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A violência contra a mulher diante da pandemia de covid-19.

Uma análise dos principais aspectos teóricos, sociais e jurídicos que envolvem o combate a sua persistência no Brasil

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Agenda 20/12/2021 às 16:40

4. AS PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS DA PANDEMIA DE COVID-19 NA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL

A violência contra a mulher no Brasil já se demonstrava frequente e a pandemia de covid-19 impactou significativamente o seu cenário. Esse capítulo objetiva estabelecer a relação entre a situação da violência contra a mulher e o advento da pandemia de covid-19 no Brasil, explicitando algumas das mudanças imediatas ocorridas, sejam relacionadas ao número de casos ou às formas de atendimento das vítimas.

4.1. CONTEXTO DA PANDEMIA

A doença covid-19 foi registrada pela primeira vez em Wuhan, na China, no final de 2019. Ela é uma enfermidade infecciosa provocada pelo vírus SARS-CoV-2, mais conhecido como coronavírus, de transmissão extremamente fácil e que causa desde sintomas mais leves até sérias complicações respiratórias, podendo levar à morte. Os seus casos se multiplicaram em todo o planeta a partir de então, sendo o primeiro no Brasil registrado em fevereiro de 2020 no estado de São Paulo. Por conseguinte, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu que o mundo estava atravessando uma pandemia de covid-19 através de uma declaração feita em 11 de março de 2020, dada a grave situação diante da disseminação global da doença (BARBOSA; VALVERDE, 2020).

Tendo em vista esse acontecimento sem precedentes de tamanha proporção, todos tiveram que se adaptar às novas circunstâncias, implicando diversas mudanças na dinâmica cotidiana mundial. Dessa forma, adotaram-se medidas de prevenção para conter o coronavírus e controlar a doença, desde o reforço dos hábitos higiênicos como a limpeza mais recorrente das mãos e dos objetos manuseados, o uso de máscaras de proteção em espaços públicos e o isolamento das pessoas infectadas até o distanciamento social, que foi uma ação emergencial bem drástica, porém necessária e mais eficiente perante as condições. Tudo isso resultou em inúmeros problemas sociais, como a superlotação do Sistema de Saúde, dificuldades econômicas somadas ao desemprego, acentuando os impasses já antes existentes (BARBOSA; VALVERDE, 2020).

Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2021g), o distanciamento social consiste em uma medida essencial para a diminuição da transmissão do coronavírus. Ele se concretiza ao reduzir ao máximo o contato entre as pessoas, sendo definido através da determinação de estratégias pelo governo, como o fechamento de determinados locais e o cancelamento de comemorações, para que a população fique o máximo que puder sem sair de seus lares, a fim de evitar aglomerações e a consequente disseminação da doença.

É evidente que todos os indivíduos tiveram que enfrentar várias adversidades causadas pela pandemia de covid-19. Um dos problemas mundiais afetados diretamente por esse novo período foi a violência contra a mulher, principalmente no âmbito doméstico e familiar devido à imposição do distanciamento social, apresentando consequências graves imediatas (BARBOSA; VALVERDE, 2020).

4.2. O AGRAVAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Com a inesperada pandemia de covid-19 e o decorrente veloz avanço da quantidade de casos da doença que ocasionou impactos globais, o distanciamento social necessário fez com que a violência contra a mulher alavancasse em todo o mundo. Isso aconteceu porque todos se encontraram praticamente limitados ao espaço de suas residências, o que deixou agressores bem perto das vítimas por muito mais tempo, escancarando a já existente realidade de insegurança de muitas mulheres em seus próprios lares em razão da sua exposição à violência (BARBOSA; VALVERDE, 2020).

Nessas adversidades, surgiram outros modos de exercer a violência contra a mulher. Ao impedir a realização das medidas de prevenção da doença, como quando materiais de higiene ou de proteção são limitados ou escondidos, ao ocultar ou distorcer informações a fim de causar pânico à mulher e ao impedir ou limitar a comunicação virtual com outros indivíduos, o agressor utiliza o momento de pandemia para controlar ainda mais a vida das vítimas, gerando mais obstáculos em sua rotina na tentativa de torná-la dependente dele (FERREIRA, 2020).

