7- ADVOGADO DE ESTADO OU DE GOVERNO
Com freqüência, a sociedade confunde o órgão de defesa do Estado com o governo, que é transitório e que traça diretrizes políticas que nem sempre se coadunam com o interesse do Estado. [31]
O advogado de Estado, não obstante o exercício de tarefas específicas, deve buscar o resguardo do interesse público, tendo a sensibilidade de não se envolver na defesa dos interesses do governo, principalmente quando estes não estiverem em consonância com o interesse da sociedade. [32]
Podemos fazer um paralelo, não como forma definitiva [33], mas sim em termos de melhor ilustração, entre o interesse do Estado (de natureza eminentemente instrumental) com o interesse público primário e, também, entre o interesse do Governo (interesse do governante pelo aparelhamento estatal) com o interesse público secundário.
O interesse secundário da administração é ligado a situações em que se prima pela defesa do Estado em seu aspecto interno, como sujeito de direitos.
E como o Estado não se estrutura para satisfazer a si próprio, essa postura deve ser voltada para seus fins.
Senão vejamos, pense em um caso em que um governante queira implementar vários projetos em seu mandato, tentando ditar uma postura estatal arrecadatória, através de aumentos de tributos e, por outro lado, aos direitos assegurados judicialmente pelos governados, imponha aos advogados de Estado uma linha de conduta protelatória, através de recursos desnecessários e atraso no pagamento de precatório.
Nesse caso, aparentemente legal o aumento de tributos, embora possa não parecer legítimo, estaria inserido no uso do exercício de discricionariedade do governante. Todavia, o mesmo não ocorre com a segunda situação. A sociedade não espera de um advogado de Estado que o mesmo use artifícios protelatórios na busca da defesa do ente político em juízo. Ademais, um órgão com status constitucional deve agir no ideal de uma justiça eficiente.
Percebam que o advogado de Estado que, embora por imposição hierárquica, atue de forma que atente à justiça está resguardando apenas um interesse público secundário, que no caso presente colide com o interesse público primário, razão da qual não pode prosperar.
Veja que no caso em tela, o interesse que se buscava proteger não era do Estado, muito menos do Governo, mas sim o interesse escuso do Governante.
Entendemos que o advogado de Estado, como agente público que exerce atividade exclusiva de Estado deve buscar o interesse do ente, que, por ser mero instrumento de consecução de um fim, o interesse público no caso, deve ser almejado de forma imensurável.
O interesse pessoal do governante, que não é de natureza pública, mas sim privada, deve ser buscado de maneira reflexa, ou seja, agindo na busca do interesse público, louvará os frutos de tal atitude através do exercício da democracia.
Da mesma forma, o aparelhamento estatal só faz sentido se o meio empregado for idôneo, que não afronte os interesses protegidos pelas leis.
Por fim, vale a pena frisar que a garantia da consecução do interesse público vai depender do tipo de regime funcional atribuído aos advogados de Estado.
8- REGIME FUNCIONAL DOS ADVOGADOS DE ESTADO - PURAMENTE HIERÁRQUICO OU DE INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL
Em termos de abrangência do regime funcional, nos ativemos às atividades fins do Advogado de Estado, quais sejam, o de representação e consultoria, e não em questões administrativas e disciplinares, que fugiriam ao objeto do trabalho.
8.1- REGIME PURAMENTE HIERÁRQUICO
Regime puramente hierárquico é aquele em que o agente obedece a determinações de órgão ou agente superior, não podendo manifestar-se contrariamente ao que estabelecido por seus superiores.
A manifestação de vontade do agente deve está de acordo com as diretrizes superiores. Em havendo confronto, prevalece esta.
Neste tipo de regime, caso o governante trace diretrizes que atentem ao interesse público primário, embora aparentemente legais, não terá o advogado de Estado, na representação do ente, meios suficientes para não cumprir a determinação superior, senão vejamos.
