundo o último relatório sobre a Situação da População Mundial divulgado em abril de 2021 43 países não têm nenhuma lei que criminalize o estupro dentro do casamento.

Proporção de mulheres de 15 a 49 anos que tomam suas próprias decisões em relação a cuidados de saúde, contracepção e sexo com seus maridos ou parceiros, dados mais recentes por país, 2007-2018

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Fonte: Bancos de dados globais do Fundo de População das Nações Unidas, 2020. Baseado nas Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde (DHS), Pesquisas de Grupos de Indicadores Múltiplos (MICS) e outras pesquisas nacionais conduzidas no período entre 2007 e 2018

O Brasil não fez parte desta pesquisa, mas podemos enxergar como essa questão deve ser conscientizada, não só aqui, mas no mundo. E que a cultura machista ainda é predominante e as mulheres ainda não tem voz no ambiente familiar, social e jurídico.


4. REFLEXÕES

Precisamos aceitar a existência dessa cultura machista, que chamamos de cultura do estupro, ou seja, a cultura por trás do tratamento que as mulheres recebem nas ruas, nos comerciais de TV, nos filmes e nas novelas, de uma forma que incentivem os corpos das mulheres a pertencerem ao sexo oposto, este tipo de imagem reflete que o homem pode fazer o que quiser. Não é à toa que toda mulher tem uma história para contar, alguém tentou tocá-la, no ônibus, no metrô, ou tentou roubar um beijo à força, ou finalmente alguma outra forma de violência. Precisamos de políticas públicas pensadas na perspectiva de gênero, o que é absolutamente fundamental também, são que políticas de segurança pública precisam ser analisadas do mesmo ponto de vista.

Depois disso, precisamos prestar um serviço caloroso a estas mulheres para que se sintam preparadas para registrarem este incidente, o que elas geralmente não sentem. As vítimas precisam encontrar um ambiente acolhedor, seguro, e ter profissionais treinados adequadamente para aceitarem esses depoimentos, é necessário ser muito sensível e cauteloso ao aceitar o testemunho dessa mulher que sofreu um crime sexual. As agências de saúde também precisam estar preparadas para o mesmo, aceitando as vítimas de violência e orientando-as sobre todos os procedimentos que devem ser tomados, os medicamentos que devem tomar coquetéis de prevenção do HIV, anticoncepcionais de emergência e fornecer informações sobre abortos legais, como devem realizar o registro de ocorrência. Se ela decidir interromper a gravidez causada por estupro, ela precisa encontrar um ambiente amigável, conforme estipulado em nosso Direito Penal.

No momento em que se procura a polícia, não pode mais ser julgada e acusada. Muitas mulheres relataram que inicialmente queriam registrar o assunto, mas quando chegaram à delegacia ouviram a pergunta: Como você estava vestida? Por que você estava bêbada e sozinha? Muitas mulheres se levantam e vão embora, desistindo do registro. Precisamos da sensibilidade de todo o nosso sistema judiciário para receber esse tipo de denúncia, obviamente respeitando a presunção de inocência, o direito de enfrentar o litígio, enfim, todo o devido processo legal, mas também precisamos dessa sensibilidade para receber denúncias de estupro que são seriamente subestimados.

A forma de prevenir tais atrocidades é erradicar essa discriminação de gênero e ideologia cultural de nossa sociedade interferindo na causa direta do problema, criando um ambiente verdadeiramente respeitoso e igualitário em nossas casas e escolas. As crianças precisam aprender desde cedo que o abuso sexual é um crime e não pode ser tolerado, porque a educação gera consciência, que por si só cultiva cidadãos com princípios morais e éticos.

Um menino não é ensinado a não tocar em uma menina sem permissão, não foi ensinado a não abusar sexualmente quando era criança. Isso se deve aos valores e princípios deixados por nossos antecessores, onde os homens são figuras totalitárias no ambiente familiar, e as mulheres são suas propriedades.

O ensinamento sobre o consentimento é essencial desde a infância, e as crianças devem ser ensinadas sobre. Isso ajuda a criança a reconhecer a violência (se acontecer com ela) e a impede de crescer sem saber das restrições do outro.

O importante é que as pessoas não usem frases como "esse é meu filho" para naturalizar a violação de consentimento cometida por meninos ou até mesmo meninas. Repreenda as crianças por beijá-las sem permissão de seus colegas, tocar nas saias das mulheres e tocar nos seus seios.

A educação sexual deve ter como objetivo ensinar não apenas a prevenção da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis, mas também os conceitos de consentimento e reconhecimento da violência sexual.