Ademais, houve a intensificação das emoções pelo episódio pandêmico, o que exasperou o comportamento dos ofensores e os conflitos familiares. Também com a tendência ao abuso de substâncias como o álcool e aos problemas de saúde mental, o quadro da violência contra a mulher foi piorado. Então, devido a essa longa permanência nos lares juntamente ao afloramento das emoções causadas pelas repletas incertezas mormente sobre aspectos financeiros e sanitários, as mulheres se encontraram ainda mais vulneráveis à violência doméstica (NOGUEIRA, 2020).

Muitas vezes, o aumento do trabalho doméstico atribuiu ainda mais responsabilidades às mulheres, atarefando-as, sendo uma possível razão de haver mais conflitos nos lares, contribuindo para a ocorrência de violência. Com o medo de essa violência ser estendida aos filhos, os quais se encontraram impossibilitados de exercer suas atividades estudantis presenciais, e com a dependência econômica em relação ao agressor devido ao desemprego advindo da pandemia, existiu a maior dificuldade de sair de casa e buscar ajuda para interromper a violência (MARQUES et al., 2020).

Outro empecilho pode ser até mesmo a falta de informação sobre como proceder para quebrar o ciclo da violência, o que vem a impedir que recorram a serviços da rede de apoio. Essa possibilidade é verificada em relação às vítimas que não têm acesso a meios tecnológicos, posto que um em cada quatro brasileiros não tem internet, fato interligado à escassez de recursos financeiros, um dos potenciais efeitos da pandemia, além das analfabetas e das com alguma deficiência. A questão também engloba as que moram longe dos centros urbanos, apresentando maiores obstáculos no acesso aos canais de combate à violência, já que eles se encontram predominantemente nas áreas metropolitanas (BUENO, 2021).

Nesse sentido, Alencar et al. (2020, p. 9) frisa que a pandemia impulsionou a violência doméstica e familiar contra a mulher através de elementos como “Isolamento social; impacto econômico; sobrecarga do trabalho reprodutivo às mulheres; estresse e outros efeitos emocionais; abuso de álcool e outras drogas; e redução da atuação dos serviços de enfrentamento.”

Assim, o cumprimento da principal medida para conter o espalhamento da covid-19 significou segurança para alguns, que se encontraram protegidos do vírus, e acentuação do perigo para outras pessoas, pois ficaram mais expostas a agressões no espaço doméstico e familiar, além das demais dificuldades enfrentadas no período (MACIEL et al., 2020).

Diante de tremendas repercussões, as restrições de acesso ao atendimento preciso por causa das circunstâncias internas do lar da vítima e da redução ocorrida nos serviços de enfrentamento dessa violência em alguns lugares tornaram ainda mais difícil para a vítima se dirigir a ambientes seguros para quebrar o ciclo da violência contra a mulher (ALENCAR et al., 2020). Tais dificuldades de acessar instituições de proteção se deram devido a diferentes fatores, como a menor quantidade de servidores, o menor tempo de funcionamento ou até mesmo a maior quantidade de pessoas em busca desses serviços em certos locais, somados à limitação da mobilidade da vítima, procedentes da realidade pandêmica (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO DATAFOLHA, 2021).

Cortes et al. (2020, p. 4) ainda observa que:

No que tange as respostas institucionais, o setor de saúde poderia ser porta de entrada para receber essa demanda, entretanto, a pandemia torna-se uma barreira para isso ocorrer, em virtude de os serviços de saúde estarem respondendo às demandas da COVID-19. Tem-se a redução na oferta de serviços e atendimentos por plantões, e até mesmo a priorização de outros cuidados em saúde das mulheres, como atendimento pré-natal. Ademais, a busca das mulheres pelos serviços de saúde pode estar reduzida devido ao medo de contaminação própria ou de familiares. Esses fatores se transformam em barreiras de acesso aos serviços de atenção à saúde [...].

Dessa forma, além dos fatores pessoais de impedimento de busca de amparo em razão da pandemia como o temor ao vírus e a dificuldade de recorrer a outras pessoas pela proximidade e vigilância do agressor, ocorreu também a sobrecarga dos serviços de saúde, o que limitou as possibilidades de atendimento das vítimas de violência de gênero, priorizando os casos de covid-19. Todo esse quadro colaborou para o crescimento do problema.