Pense numa matéria que os tribunais superiores já tenham pacificado seus entendimentos, mas mesmo assim há ordem do governo para que os advogados estatais levem estas questões às citadas cortes somente para fins protelatórios. O advogado, não obstante poder avocar a garantia constitucional da liberdade de consciência, que atenua a relação de hierarquia, tenderá a seguir as diretrizes impostas, até mesmo constrangido por vir a ser submetido a um processo disciplinar por descumprir ordem superior.
Parte da doutrina [34] entende que o regime funcional do advogado de Estado varia de acordo com suas funções. Sendo de assessoramento, há plena liberdade funcional. Todavia, na função de representação judicial, tendo em vista o princípio da legalidade estrita e da indisponibilidade do interesse público, o regime aplicado seria o da hierarquia.
Nessa linha, entendem que na defesa judicial do ente público não é dado ao advogado dispor do interesse público, daí a proibição em desistir, transigir ou deixar de recorrer.
Ousamos discordar desse entendimento. Conforme já analisado, o interesse público possui duas vertentes. E o interesse público indisponível é o primário. O secundário poderá ser disposto se estiver em confronto com aquele. Logo, não há porque engessar a atuação do Advogado de Estado, podendo sim ter liberdade de agir.
Prosseguindo, outros autores se atêm em negar com mais veemência a ausência do regime hierárquico no que tange a função de assessoramento.
Especificando o regime consultivo, Maria Sylvia Zanella [35] de Pietro aduz que nele não cabe o regime hierárquico.
É o que acontece, por exemplo, nos órgãos consultivos que, embora incluídos na hierarquia administrativa para fins disciplinares, por exemplo, fogem à relação hierárquica no que diz respeito ao exercício de suas funções.
8.2- REGIME DE INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL
Trata-se de regime em que não há interferência dentro da instituição no trabalho de seus membros, podendo estes agirem com "absoluta liberdade funcional, só submissos à sua consciência e aos seus deveres profissionais, pautados pela Constituição e pelas leis regedoras da instituição." [36]
Esse regime é aplicado ao Ministério Público e ao Magistrado, com expressa previsão constitucional.
8.3-REGIME FUNCIONAL ANTERIOR A 1988.
Analisando as Cartas passadas, em que a representação judicial ficava a cargo do Ministério Público, que por sua vez integrava ora o Poder judiciário ora o Poder Executivo, percebemos que o referido órgão não se revestia de muitas garantias institucionais por está atrelado sempre a um poder, o que repercutia de maneira negativa em sua independência funcional.
Isso porque nem sempre se buscava o interesse público, privilegiando-se uma advocacia de governantes a de Estado.
8.4- CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OMISSÃO FUNCIONAL.
Hoje, diante da Constituição de 1988, percebemos uma grande evolução institucional da Advocacia de Estado ao ser elencada em capítulo não pertencente aos poderes [37] tradicionais.
Isso vai de encontro ao regime hierárquico tão em voga nas Constituições anteriores.
Como já visto, o Estado não é um fim em si mesmo, mas instrumento para consecução de um fim, no caso, o interesse público.
Logo, a atuação dos membros da Advocacia de Estado será exercida na busca desse interesse e para isso se faz necessário o uso de certas prerrogativas, tais como a independência e a autonomia funcional [38], sem as quais o exercício desta nobre função ficará a mercê das boas intenções dos governantes, que muitas vezes impõe determinados comandos às suas procuradorias, exigindo o seu cumprimento em nome da hierarquia funcional.
Sobre a independência funcional dos procuradores de Estado, correta é a lição de Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira e Ana Paula Andrade Borges de Faria [39] aduzindo que:
É imperioso, ainda, que o Estado seja defendido em Juízo por profissionais de reconhecida capacidade técnica e que possam ser responsabilizados funcionalmente por ações ilegais, abusivas ou imorais e, em contrapartida, sejam dotados de independência funcional necessária para afastar influências indevidas de governantes e autoridade afins, que comprometeriam a prevalência do interesse público.
Ocorre que o constituinte originário não referendou, como fez ao Ministério Público, a garantia de autonomia e independência funcional. .