Compreender a importância e o apoio, lutar pela educação para combater o sexismo e outros preconceitos. A educação é uma forma de enfrentar e lutar contra o machismo desde tenra idade. Por meio dele, você pode desconstruir a ideia de que os meninos devem ser garanhões e dominadores e as meninas devem ser quietas e passivas. Romper com essa lógica é confrontar ideias como "tranque sua cabra, minha cabra está solta", e até ajudar a combater a homofobia, pois a socialização dos garanhões também é baseada na heterossexualidade, como reflexo, teremos resultados futuros como a eliminação do preconceito.

Entenda que o estupro não acontece apenas entre estranhos, em becos, à noite. Frequentemente ocorrem em casa, conhecidos, familiares e até namorados / cônjuges. Também é necessário falar sobre esses casos, porque em muitos deles, até as próprias vítimas dificilmente podem ter certeza de que sofreram violência.

O estupro por cônjuge é chamado de "estupro marital" e muitas vezes são esquecidas quando falamos sobre isso. Somente em 52 países / regiões, o estupro marital é um comportamento punível. Isso ocorre porque as mulheres são consideradas propriedade e o sexo é considerado uma obrigação matrimonial. Foi só em 1993 que as Nações Unidas reconheceram o estupro marital como uma violação dos direitos humanos. No Brasil, o combate à violência doméstica ganhou um capítulo especial com a Lei Maria da Penha.

Atualmente, de acordo com a Lei nº 11.340 / 2006 Lei Maria da Penha, podemos verificar que o estupro marital tem a qualificadora para legitimar o crime:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

[...]

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

Nesse caso, podemos concluir que o crime de estupro conjugal se refere a uma pessoa que usa de violência, ameaças, coerção, força e intimidação para atingir como fim própria satisfação sexual, configurando, portanto, uma forma de abuso dentro do relacionamento. Sem o consentimento de uma das partes, independente de obrigações conjugais, seja no namoro ou no casamento, é um crime.

Embora a elaboração da lei represente um marco na luta contra a violência doméstica, muito há que se fazer ainda em termos de políticas públicas efetivas, que só podem ser feitas a partir de um melhor levantamento de dados, além do já mencionado investimento em educação.


Referências

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SITES

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Aumentar pena não é solução para acabar com estupro, nunca foi e nunca será, afirma especialista ( PORTAL JUSTIFICANDO). Alexandre Putti. https://www.justificando.com/2016/06/03/aumentar-pena-nao-e-solucao-para-acabar-com-estupro-nunca-foi-e-nunca-sera-afirma-especialista/ - acesso em 13/10/2021

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Estupro marital: conjunção carnal forçada. Francielle Rocha de Souza. https://jus.com.br/artigos/73778/estupro-marital-conjuncao-carnal-forcada Acesso em 15/10/21

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Relatório Situação da População Mundial 2021. https://brazil.unfpa.org/pt-br/publications/relatorio-situacao-da-populacao-mundial-2021 Acessado em 16/10/2021

Em 22% dos países não existe lei contra estupro dentro do casamento, diz relatório do Fundo de População da ONU. https://brasil.un.org/pt-br/124845-em-22-dos-paises-nao-existe-lei-contra-estupro-dentro-do-casamento-diz-relatorio-do-fundo-de - Acessado em 16/10/21

Lei nº 11.340 / 2006 Lei Maria da Penha. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm > acesso em 17/10/2021

Relatórios IPEA

ESTUPRO NO BRASIL: VÍTIMAS, AUTORES, FATORES SITUACIONAIS E EVOLUÇÃO DAS NOTIFICAÇÕES NO SISTEMA DE SAÚDE ENTRE 2011 E 2014 (IPEA). Daniel Cerqueira, Danilo Santa Cruz Coelho, Helder Ferreira. Disponivel em <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30474:td-2313-estupro-no-brasil-vitimas-autores-fatores-situacionais-e-evolucao-das-notificacoes-no-sistema-de-saude-entren2011-e-2014&catid=397:2017&directory=1> Acesso em 14/10/2021

AS ATUALIZAÇÕES E A PERSISTÊNCIA DA CULTURA DO ESTUPRO NO BRASIL (IPEA). Cíntia Liara Engel. Disponivel em <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8088/1/td_2339.PDF> Acesso em 14/10/2021

Sobre os autores
Renan Mariano da Silva

Estudante de Direito Pela Universidade Cruzeiro do Sul Estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Execução Criminal

Bruna Fleuri Costa

Graduanda em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul

Bruna Grazielli de Freitas Cintra

Graduanda em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul

Jaqueline Silva Viana

Graduanda em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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