Essas condições impossibilitaram a atuação eficiente das redes de enfrentamento à violência contra a mulher, porque depende de conectividade entre a vítima e outras pessoas e entidades que oferecem suporte para que seja fortalecida, garantindo a segurança das mulheres (BEVILACQUA, 2020).

Vale realçar ainda que a maior parte dos casos de violência contra a mulher tendem a acontecer no âmbito doméstico e familiar, tendo como ofensores as pessoas próximas das vítimas. Isso revela a enorme complexidade de tratamento da violência de gênero, o que reflete a dificuldade de lidar com esse impasse, sobretudo com o advento da pandemia de covid-19 (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO DATAFOLHA, 2021).

Portanto, mesmo que a grave questão da violência contra a mulher já fosse rotineira antes da pandemia, com dados que mostravam que um terço das mulheres do mundo já sofreram alguma violência (Nações Unidas, 2020), foram aumentando ainda mais as evidências de piora no decorrer desse evento, o qual representou uma agravante. Tal fato é explicado por essa violação dos direitos humanos das mulheres ter base na cultura discriminatória e na estrutura histórica desigual da sociedade, ou seja, a realidade anteriormente existente foi influenciada pela pandemia com a sua intensificação, visto que, obviamente, práticas violentas já eram vivenciadas pelas mulheres antes do evento da covid-19 (ALENCAR et al., 2020).

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Desse modo, a ocasião pandêmica deve ser percebida “não como causa explicativa do fenômeno de violência contra as mulheres, uma vez que a violência dessa ordem é baseada no gênero” (ALENCAR et al., 2020, p. 7). Por isso, houve a necessidade de se atentar ainda mais para o combate dessa violência, tanto no que concerne à prevenção quanto à proteção e ao atendimento das vítimas, ampliando-o e explorando mais alternativas.

Perante o exposto, fica evidente que o fenômeno global da violência contra a mulher foi bastante abalado pela pandemia de covid-19. O quadro pandêmico exacerbou essa violência, agravando a pré-existente adversidade de maneira que as vítimas ficassem mais vulneráveis perante a maior dificuldade de procurar auxílio, seja pela extrema vigilância em que se encontraram com o confinamento, pelo temor de contaminação, pela dependência financeira ou pela limitação dos serviços de assistência em muitos estados, razões esclarecedoras da subnotificação, já que normalmente a vítima tende a primeiro procurar atendimento policial e de saúde (VIEIRA; GARCIA; MACIEL, 2020).

4.3. ALGUNS DADOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA PANDEMIA

Guterres (2021), o secretário-geral da ONU, afirma que no começo da pandemia, as Nações Unidas fizeram uma previsão de que 15 milhões de casos de violência de gênero ocorreriam a mais no mundo a cada três meses por causa do confinamento imposto pelas condições insólitas. No entanto, um incremento inicialmente não foi o que aparentemente aconteceu no Brasil.

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020a), no início do distanciamento social, a quantidade de registros de boletins de ocorrência de violência doméstica diminuiu no Brasil. Em março e abril de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, houve queda de 25,5% nos registros de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica e diminuição de 28,2% nos registros de casos de estupro e estupro de vulnerável.

Além disso, nessa direção de redução foi o que aconteceu com a quantidade de medidas protetivas concedidas nesse mesmo período em comparação com o ano anterior, dado que a dificuldade em contatar o auxílio dos serviços públicos de combate a essa violência fez com que as vítimas não pudessem requerer tais medidas. Assim, esses levantamentos iniciais aparentam ir de encontro com o esperado diante do novo contexto (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020b).

Portanto, a priori não aconteceram aumentos aparentes na violência contra a mulher a partir das informações expostas e na teoria esses resultados representariam um bom sinal. Todavia, tais números não refletem a realidade, pois o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020b) mostrou que os feminicídios e os homicídios de mulheres continuaram a acontecer intensamente, o que foi percebido com os crescimentos de 22,2% e de 6%, respectivamente, em março e abril de 2020 em comparação com os mesmos meses de 2019.