Será que essa omissão pode ser entendida como a não extensão dessas garantias ao membro da advocacia de Estado? Ou, por outro lado, a Lei silenciou-se por considerar a explicitação de tais prerrogativas a Advocacia de Estado desnecessária, pois, assim como o Ministério Público, o procurador de Estado, juntamente com o Defensor Público exercem funções essenciais ao funcionamento da justiça?
Desse vazio institucional, surgiram alguns posicionamentos quanto ao regime a ser aplicado aos advogados de Estado.
Uma parte da doutrina entende que respeitável seria a interpretação de que onde há a mesma razão se aplica o mesmo direito. Logo, se ao parquet, por exercer atribuição típica de Estado, além de função essencial à justiça, é aplicado certas prerrogativas, com a mesma razão haveria de se estender tais garantias aos membros da Advocacia de Estado e da Defensoria Pública.
Na verdade, não se trataria propriamente de uma interpretação extensiva, mas sim de um uma garantia implícita na Constituição, que, por não prevista expressamente, não a inferioriza hierarquicamente perante as demais garantias explicitadas.
Embora louvável esse entendimento,entendemos que ao advogado de Estado se aplica um regime diferenciado ao do parquet, até porque se na Constituição não há expressões inúteis, muito menos haveria de ter omissões nesse sentido.
Veja que dessa omissão, só pode restar o lamento por parte da doutrina, e a busca de garantias por parte dos membros da instituição.
8.5- INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA NA BUSCA DO REGIME FUNCIONAL DOS ADVOGADOS DE ESTADO
A eficácia da missão constitucional dos procuradores estatais, como atividade exclusiva tipicamente de Estado, dependerá em muito das prerrogativas a eles atreladas.
A Carta magna não declarou de forma expressa, como fez para o Ministério Público [40], as prerrogativas dos Advogados de Estado, não podendo, a nosso ver, ser extensiva essa garantia aos membros da Advocacia de Estado.
Todavia, isso não significa que os advogados de Estado se submeterão a um regime puramente hierárquico.
Não, da mesma forma que entendemos que a garantia da independência funcional não pode ser estendida ao advogado de Estado, seremos coerente também, em afirmar que a referida função não está atrelada ao regime puramente hierárquico, principalmente quando enfocamos elementos interpretativos, máxime o histórico.
Os elementos históricos são de grande valia na busca da verdadeira intenção da Lei maior. Isso é feito através da interpretação histórica, que seria aquela em que se busca fatores ao longo do tempo, para verificarmos qual é verdadeira intenção da legislação atual.
No caso da Advocacia de Estado, não há empecilho algum à referida interpretação o fato de, em Constituições anteriores à atual, a defesa do Estado ter sido exercida pelo Ministério Público. Isso porque vamos buscar a interpretação baseada na função exercida e não no órgão que a exerceu.
Conforme já exposto em capítulo próprio, a instituição ministerial, que exercia funções de defensor da Sociedade e do Estado, estava sempre atrelada a algum poder tradicional do Estado. Ora o judiciário, ora o Executivo.
Vejamos que nas Cartas de 1946 e 1967 já se começa a ser implantada certas garantias constitucionais aos membros do Ministério Público, não obstante estarem vinculados, ainda que indiretamente, a algum Poder.
Nesse diapasão, se estando vinculado a algum poder, o Ministério Público, que exercia, também, a defesa do ente público, detinha certas prerrogativas, o que há de se concluir quando a atual Lei Maior institui um órgão, desvinculado dos Poderes tradicionais, inserido, juntamente com o Ministério Público, em capítulo próprio intitulado como "Das Funções Essenciais à Justiça"?
Certamente, não se estenderão as garantias institucionais do MP, porém, não haverá um regime de subordinação com qualquer dos poderes, mormente o Executivo.
E que tipo de regime estariam vinculados os Advogados de Estado?