Outrossim, os registros de violência doméstica através de ligações telefônicas no Ligue 180, a linha nacional de atendimento à violência contra a mulher, aumentaram em 27% nos meses de março e abril de 2020 em relação ao mesmo período de 2019. Também se percebeu crescimento nas chamadas para o 190, número de emergência da Polícia Militar, acerca da violência doméstica contra a mulher (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020b). Nesse caminho, a quantidade de histórias de brigas entre vizinhos com sinais de ocorrência de violência doméstica publicadas virtualmente na rede social Twitter foi acrescida significativamente, com aumento de 431% entre os meses de fevereiro e abril de 2020 (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020a).

Todas essas informações representam uma advertência sobre a ascensão da violência contra a mulher no Brasil, atrelado à provável subnotificação devido às dificuldades ainda maiores trazidas pela pandemia, indicando que esse evento oportunizou o seu agravamento. Cenário esse provindo das consequências pandêmicas já explicadas anteriormente, sejam desde o âmbito pessoal da vítima até a adequação dos serviços de atendimento à nova realidade do período, dificultando que recorressem a redes de apoio e contribuindo para a ocorrência da subnotificação.

Então, a subnotificação foi favorecida pelas consequências da pandemia no cotidiano das mulheres, que se encontraram ainda mais expostas à violência doméstica. Em suma, mormente devido à necessidade de permanecer em casa, juntamente à intensificação das emoções e problemas de saúde mental com a situação pandêmica, a tensão já existente nas questões domésticas foi aumentada de forma a originar mais violência (BARBOSA; VALVERDE, 2020). Desse modo, a aparente redução da violência contra a mulher a partir dos dados oficiais sobre os registros policiais primordialmente analisados não ocorreu por causa da melhora do panorama da violência contra a mulher, mas sim pelo silenciamento do seu agravamento em razão da dificuldade de relatar as agressões, que resultou na subnotificação.

Nessa senda, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020b) declara que:

Em razão do início do isolamento e da ausência de medidas tomadas pelo governo, muitas mulheres não conseguiam realizar a denúncia por não poderem sair de casa e por medo da proximidade de seu agressor. Assim, embora os casos de violência continuassem a ocorrer e de forma ainda mais profunda em função da maior convivência com o agressor, eles não estavam sendo denunciados pelas limitações impostas pelo regime de quarentena.

Isto posto, foram muitos os fatores agravantes da violência contra a mulher oriundos da pandemia de covid-19, o que amplificou o acontecimento da subnotificação. Essas implicações imediatas surtiram efeito nos dados da violência contra a mulher das pesquisas realizadas sobre o período inicial com o distanciamento social da pandemia no Brasil, fazendo com que houvesse a redução de alguns números, os quais pareciam indicar melhoras. Porém, eles não retrataram a real conjuntura dessa violência no país durante o período pandêmico.

Conforme o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram aproximadamente 85 mil denúncias feitas apenas pelo Ligue 180 em 2019 (BRASIL, 2020b). Já em 2020, cerca de 105 mil denúncias de violência contra a mulher foram feitas aos canais de atendimento telefônico, sejam o Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher) e o Disque 100 (Disque Direitos Humanos), sendo 72% delas relativas a casos dessa violência no espaço doméstico e familiar, números esses que não podem ser comparados com os publicados dos anos anteriores devido à mudança da metodologia aderida em 2020 (BRASIL, 2021a). Apesar disso, tal Ministério constatou que as denúncias ao 180 cresceram 14,1% nos quatro primeiros meses de 2020 em relação ao mesmo período de 2019 (BRASIL, 2020c).

No que diz respeito ao ano de 2021, até o dia 23 de outubro, houve mais de 70 mil denúncias através dos canais telefônicos e dos aplicativos Direitos Humanos Brasil, sendo por volta de 56 mil referentes à esfera doméstica e familiar, de acordo com o levantamento presente no Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, disponibilizado pelo referido Ministério (BRASIL, 2021f).

A partir disso, observa-se que há números bastante expressivos de denúncias feitas pelos serviços telefônicos de atendimento no que toca à violência contra a mulher, indicativos de agravamento ou de permanência de alta. Essas informações demonstram claramente a prevalência da violência doméstica e familiar, uma vez que ela consiste na forma mais frequente de violência de gênero.