8.6- REGIME DE INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL MITIGADA
Em um regime democrático e presidencialista, a figura do chefe do Executivo configura a maior expressão da vontade popular. Por esta razão, a suas diretrizes e determinações deve ser conferido tratamento relevante.
Por outro lado, não necessariamente o chefe do Executivo possui conhecimentos jurídicos, de modo que, para a concretização de seu plano político, mostra-se necessário um estudo do órgão técnico, no caso a advocacia de Estado, com vistas à análise da consonância de seus atos com a ordem jurídica vigente.
No plano de assessoramento, o advogado de Estado atua na orientação técnica, tendo preservada sua vontade ainda que o chefe do Executivo aja fundamentadamente de maneira diversa, assumindo os riscos de seu posicionamento.
Já no plano da representação judicial do ente, não há que se falar em independência funcional plena, diante da ausência de comando normativo, tanto na esfera da Lei Maior como na infraconstitucional.
Contudo, conforme já aduzido, tampouco há de se falar em hierarquia, diante de sua não inserção em capítulo dos poderes tradicionais.
Logo, ao advogado de Estado se aplica o regime da independência funcional mitigada, que seria uma mescla do regime hierárquico com o da independência funcional.
Dessa forma, a hierarquia seria temperada pela liberdade de consciência [41] do advogado, justamente pela sua não vinculação direta ao Poder Executivo.
Para melhor compreensão deste regime, podemos exemplificar a independência funcional mitigada do advogado de Estado.
Caso um advogado de Estado entenda que não deva recorrer ou mesmo deflagrar uma ação em uma situação em que haja diverso entendimento superior, normatizado ou não, deve o mesmo fundamentadamente expressar suas razões de descontentamento através de um parecer.
Insistindo o órgão superior no prosseguimento do ato, no caso interposição do recurso ou deflagração da ação, o advogado que teve seu parecer rejeitado deverá praticar o ato almejado por delegação, ou seja, como longa manus do órgão superior.
Assim agindo não terá sua liberdade de consciência atingida de direito, embora possa a ter de fato.
A importância prática desse regime de independência funcional reside na esfera da responsabilidade civil, vejamos.
Caso aquele ato praticado gere uma responsabilização por lide temerária [42] ou ato atentatório à celeridade da justiça [43], o advogado de Estado estará imune a qualquer punição, tendo em vista que agiu por delegação.
O Ente representado será o único responsável, podendo regressivamente buscar ressarcimento junto ao agente superior.
Por outro lado, caso houvesse a garantia aos membros da advocacia de Estado da independência funcional, no exemplo acima, o advogado no qual teve seu parecer rejeitado, não poderia ser submetido, nem por delegação, à pratica do ato.
Ademais, nem o órgão superior poderia praticá-lo, salvo se houvesse expressa autorização do chefe do executivo.
Se o fato já estivesse normatizado e chancelado pelo chefe do Executivo, desnecessária sua ulterior aprovação, devendo o órgão superior que discordou das razões do advogado praticar o ato.
Todavia, se a questão ainda não estivesse normatizada, deveria o órgão superior submeter a tarefa ao chefe do Executivo, para que o mesmo apreciasse, podendo determinar a feitura do ato ou seguir o parecer do advogado que rejeitou inicialmente a prática do mesmo. Discordando das razões por este aduzidas, deveria nomear outro advogado para prática do ato, agindo este por delegação.
Nesse caso, preservada estar-se-ia a garantia da independência funcional do advogado, juntamente com a soberania popular, que elegeu diretamente o chefe do executivo.
Não há confronto algum entre a garantia da independência funcional e o ato do chefe do Executivo. Se aquele representa o Estado em juízo, este foi escolhido diretamente pelos cidadãos, devendo suas decisões prevalecer, sem, contudo atingir a liberdade de consciência dos advogados de Estado.
Em síntese: ao advogado de Estado se aplica o regime da independência funcional mitigada, que traduz uma mescla do regime hierárquico com o da independência funcional, de tal sorte que a hierarquia seria temperada pela liberdade de consciência do advogado, justificada pela sua não vinculação direta ao Poder Executivo.