Fato é que no Brasil se configura crítica a situação dessa violência, mesmo percebendo uma retração no número de denúncias telefônicas de 2021 em comparação ao ano anterior, posto que é muito previsível a ocorrência da subnotificação, além de ainda não terem sido contabilizados os dois últimos meses do ano. Outro ponto que provavelmente contribuiu para esse decréscimo é que o maior acesso das vítimas a meios de enfrentamento da violência foi possibilitado com a flexibilização do distanciamento social e o gradativo retorno às atividades cotidianas presenciais, havendo maior possibilidade de se dirigirem a redes de proteção.

Cabe acentuar que o agravamento da violência contra a mulher na pandemia foi apontado a partir dos dados colhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), que mostraram o aumento de 16,3% das ligações ao 190 para denunciar casos de violência doméstica no ano de 2020, recebendo cerca de 694 mil chamadas sobre esse tipo de violência. Por conseguinte, pode-se dizer que o Brasil teve mais de um chamado por minuto em 2020 para pedir auxílio, denunciando violências praticadas contra mulheres em seus próprios lares, cena que caracteriza forte sinalização de piora do impasse da violência de gênero (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021).

Quanto às medidas protetivas de urgência, o quadro do Brasil no início da pandemia mostrado anteriormente era de decréscimo das suas concessões. Entretanto, a partir de abril de 2020, o número de medidas concedidas voltou a crescer, se mantendo elevado. Comparando o primeiro semestre de 2020 com o de 2021, houve ascensão de 15% na quantidade de medidas protetivas concedidas, indo de 132 mil para 152 mil, e de 14% no tocante às medidas solicitadas, indo de 170 mil para 190 mil, aproximadamente, mesmo com muitas negadas e revogadas. Essa elevação alude à ideia de que a flexibilização das restrições propiciou o maior acesso a serviços de combate à violência de gênero, assim como a adoção de algumas novas estratégias para abranger mais vítimas, adequando esses meios de enfrentamento à nova realidade (VELASCO et al., 2021).

Mesmo com os indícios de agravamento, os registros de boletim de ocorrência decaíram no ano de 2020, seguindo a tendência dos meses de março e abril, como fora mostrado pela pesquisa feita sobre o período inicial da pandemia com o distanciamento social, já mencionada anteriormente. Contudo, o número registrado ainda é assustador: em torno de 230 mil mulheres vítimas denunciaram um episódio de lesão corporal em virtude de violência doméstica com a procura de ajuda nas delegacias do país em 2020, havendo queda de 7,4%. Dessa forma, tais dados desvelam a provável dificuldade das ofendidas de acessar os meios presenciais de auxílio proveniente da pandemia, contribuindo para a subnotificação, já que “os resultados demonstram redução de praticamente todas as notificações de crimes em delegacias de polícia” (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021, p. 93).

A quantia de homicídios de mulheres também declinou em 2020, mas na faixa de 2,1%, resultando em 3.913 mulheres assassinadas. Dentre esse número, 34,5% foram definidos como feminicídios, o que corresponde a 1.350 mulheres mortas por sua condição de serem mulheres, exprimindo alta de 0,7%. À vista disso, diz-se que houve estabilidade na taxa de feminicídios. Ademais, foi concluído que na realidade a quantidade de feminicídios é ainda maior, porque acontecem erros na categorização de vários casos, estimando-se que em torno de 377 homicídios de mulheres efetivados por parceiros ou ex-parceiros no Brasil em 2020 são feminicídios (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021).

Conquanto os números de violência letal e de registros policiais não ensejam majoração, não significa que a violência contra a mulher decresceu durante a fase pandêmica. Isso se dá devido ao fato de que há muitos outros elementos a serem avaliados nesse complexo contexto, existindo diversificados indícios de que a pandemia elevou a quantidade de casos de violência contra a mulher.

Como visto, as presentes estatísticas indicaram a existência de forte influência da pandemia no já antes grave problema da violência contra a mulher, principalmente em seu domicílio, isto é, a crise sanitária, financeira e social causada pela pandemia de covid-19 impactou seriamente o cenário da violência contra a mulher no Brasil. Essa proposição pode ser aferida quando se observa o aumento significativo da quantidade das denúncias por canais telefônicos e das medidas protetivas concedidas e até mesmo a manutenção da quantidade elevada de episódios de violência letal contra a mulher, podendo-se afirmar que houve uma provável ampliação da violência de gênero com o advento da pandemia.

Segundo outra pesquisa feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Datafolha (2021), uma em cada quatro mulheres brasileiras maiores de dezesseis anos, o equivalente a 24,4%, declarou ter sido vítima de algum tipo de violência nos últimos doze meses, na pandemia de covid-19, o que representa aproximadamente 17 milhões de mulheres atingidas por violência física, psicológica ou sexual no último ano. Esse dado significa que houve uma pequena diminuição quando comparado com 2019, cujo resultado foi 27,4% de mulheres dizendo que foram vítimas de violência, fato que reflete uma estabilidade, considerada a margem de erro do balanço de três pontos para mais ou para menos.

Vale evidenciar que a pesquisa também revelou que 72,8% dos ofensores são pessoas que as vítimas conhecem, sendo os que mais praticam a violência seus parceiros, ex-parceiros e parentes, nessa ordem. Fato este que reitera a tendência de a violência de gênero se configurar no ambiente doméstico e familiar, o que foi indicado com o maior resultado de 48,8% das ofendidas afirmarem que a violência mais grave sofrida no último ano foi em sua residência, continuando o seu próprio lar a ser o local mais perigoso para elas, como revela a elevação dessa porcentagem nas pesquisas (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO DATAFOLHA, 2021).

No concernente à percepção dos brasileiros sobre esse problema, cinco em cada dez brasileiros, o correspondente a 51,1%, afirmaram ver uma mulher sofrendo alguma violência no seu bairro ou comunidade nos últimos doze meses, enquanto 73,5% dos brasileiros acham que a violência contra a mulher aumentou ao longo da pandemia de covid-19. Estatísticas essas que enfatizam a grande dimensão dessa barreira solidificada pela desigualdade de gênero que é a violência contra a mulher (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO DATAFOLHA, 2021).

Um último dado pertencente à pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto Datafolha (2021, p. 13) a ser observado é atinente à visão das vítimas sobre a sua vivência com a violência, revelando que:

25,1% das mulheres que sofreram violência durante a pandemia destacaram que a perda de emprego e renda e impossibilidade de trabalhar para garantir o próprio sustento são os fatores que mais pesaram para a ocorrência de violência que vivenciaram; 21,8% afirmam que a maior convivência com o agressor em função da pandemia de covid-19 também contribuiu.

Nessa seara, é notável que as consequências da pandemia de covid-19 impactaram a prática da violência contra a mulher. A análise possibilitou a reflexão das vítimas sobre a conexão entre o atual momento e as agressões executadas, levando muitas delas a reconhecerem a influência dos fatores oriundos da pandemia, o que também foi denotado com pouco mais da metade das mulheres vítimas entrevistadas respondendo de modo afirmativo à questão do agravamento da violência sofrida pela crise sanitária. Ademais, a coleta de dados evidenciou que as vítimas de violência estão entre as que mais perderam renda e emprego durante a pandemia, sendo a vulnerabilidade econômica a principal razão de várias delas não agirem no sentido da denúncia (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO DATAFOLHA, 2021).

Destarte, apesar de alguns dos dados analisados indicarem a ocorrência de certa estabilidade da violência, a maioria deles apontam para a acentuação dessa violência, devendo ser levada em consideração a eventualidade da subnotificação, realidade já existente que provavelmente foi expandida com a pandemia de covid-19. Fatores como o incremento do número de denúncias de violência contra a mulher pelos canais de atendimento telefônico, o aumento das medidas protetivas concedidas e até mesmo a própria percepção dos brasileiros sobre esse impasse corroboram a plausibilidade de tal visão.

Deste jeito, fica explícita a necessidade de alargar e aprofundar as medidas de enfrentamento à violência contra a mulher, especialmente no que corresponde a sua prevenção, à proteção e à assistência das vítimas. Por isso, as iniciativas direcionadas à conscientização e à rede de apoio de mulheres vítimas de violência foram intensificadas para proporcionar o combate mais eficiente a esse persistente problema.

4.4. ALGUMAS ESTRATÉGIAS ADOTADAS PARA INTENSIFICAR O COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA PANDEMIA

Nas recomendações do secretário-geral da ONU proferidas no começo da pandemia, várias medidas de enfrentamento à violência de gênero foram endereçadas para incentivar os países a lidarem com o seu aumento a fim de frear a sua proliferação. Para que esse problema fosse priorizado no contexto da covid-19, a ONU centralizou a necessidade de atentar para a violência contra a mulher, em especial a doméstica, na adoção de mais estratégias como atendimento online, sistemas de alerta de emergência em farmácias e mercados, outras formas seguras de suporte para as mulheres e campanhas de conscientização pública, criando meios alternativos de prevenção dessa violência e de proteção das vítimas (NAÇÕES UNIDAS, 2020).

Tendo em vista a constatação de evidências que apontaram para a elevação da violência de gênero no Brasil, foram requeridas mais maneiras de combater e prevenir essa violência para mitigar os nefastos efeitos da pandemia na vida de tantas mulheres e famílias. Diante de toda essa esfera crítica da violência de gênero, houve a ampliação das medidas de enfrentamento, indo ao encontro das recomendações da ONU ao facilitar o seu alcance pelas vítimas para promover maior auxílio durante tais circunstâncias anormais.

Entre as leis sancionadas na pandemia, cabe mencionar a que mais se destaca no que tange às medidas imediatas sobre a violência de gênero: a lei n. 14.022, de 7 de julho de 2020. Entre as várias previsões referidas ao tempo no estado de calamidade pública, estão: as questões relacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher como prazos processuais e concessão de medidas protetivas devem ser mantidas; a possibilidade de o registro da ocorrência dessa violência ser feito de forma virtual ou através de número de emergência; a permanência do atendimento presencial de mulheres vítimas de violência, apenas com adaptações ao atual momento emergencial, garantindo a normal funcionalidade dos órgãos públicos de enfrentamento à referida violência nos limites da segurança sanitária; e o atendimento presencial obrigatório em casos que envolvam determinadas infrações como feminicídio, lesão corporal dolosa de natureza grave ou gravíssima e ameaça praticada com uso de arma de fogo (BRASIL, 2020a).

Além dessas, vale citar também a criação pelos órgãos de segurança pública de canais interativos e gratuitos de comunicação para atendimento virtual a serem usados em aparelhos digitais em casos de violência contra a mulher; as possibilidades de solicitação e de concessão online das medidas protetivas de urgência, inclusive a partir da consideração de provas digitais; a automática prorrogação das medidas já concedidas por todo o período de calamidade pública no país; a determinação de que as denúncias aos canais de atendimento Ligue 180 e Disque 100 devem ser conduzidas às autoridades competentes em até 48 horas; o atendimento ágil das mulheres que se encontrem sob risco de vida ou da sua integridade; e a realização de campanha informativa referente ao enfrentamento dessa violência (BRASIL, 2020a).

Como iniciativas do governo federal, há o Disque Direitos Humanos e a Central de Atendimento à Mulher. O Disque Direitos Humanos, o Disque 100, é um meio de atendimento telefônico mais abrangente, pois abarca denúncias de violações de direitos humanos, envolvendo muitas outras violências e podendo também ser acessado através dos aplicativos WhatsApp e Telegram (VILELA, 2021). Já a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, tem o intuito de receber denúncias de infrações contra as mulheres para comunicar aos órgãos competentes, acompanhando processos e prestando informações às vítimas sobre a rede de atendimento, os direitos e as leis acerca do assunto (BRASIL, 2020c).

Ambos os canais telefônicos estão disponíveis a todo o momento. Essas possibilidades de fazer denúncias relativas à violência contra a mulher foram expandidas no mundo digital através da criação do aplicativo Direitos Humanos Brasil e da página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (BRASIL, 2020c).

Entre as alternativas direcionadas ao combate, destaca-se também a campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica, iniciada em 10 de junho de 2020 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), objetivando que a Polícia tenha ciência da ocorrência da violência doméstica para que a vítima seja auxiliada. A ação é realizada a partir do desenho de um X vermelho na palma da mão da vítima como forma de sinalização da violência sofrida a ser identificado em locais públicos cadastrados como farmácias, nos quais serão acionadas as autoridades policiais sigilosamente, assim que o sinal for percebido pelo atendente e após ele ter colhido as informações pessoais da vítima, funcionando como um ato silencioso justamente para não despertar a represália do agressor. Esse esquema foi posteriormente previsto pela lei n. 14.188, de 28 de julho de 2021 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).

Outra campanha foi lançada pelo governo federal, juntamente com o CNJ, veiculada nas mídias sociais a partir de 7 de março de 2021. Ela mostrou vídeos e peças do site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que foram dirigidas aos órgãos do Judiciário a fim de “chamar a atenção para as diversas violências físicas, psicológicas e patrimoniais sofridas por mulheres.” Tal iniciativa também visou a informar todo o país sobre os serviços de denúncia de violência contra a mulher (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2021).

Uma das principais estratégias adotadas em vários estados na eventualidade pandêmica para intensificar o combate da violência contra a mulher diz respeito aos recursos virtuais. Alguns exemplos de medidas adotadas regionalmente são: a criação de Delegacias de Defesa da Mulher online em São Paulo, que possibilitou o registro de boletim de ocorrência online e o pedido de medida protetiva de urgência também de forma virtual e o aprimoramento do Programa Mulher Protegida na Paraíba, agora com mais recursos online como palestras e outros eventos sobre a violência doméstica para preveni-la (VELASCO; CAESAR, 2021), além de ter a sua ferramenta virtual SOS Mulher estendida aos aplicativos WhatsApp e Telegram e ao uso em Libras, significando outros meios de ainda mais vítimas relatarem os casos e de fiscalização do cumprimento das medidas protetivas (SILVA, 2021).

Cabe aludir também aos lançamentos, em Pernambuco, do projeto Carta de Mulheres, que é uma plataforma virtual no site do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) que fornece espaço através de formulário online para relatos de violência de gênero e dúvidas sobre o assunto, possibilitando que as pessoas sejam informadas sobre diversas questões circundantes do caso, e do aplicativo Nísia, que visa a fazer com que as vítimas de violência doméstica com processos que envolvem medidas protetivas no Judiciário estadual possam estar cientes do que acontece neles sem sair de casa (XAVIER, 2020).

Do agravamento da preexistente violência contra a mulher com a eventualidade da pandemia de covid-19 emergiu a imprescindibilidade de reforçar e amplificar os meios de combate e de prevenção a essa violência. Algumas medidas foram implementadas, porém não foram suficientes para que ocorresse a atenuação da violência de gênero no Brasil.

Nessa senda, a então diretora executiva da ONU Mulheres e vice-secretária geral das Nações Unidas Mlambo-Ngcuka (2020) ressalta que:

O aumento da violência contra as mulheres deve ser tratado com urgência com medidas incorporadas nos pacotes de apoio econômico e estímulo que atendam à gravidade e escala do desafio e reflitam as necessidades das mulheres que enfrentam múltiplas formas de discriminação. [...] As organizações de mulheres e comunidades de base têm desempenhado um papel crítico na prevenção e resposta a crises anteriores e precisam ser fortemente apoiadas em seu atual papel de linha de frente, inclusive com financiamento que permaneça a longo prazo. As linhas de ajuda, o apoio psicossocial e o aconselhamento on-line devem ser aprimorados, usando soluções baseadas em tecnologia como SMS, ferramentas e redes on-line para expandir o apoio social e alcançar mulheres sem acesso a telefones ou internet. Os serviços policiais e de justiça devem se mobilizar para garantir que os casos de violência contra mulheres e meninas tenham alta prioridade, sem impunidade para os autores. O setor privado também tem um papel importante a desempenhar, compartilhando informações, alertando a equipe sobre os fatos e os perigos da violência doméstica e incentivando medidas positivas, como compartilhar responsabilidades de cuidados em casa.

Portanto, ainda há uma longa caminhada até a efetiva diminuição da violência de gênero. Por isso, requer-se o constante trabalho das autoridades no sentido da promoção de cada vez mais medidas de atendimento e de prevenção a essa violência, assim como o melhoramento das já existentes, a fim de que cada vez mais vítimas tenham as informações e o suporte necessários à superação das consequências da violência sofrida e cada vez mais pessoas se conscientizem da existência desse problema e da importância de extingui-lo. Resultados significativos apenas poderão ser alcançados se todos conjuntamente se comprometerem a contribuir no enfrentamento da violência contra a mulher, de maneira que todos os setores da sociedade se empenhem a transformar essa realidade.

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco como requisito para a obtenção do título de Bacharela em Direito. Orientadora: Prof. Dra. Manuela Abath Valença. Recife, 2021.

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